CADA ROCA COM SEU FUSO…
ESTRANHO TEMPO...
Para comentar o momento de confinamento que vivemos, sob a ameaça do Covid-19, Filomena Molder invoca Pierre Hadot (1922-2010) e o seu livro “Não te esqueças de viver” (Relógio d’Água, 2019), no ponto em que nos apresenta um conjunto de exercícios espirituais, que devem ser lembrados:
(1) Ter atenção ao presente (a coisa mais difícil, num tempo em que a ansiedade e o medo imperam, gerando simplificações e ilusões);
(2) Distanciar-se, inventar um pequeno intervalo entre mim e a minha vida, deixando cair o imediato;
(3) Alargar o ponto de vista, evitar a parcialidade satisfeita;
(4) Imaginar a leveza, isto é, exercitar a esperança. (cf. Público, 29.3.2020).
Mas que significam afinal estes exercícios? Perante esta interrupção, temos de ter consciência que devemos redescobrir o essencial. Num momento avesso à reflexão e à adequada utilização do tempo, há oportunidades novas para distinguir o fundamental e o acessório. Subitamente, percebemos que há muito ruído que nos perturba. Como afirma Walter Osswald: “Fechado o capítulo da pandemia seria irresponsável fazer tábua rasa do sofrimento, dor e prejuízo para retomarmos os velhos hábitos, a anemia social, o individualismo exacerbado, a tentação do domínio total das forças da natureza, o cientismo acrítico”…
Eis o que está em causa. Se uma grave crise económica se prenuncia, tal deve-se a termos uma sociedade com pés de barro. Não tirámos as lições certas da crise de 2008. E não compreendemos o que Marina Mazzucato nos afirma no seu livro “O Valor de Tudo – Fazer e Tirar na Economia Global” (Temas e Debates, 2019). “A História mostra que a inovação resulta de um enorme esforço coletivo, não é obra de um pequeno grupo de homens brancos na Califórnia. Há que ter em mente este facto se queremos resolver os grandes problemas mundiais”. Daí a importância das políticas públicas, como catalisadores de energias e da capacidade inovadora da sociedade. Acreditar cegamente no mercado, significa deixarmos que a lógica do ganho fácil prevaleça sobre a criação de valor. Veja-se como os egoísmos emergem, em lugar de se cuidar do desenvolvimento e de uma economia que defenda as pessoas. Quando na União Europeia falta solidariedade, prevalece a lógica fragmentária, cujos efeitos são mais dramáticos no contexto desta pandemia. Como afirmou há pouco Jacques Delors, consciência moral da Europa, se não houver partilha de responsabilidades, a União destrói-se e põe em causa a paz e o desenvolvimento. O Papa Francisco diz-nos que a economia mata…
José Gil alerta: “este confinamento não é um lazer. Mesmo que haja quem consiga transformar este tempo em tempo de ócio, coletivamente isso é impossível. O tumulto e a catástrofe que desabam sobre o nosso país e sobre o mundo todos os dias não podem deixar de nos angustiar. No entanto, além do que a transformação da vida quotidiana traz de novo ao indivíduo – que muitas vezes descobre uma vida nova (mas nunca sossegada e livre) – está a formar-se um outro espaço de comunicação entre as pessoas. Trocam-se e-mails, poemas, mensagens mais pessoais e próximas, textos, frases nunca anteriormente possíveis. Isto implica uma ação – que se revela necessária, às vezes, no fechamento em que estamos. Este espaço coletivo de comunicação (que não é um espaço público ou de opinião pública) vai desenvolver-se e, talvez, modificar um pouco as relações entre as pessoas”… (Público, cit.). Mas os filósofos não são detentores da sabedoria universal, não têm respostas, tendo, porém, o dever de ajudar a pensar. Se há dilemas dramáticos postos aos profissionais de saúde, que estão na linha da frente, temos de encontrar espaços de ação para os cidadãos comuns que podem ajudar. Já ficando em casa, podemos romper o ciclo infernal da transmissão do vírus.
Ainda Filomena Molder lembra Hermann Broch a dizer que todo o esforço humano está em transformar o medo da morte em gesto de dar forma à vida… E o povo diz que não devemos morrer de véspera. Importa combater e resistir, e assim podemos vencer a pandemia e prevenimos os piores efeitos da recessão económica anunciada. Somos chamados a combater a ilusão e a mentira. Mas como preservamos a liberdade e a responsabilidade? Lembremo-nos de Montaigne ou de Espinosa, de Pascal ou de Wittgenstein… “A vida é um bem, não é um facto”, dizia Fernando Gil. E à pergunta de Santo Agostinho: - pode o homem ser feliz e ser mortal? - responde Clarice Lispector – “amar a vida mortal, isso é a felicidade”. Eis, por que razão devemos aproveitar este momento para fazermos da cultura e da aprendizagem, do exemplo e da experiência marcas que compreendam a importância da diversidade e da nossa relação com os outros. Precisamos de ter a coragem de dizer a verdade e de a assumir plenamente. Como recusar a ilusão, num tempo de fake news e de limitação da liberdade e da democracia? “Se os erros lógicos forem identificados instantaneamente ou as motivações de quem fala compreendidas graças ao desmontar dos argumentos, torna-se mais fácil uma resposta rápida e eficiente”. – como nos ensina Eugénia Cheng em “A Arte da Lógica num mundo ilógico” (Temas e Debates, 2019). Por isso a educação e o primado da aprendizagem distinguem a civilização da barbárie. Em vez de berrar mais alto ou de dizer que somos estúpidos por discordar de alguém, devemos usar a lógica, pondo as pessoas de sobreaviso quanto às simplificações grotescas… A pandemia deixará lições? A recessão económica revelará a repetição dos erros passados? Como tomamos consciência da destruição do Planeta e do meio ambiente? Como compreender o papel das políticas públicas na mobilização da sociedade e na criação de valor? As incertezas podem ensinar-nos a lidar melhor com os problemas, desde que a vontade e entreajuda ocupem o lugar do egoísmo. Não viveremos, como Jorge Calado perguntava (Expresso, 28.3.20), uma reação da natureza ao desequilíbrio ecológico imposto pela ganância da humanidade?