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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A MULHER NA IGREJA

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1. Neste Dia Internacional da Mulher, retomo o que já aqui escrevi em 2011: “As mulheres têm motivo para estar zangadas com a Igreja, que as discrimina. Jesus, porém, não só não as discriminou como foi um autêntico revolucionário na sua dignificação, até ao escândalo.”

   Veja-se a estranheza dos discípulos ao encontrar Jesus com a samaritana, que tinha tudo contra ela: mulher, estrangeira, herética, com o sexto marido, mas foi a ela que se revelou como o Messias. Condenou a desigualdade de tratamento de homens e mulheres quanto ao divórcio. Fez-se acompanhar — coisa inédita na época — por discípulos e discípulas. Acabou com o tabu da impureza ritual. Estabeleceu relações de verdadeira amizade com algumas. Maria Madalena constitui um caso especial nessa amizade: ela acompanhou-o desde o início até à morte e foi ela que primeiro intuiu e fez a experiência avassaladora de fé de que o Jesus crucificado não foi entregue à morte para sempre, pois é o Vivente em Deus, como esperança e desafio para todos os que crêem nele, a ponto de Santo Agostinho, apesar da sua misoginia, a declarar “Apóstola dos Apóstolos”, precisamente por causa do seu papel fundamental na convocação dos outros discípulos para a fé na Ressurreição — na morte, não caímos no nada, pois entramos na plenitude da vida em Deus, Deus de vivos e não de mortos. Aliás, já São Paulo, na Carta aos Romanos, pede que saúdem Júnia, “Apóstola exímia”.

 

2. No seu mais recente escrito, o teólogo José M. Castillo vem lembrar a mesma coisa. Quando se lê os Evangelhos, o que constatamos é que Jesus teve conflitos e confrontos com vários grupos, desde as mais altas autoridades religiosas até aos discípulos que o acompanhavam: a Pedro, por exemplo, chegou a chamar-lhe Satanás. Mas há um dado que “chama  poderosamente a atenção: as mulheres são o único grupo com o qual Jesus não teve problema algum, inclusivamente naquele caso da mulher cananeia que suplicava a cura da sua filha doente; parece que Jesus lhe deu uma má resposta, mas o carinho daquela mãe foi tão intenso que até fez Jesus dizer: ‘Mulher, como é grande a tua fé!’. E a filha ficou curada.”

   Castillo insiste que Jesus esteve sempre do lado das mulheres, mesmo quando eram adúlteras ou prostitutas. Jesus deixou que uma mulher o perfumasse com perfume caro, ou lhe beijasse os pés com lágrimas e lhos enxugasse com os cabelos. E foram as mulheres que se mantiveram sempre fiéis no caminho do Calvário e depois da morte, diante da Cruz. E foram as primeiras testemunhas do Ressuscitado, do Jesus vivo em Deus para sempre.

   E, atravessando a história da Igreja, lança a pergunta: “Como é possível o que está a acontecer? Se há tantos bispos que vivem em palácios, usam vestimentas que já ninguém usa, têm privilégios que ninguém mais tem, julgam ter poderes que Deus lhes deu a eles e a mais ninguém, não é lógico e inevitável que na Igreja esteja a acontecer o que todos vemos?” E conclui: “Como é possível que as mulheres continuem nesta Igreja que as marginaliza, as exclui, as anula em tantas coisas...? Porque é que hão-de continuar numa Igreja que, apoiada em séculos, nega e resiste a que celebrem Missa ou que possam ser esposas de padres? Se Jesus não proibiu nada disso, porque é que havemos de ser nós a proibir e, para cúmulo, ficando com a consciência do dever cumprido? O que é mais importante: agradar a uns tantos cardeais ou servir toda a gente?

 

3. A Igreja continua a ser um dos maiores esteios da sociedade patriarcal. Até inconscientemente, com a doutrina tradicional, embora esta não encontre apoio no Evangelho.

   Dou três exemplos.

   Eva, que estaria,  segundo a doutrina tradicional, a partir de uma leitura literal da Bíblia, na base do pecado original, criou a imagem da mulher tentadora, associada ao pecado.

    Quando João Paulo I se referiu a Deus como Mãe foi um escândalo tal que não faltaram os protestos, clamando que Deus é Pai e não Mãe. Para esta visão, contribuiu também o desconhecimento da biologia. De facto, o óvulo feminino só foi descoberto em 1827. Por isso, na geração, a mulher era passiva e não activa. Neste quadro, nunca se poderia rezar o Credo, começando assim: “Creio em um só Deus, Mãe toda-poderosa, criadora dos céus e da terra...” nem rezar o “Pai Nosso”, dizendo “Mãe Nossa”. Mas, em relação a esta concepção, é preciso tomar consciência de que Deus está para lá da determinação sexual e, por isso, tanto nos podemos dirigir a Ele como Pai ou como Mãe.

    Também se diz que Deus encarnou no homem Jesus. Sim, esta afirmação é clara para a fé cristã, desde que não se ignore que, no Evangelho de São João, se lê que o Logos, que é Deus, se fez carne, no sentido de humanidade frágil. De facto, a palavra utilizada no original grego é “sárx”, que significa  precisamente a humanidade enquanto frágil, e não  “anér, andrós”, que se refere ao homem masculino (daí, andrologia e androcentrismo). Deus manifestou-se, revelou-se a todo o ser humano, na humanidade frágil do homem Jesus.

   Neste contexto, pergunta-se: a mulher não poderá presidir à Eucaristia? Já há anos, o então cardeal-patriarca de Lisboa, José Policarpo, que sabia Teologia, fez uma declaração que teve muito eco nos média, inclusive estrangeiros: “Teologicamente não há nenhum obstáculo fundamental” à ordenação de mulheres. A recusa baseia-se apenas na tradição. É evidente que, perante esta afirmação, os protestos choveram e o meu amigo cardeal José Policarpo, por pressão do Vaticano, teve de recuar, dando esclarecimentos. Mas, evidentemente, era ele que tinha razão.

   Para contrapor, invoca-se que na Última Ceia não houve mulheres. Ora, esta afirmação é contestada por grandes exegetas. De qualquer modo, onde é que está que Jesus ordenou alguém “in sacris” naquela noite? Mais: o famoso biblista, talvez o maior exegeta do século XX, Herbert Haag, da Universidade de Tubinga, com quem tive o privilégio de privar, ironizou: como eram só judeus os presentes, então a Igreja devia ordenar só homens judeus!... Sobretudo: é sabido que as primeiras comunidades cristãs — não havia igrejas nem capelas nem basílicas ou catedrais — se reuniam na casa de cristãos mais abastados, pois sempre teriam uma casa mais ampla, e quem presidia era o dono ou a dona da casa. Então, se já foi possível mulheres presidirem à Eucaristia...

   A questão da mulher na Igreja tem, pois, de ser revista. Para não ferir o que Jesus disse: “Sois todos irmãos e iguais” nem este princípio fundamental do Concílio Vaticano II: “Toda a forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa por razão do sexo deve ser vencida e eliminada, por ser contrária ao plano divino.”

    Afinal, a linguagem que nos leva a dizer: “a Igreja discrimina as mulheres” revela bem onde reside o nervo do problema. Que Igreja é que discrimina? Quem é a Igreja? Evidentemente, ao dizer que a Igreja discrimina as mulheres, estamos a referir-nos à Igreja hierárquica: Papa, cardeais, bispos, padres, cónegos, monsenhores — com duas classes: clero e leigos —, quando o que Jesus queria era a Igreja como comunidade de comunidades, que obriga a dizer: “a Igreja somos nós”, a comunidade dos baptizados, homens e mulheres, uma comunidade de iguais, com carismas e ministérios vários ao serviço de todos, entre eles, o da presidência da Eucaristia, exercido por homens ou mulheres.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 MAR 2020

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   A mais edificante e importante personagem para a compreensão da Rússia não é Putin, mas sim aqueles que o levaram ao poder e hoje permitem que por lá fique, através da acumulação, dia após dia, das suas (deles) opções individuais... Assim sumariza - e bem - o Guardian a tese de Yoshua Yaffa no seu novo livro Between Two Fires: Truth, Ambition and Compromise in Putin´s Russia (Tim Duggan Books, 2020). O próprio título da obra é elucidativo do respetivo conteúdo: na verdade, vale apena ler o que me parece sobretudo ser uma ilustração exemplar da questão do conflito entre a verdade e a ambição, quando se procura chegar a um compromisso que se encara como mal menor ou condição necessária à concretização de um ideal. Afinal, quanto da nossa verdade pode ou deve ser sacrificada a uma qualquer solução menos má de acudimento a situações iníquas de desequilíbrio, perseguição ou injustiça flagrante? Iremos conversar sobre isso, Princesa de mim, em correspondência próxima?

 

   Se assim acontecer, teremos certamente de abordar a problemática do compromisso através de perspetivas diversas, estou até tentado a dizer-te que não escaparemos a uma reflexão acerca das mutações hodiernas do poder político, suas instituições e funcionamento. São variáveis, pelas diferenças entre as respetivas circunstâncias, desde as históricas à socioeconómicas e culturais presentes, ao ponto de, por vezes, chegarmos a questionar a sua própria contemporaneidade. Já reparaste, por exemplo, como é para nós estranho o propósito do presidente russo, ex-agente e dirigente do KGB, de inscrever o nome de Deus na Constituição da Federação Russa?

 

   Entre nós, os regimes políticos debatem-se hoje com o dilema da democracia direta ameaçar substituir-se à representativa. Os atuais populismos, incluindo o trumpista, insistem numa democracia real, que logo começa por perturbar as mediações tradicionais, sejam estas institutos políticos ou, simplesmente, os meios de comunicação social mais usados, aos quais se preferem cada vez mais as chamadas redes sociais...

 

   Tal "revolução numérica" é cada vez mais aplaudida e fidelizada. Terminando esta carta breve - a lançar temas - deixo-te uma citação de Steve Bannon, o "guru" católico de Donald Trump, que, apesar de Harvard e Goldman Sachs, permaneceu intimamente fiel à sua tradição familiar de "blue collar":

 

   A democracia nunca foi tão sólida, mas os média puseram-se a dizer que ela corria perigo, assim que as elites começaram a perder eleições. Só porque levaram um pontapé no rabo, começaram a declarar que a democracia cairia diante de tão grande perigo...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira