CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Em povos onde a falta de exercício do espírito crítico é geral e particular - como na sociedade portuguesa atual - o surto ou disseminação de ideias, falas, comportamentos, devoções e cultos considerados cultural e socialmente corretos, torna-se fácil, quase espontâneo, e rápido. E assim, ajudada pelo intravável encurtamento das memórias pessoais e coletiva, vai galopando a sucessão de ideias prontas a vestir e levar para casa, e também se animam as chegadas de novos heróis, desde logo míticos, ou quase, aos nossos impagáveis e sempre mutáveis olimpos. Não se passa uma semana sem que as incensadas galerias de portugueses ilustres deixem de preencher o nosso (salvo seja!) imaginário com novos campeões desportivos, órficos cardeais já presumíveis papas, geniais cientistas premiados, hordas de mulheres e homens lusitanos na crista das grandes ondas da criação literária e artística... Perante o pasmado encómio das massas - e, ainda, as exultantes proclamações de figuras públicas a gritarem urbi et orbi "quando somos bons somos os melhores!" - umas elites residentes no que entendem ser o mundo da cultura (conceito que, curiosamente, aliás, nenhuma delas consegue cabalmente explicar) vão exibindo, com um despautério quase comoventemente ingénuo, as suas obras. E cada uma delas, cada obra, é sempre inestimável legado do seu prendado criador, invariavelmente referido como "pessoa de cultura"... Parece que ninguém se dá conta de como e quanto o panorama dessa gente de cultura chega a ser pateticamente cómico. Mas esse é o lado divertido da questão, aliás reservado para quem, pela liberdade de espírito crítico, vai alimentando algum saudável sentido de humor. Já mais preocupante será a sua possível impressão na opinião pública e na formação dos olhares sobre as pessoas e funções públicas, suas instituições e exercício. Na verdade, não creio que qualquer culto das personalidades, fenómeno omnipresente na nomenclatura do nosso lusofulanismo, vá promover a tão apregoada e tão desejável transparência das ideias, das palavras e dos atos, para que, em qualquer caso, se possam avaliar propostas, projetos e processos - em lugar das habituais e serôdias ladainhas de louvores ou malediciências, isto é, da insistente rendição das nossas reflexões e decisões a sentimentos ad hominem, quer simpáticos quer antipáticos...
Quero que fique bem claro para ti, minha Princesa de mim, que não é minha intenção, nesta carta, atingir seja quem for com um ataque pessoal, muito embora não se possa excluir a hipótese de alguém - incluindo eu próprio - poder sentir-se chamado a refletir sobre se será ou não personagem da mesma farsa. A questão que levanto é, sim, cultural em sentido próprio: estaremos, ou não, a promover cultos de personalidades? O que, nos casos a que aludi, também não representaria grande ameaça de ditaduras políticas possíveis, apesar de, contrariamente ao que se considera socio-politicamente correto, as ditas democracias terem sido, nestes últimos tempos, os maiores viveiros de palhaços autoritários e discricionários... O que realmente me preocupa, nas culturas contemporâneas e neste particular, é a falta de cultura do espírito crítico (que pouco ou nada tem a ver com que os nossos acácios chamam cultura) que torna as gentes cada vez mais indefesas perante as arremetidas de quem as quer influenciar e dirigir, politicamente e não só...
Sai-me também o desabafo para justificar uma longa citação dum livro de que já te tenho falado, Princesa de mim, trecho esse que abaixo traduzirei. É seu autor o filósofo Vladimir Jankélévitch, interrogado por Béatrice Berlowitz em Quelque part dans l´inachevé (Gallimard, Paris, 1978). O título do primeiro capítulo é significativo: Ce Je haïssable (Esse Eu detestável). E o filósofo francês de origem judia russa e, também, muita cultura germânica (que, aliás, pôs de molho com o advento do nazismo antissemita), responde assim à entrevistadora, depois desta lhe dizer que o vê diferente do homem de letras que, qual andorinha pedreira, para si constrói, com seus livros, um ninho, e lhe observa como, pelo contrário, ele prefere deixar a escrita dele ser levada pelo esquecimento do que em si reúne, quiçá por não querer dar por definitivamente adquirido algo que tivesse escrito:
Não é quem escreve que tem de dizer «a minha obra», de falar da sua própria obra tal como nós, humildes leitores, testemunhas ou terceiros, falamos da obra de Proust ou de Simenon... É certo que o leitor que for seguindo, livro após livro, o desenvolvimento do processo criativo num escritor tem o direito de considerar a obra desse escritor como obra, já que se trata mesmo de uma obra que se vai edificando sob o seu olhar, pedra sobre pedra. Mas a minha própria «obra» só será obra - se assim tiver de ser! - já depois. A sua ascensão ao estatuto de «obra» acabada será, portanto, em qualquer caso, uma promoção póstuma... Só depois da minha morte terei eventualmente (e muito eventualmente!) uma obra. Afinal, tem-se uma obra como se consegue uma biografia e uma necrologia: quando tudo estiver terminado.
Inicio a citação longa que traduzirei para ti com esta breve introdução ao tema, tal como irei deixar que seja Jankélévitch a expor o que eu próprio pensossinto ao observar as "elites culturais" portuguesas - que ele provavelmente pouco ou mal conhecia. Na verdade, sinto-me feliz e aliviado por poder recorrer a um texto estrangeiro para me exprimir. Sinto-me mais acompanhado e, por outro lado, posso ganhar distância entre mim e a minha visão, ou meu sentimento, das coisas - posto que também sei como décadas seguidas de vida passadas noutros hemisférios e culturas me desligaram, mais do que da minha terra e da minha gente, da minha própria consciência de mim enquanto parte de um todo... Mudaremos sempre tanto à medida dos enquadramentos da nossa circunstância? Certo, certo, neste preciso momento em que te escrevo, Princesa de mim, é não saber quanto de mim poderia igualmente caber no retrato a seguir traçado.
O ato de escrever exige uma perfeita inocência, e é cada vez mais rara a inocência nesta farsa filosófica em que reinam a opinião dos outros e a glória da aparência... ...A frágil inocência, a efémera modéstia estão à mercê duma reflexão de consciência, e a consciência é expedita em desingenuizá-las! Para nos abstermos desse olhar sobre si que é uma iniciação à vaidade literária, para recusar essa grande representação teatral que se chama vida, seria necessária uma espontaneidade ao abrigo de qualquer tentação ou, à falta de espontaneidade, uma vigilância de cada instante.. ...De todos os conformismos, o conformismo do não-conformismo é hoje o mais frequente. É esse diabo que nos espia, nos vigia e nos persegue,,, A consciência que tomamos da nossa coragem desfigura-a, pode mesmo torna-la coragem de matador, isto é, numa caricatura.
Mas em tal caso não deixamos de continuar a ser corajosos, apesar das nossas fanfarronices: até um bobo pode ser corajoso por vaidade. Em contrapartida, há outras virtudes, mais secretas, que são literalmente assassinadas, aniquiladas de um só golpe, pela própria consciência que delas tomamos, tais como, por exemplo, a modéstia, o encanto ou o humor. Desaparecem. Tal homem encantador era um "charmeur", quer dizer, um tolo; aquele, com grande sentido do humor era um humorista, ou seja, um palhaço; aqueloutro, apagado e modesto, um vaidoso subtil, que arranjou maneira de atrair e colecionar louvores. Mas a vaidade não se fica por aí, sobretudo quando se trata de vaidade de autor: não é só a falsa modéstia que espreita o modesto, mas também a sua confissão dela e que, na realidade, é um alibi diabólico da vaidade, uma contrição indecente.
Assim tão argutamente escalpelizadas, se revelam enfim elites comprazidas ao espelho da sua vacuidade. Pode tal retrato dar-nos riso, quando, por exemplo, surpreendemos, em conhecidas figuras públicas "da cultura", que por já terem sido tão divertidamente retratados, hoje são só inenarráveis conselheiros Acácio ou monumentos ao imenso talento de Pacheco, sobretudo quando caem em citar, sobre estranhos ou rivais, as suas próprias caricaturas. Já menos hilaridade nos virá do espetáculo da dança de troca de galhardetes, encomiásticos ou maldosos, entre vários espécimes dessas elites. E se acaso formos sensíveis ao descaramento desse estabelecimento de grupos de glórias concorrentes que, mesmo quando se degladiam, fecham caminhos e portas a tantos outros seres humanos independentes e estranhos a essas capelinhas e ocupações, logo começaremos a sofrer alguma comichão. Até poderemos atingir um qualquer grau de indignação, sobretudo quando deparamos com sebenta hipocrisia a tentar encobrir intranquilidades de egos tão auto idolatrados quanto acobardados. Ou, ainda, ao ver a presença teimosa de ditos e escritos, de retratos e notícias sobre indivíduos ligados à constituição ou à gestão de instituições, boletins ou instrumentos de comunicação de pressuposto interesse público, como se eles próprios fossem indispensáveis ou incontornáveis ao entendimento ou inteligência das coisas...
Deixemos que a lucidez e a humildade, o esforço e o propósito de servir sejam, em nós, os anticorpos do carreirismo e da vaidade bacoca.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira