CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Pouco sou consumidor, menos ainda frequentador, de discursos e comentários políticos. Aliás, pouco me interessa o que dizem ou possam dizer, divirto-me mais a antecipar o que dirão. Sou esteticamente alérgico a quase todos, tal como às catatuas indignadas que por aí vão, sem reflexão nem critério, perorando contra todos e quase tudo. Recuso-me a olhar para o resultado de qualquer eleição ou referendo para contar votos e ordenar vencedores e vencidos, mais me preocupa tentar perceber os fatores sociais e culturais que ditam tais resultados, e vou tentando interpretá-los tão objetivamente quanto possa, sem me ater a quaisquer simpatias ou antipatias pessoais, nem me prender a critérios de ordem ideológica.
A citação de Steve Bannon com que encerro a minha carta anterior poderá ajudar-nos a melhor entender o que quero dizer, se a relermos inserida no seu contexto. Na verdade, aquele conselheiro do presidente Trump habita hoje uma casa catita na Costa Leste, sinal iniludível do êxito duma carreira profissional seguinte a um estimável diploma de Harvard. Todavia, além de se manter fiel a uma tradição católica conservadora da sua família e educação básica, também não esqueceu ser filho de operários da cintura industrial norte americana designada rust belt, hoje uma das faixas demográficas onde Trump foi buscar grande parte do seu eleitorado. É gente desiludida pelo que considera ter sido o abandono da sua condição por uma democracia conduzida pelas novas classes cosmopolitas e participantes do atual processo de globalização económica e social.
O exemplo de Steve Bannon é destacável, não só pela posição que conseguiu na construção do triunfo de Trump, mas sobretudo porque a família Bannon, de origem irlandesa e católica, foi sempre, como tantas outras linhagens norte americanas, fiel ao partido democrata, eleitora de "kennedys", etc... assim sendo sinal de como os atuais surtos do chamado populismo se devem mais a sentimentos de quem se sente traído por protagonistas dum sistema político em que se confiava, do que a uma hipotética restauração totalitária. As reivindicações nacionalistas têm mais a ver com a crise e o desejo de restabelecimento de uma identidade própria do que com quaisquer concessões a tentações de totalitarismo. No caso em análise, é importante recordar-se que, nas últimas décadas, quer por força do desenvolvimento da robótica e de outras novas tecnologias, como da globalização dos grandes grupos económicos e consequente deslocalização de unidades de produção das indústrias manufatoras, as condições de remuneração e vida das classes operárias e da média burguesia das sociedades industrializadas se foram progressivamente deteriorando e gerando sentimentos de exclusão e injustiça social, facilmente convertíveis em xenofobia perante as crescentes vagas imigratórias provenientes de países em via de desenvolvimento. Às causas locais do correspondente aumento da emigração a partir destes países pouco cuidado foi prestado, pelo que os motivos de descontentamento e furiosa reivindicação de direitos a respeitar foram alastrando por todos os lados, como demonstram as tragédias migratórias no Mediterrâneo ou os excessos cometidos por coletes amarelos.
Evidentemente também, a evolução da prática democrática nas democracias ocidentais para o "marketing" eleitoralista dos políticos e concomitante surto de um fulanismo estelar "à Hollywood", quer em "shows" televisivos, quer, mais banalmente, através das "redes sociais" ou "internet de fofocas", vai ajudando ao apagamento do espírito crítico no foro público, bem como à quase impossibilidade de se construírem plataformas sérias de debate e desejáveis acordos. Da edição deste março da revista literária francesa Lire, retiro umas declarações do escritor israelita Etgar Keret, de que a L´'Olivier publicará em breve uma obra intitulada Incident au fond de la galaxie. Traduzo:
A população de Israel está extremamente dividida. A 2 de março, terá as suas terceiras eleições legislativas em curtíssimo lapso de tempo. Quando olho à minha volta - é candidato Benjamim Netanyahu, suspeito de fraudes e corrupção, e já Donald Trump sai ileso do seu processo de destituição - fico com a impressão de que os dirigentes políticos já não são eleitos responsáveis perante o povo, mas estrelas de cinema. No passado, os média faziam títulos com a educação ou a abertura de hospitais; hoje, 99% do que nos é dado ouvir são comentários, quase sempre ordinários, de Trump, Netanyahu ou Putin acerca de fenómenos da actualidade... ... A democracia segundo Netanyahu e Trump serve para tornar insuportável a existência de todos aqueles que são diferentes deles: homossexuais, ateus, estrangeiros...e isso inquieta-me mais do que o resultado das eleições no meu país.
Fica - assim me parece, Princesa de mim - respondida a afirmação de Bannon sobre a saúde actual da democracia. Afinal, como já bastas vezes te escrevi, o problema é mesmo uma questão de cultura...ou sobre a falta dela. Leio. na imprensa britânica e norte americana desta manhã que o presidente dos EUA decretou a interdição, por um período de trinta dias, de qualquer voo proveniente da Europa, com exceção dos originários do Reino Unido. Justifica a medida como prevenção contra o covid 19. Haverá alguém que lhe recorde outra curiosa exceção britânica, além dessa sua decisão discricionária? Tanto quanto saiba, no governo de Sua Majestade britânica, a própria ministra da saúde está infetada pelo vírus. Mas tal medida, ao que entendi, fere igualmente a entrada de pessoas não cidadãs dos EUA, bens e mercadorias... Pelo que a justificação sanitária será mero artifício.
Pelo início dos anos 1990, foi aparecendo por aí o conceito e a palavra democratura que, na sua obra La Démocrature: dictature camouflée, démocratie truquée (Paris, L´Harmattan, 1992), o sociólogo e economista Max Liniger Goumaz origina no período marcado pelo fim da Guerra Fria e a transição de regimes comunistas para democracias liberais. Hoje, falamos mais de democracias iliberais. Seja como for, diz Max-Erwan Gastineau (cf. Le dictionnaire des populismes, Paris, Cerf, 2019), nos cenáculos e centros de decisão, chegara então a hora da transitologia, do fim da História de Fukuyama e da harmonização das políticas aduaneiras. O mundo converge... Deveremos então estreitar laços e, sob os auspícios do direito e do comércio fraterno, preparar o advento de uma sociedade universal.
Creio que é na realização de tal esforço que temos vindo a falhar e a criar mais impasses ainda ao convívio internacional. Desde logo, por ausência de convites e insistência ao diálogo, preferindo-se-lhe o lucro dos grandes grupos económicos e a manipulação do voto popular através da desinformação e de promessas ilusórias.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira