CRÓNICA DA CULTURA
Nunca duvidei que a leitura iluminadora situa o tornar acessíveis as incertezas de uma interpretação.
Nunca duvidei que uma tela com luz própria cria um movimento de análise e resposta a muitas interrogações.
Nunca duvidei o quanto uma peça musical ativa a precedência íntima e lúcida da imaginação.
Nunca duvidei o quanto uma escultura nos pode aportar ao ângulo virtuoso das razões simples e fundamentais.
Não duvido que a anatomia do comportamento seja deliberadamente ignorada para que se não detetem as vertigens em voga.
Em rigor, vive-se no cerne de rasuras totais ao significado.
Registo, o quanto se abandonou a diferença primordial entre criação e o seu reflexo, ou entre criação e seu dependente secundário.
Resumem-se ao Jogo da não-vida os sucessos formais, cujos efeitos são corrosivos, pulverizando a vulgarização, o kitsch e as subculturas de massas, sobretudo nas relações de comunicação entre as gentes.
A realidade decadente abrange a hipótese do enlouquecer pela erosão da privacidade e poderá ser expectável que os conflitos venham a estar assentes entre credos desacreditados e razões cercadas de trevas.
E a memória ainda reivindica as suas raízes num «nós» afetivo? E a arquitetura entre as artes e a eletrónica? E que alerta perante o que é novo numa re-identificação de si próprio? E o nosso cobertor de infância é agora computacional? Virtual o nosso lar? E no circo do não-mundo a mercadoria é amada numa liberdade de lucro?
Manequins e maquettes são afinal a moeda autorizada e a nova palavra coincide com o simulacro. Digo.
E em verdade, se posso ter algum descanso, ele reside na luta pela ciência interrogativa do espírito crítico, e assim ele seja o pequeno contributo que vá denunciando o reino do espetáculo.
Diria que um poema passou a ser tão mudo quanto o acesso à corda de um violino trancado num armário, e, muito por essa razão, se luta, para colocar o pragmatismo ao serviço das ideologias e assim manipular as massas.
Referindo-se à pintora Rose Wylie, Ana Ruepp disse: olhar é sempre um ato extraordinário que transforma e que interrompe o mundo.
Como é que isso é possível? Pergunta-se para espanto meu.
E edifiquei a minha casa no meio dos homens não encontrando outras palavras para esta verdade.
A neofesta acede ao corredor das lojas num prazer coletivo de sentir a proximidade mimética com os outros: eis o contributo à felicidade de uma multidão «unificada». O indivíduo procura-se no colectivo onde encontra segurança. Férias em grupos, jantares em grupos, todos com todos, de tal modo que se não sabem perder.
Os transes burlescos nas ambiências fun assemelham-se a deambulações turísticas da vida.
O despropósito festivo deu lugar à finalidade distrativa. As pessoas falam e falam e falam por sms e telefonam-se, entre outras não-comunicações.
As pessoas são o seu próprio pico de audiências acríticas mas prontas a agredir o que não compreendem, antes julgam desenfreadamente o desconhecido, e julgam-se atletas no único género de amor que conhecem, enquanto se autoproclamam heróis da sua vidinha.
E eis que esta também é uma sociedade de performance, uma sociedade de época, da aparência, da tirania da beleza, da corrida desenfreada e desumanizada aos resultados.
A sociedade do pronto-a-pensar.
Teresa Bracinha Vieira