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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

Há mulheres cuja voz é perturbadora e profunda como o tempo.

 

Tentávamos seguir o poder que nos sonhos nos tinha sido conferido pela música celta. Música também de Portugal, da Escócia, da Galiza, da Irlanda, música igualmente improvisada por trovadores; música que utiliza flautas e harpas e pianos e as línguas locais nas letras das músicas.

 

Sem que compreendêssemos porquê, sabíamos que iriamos encontrar por entre aquela escuridão, o predestinar da voz de Loreena McKennitt.

 

Era Primavera fria e no céu daquela noite só uma brecha de lua se deixava desvendar.

 

Seguíamos pelas ruas desertas procurando ouvir o rumo da voz desejada.

 

Os nossos olhos diziam a surpresa do nada no que era o tudo daquela noite sem sombras.

 

Todavia, caminhávamos, caminhávamos sem supor que a bússola dos nossos passos nos levaria a um largo imenso alumiado por lanternas suspensas das árvores.

 

De repente, no centro do ar de uma clareira, ao piano, uma mulher dona de magia, cuja voz de tão bela, de tão perturbadora, de tão profunda, nos seduzia, enquanto nós, agora abraçados, nos recordávamos termos dito um ao outro antes das trevas:

 

Till you come to me 

 

 
Teresa Bracinha Vieira

CONVERSÃO, DIA DA TERRA, 25 DE ABRIL

 

Numa experiência diferente do tempo, um tempo parado, vazio, parece, por um lado, que nada acontece de especial, por outro, na medida em que se está atento, percebe-se que a vida está aí para ser vivida e em interrogação constante. O vírus invisível e global isso fez: obrigou a parar e a pôr as perguntas essenciais. O que aí fica são algumas notas sobre este tempo novo.

 

1. São muitos os que se perguntam se vamos sair melhores, na convicção de que sim. Por mim, espero que sim, mas temo que, passada a catástrofe, tudo volte exactamente ao mesmo. Não esqueço aquelas palavras de Primo Levi que, ao sair de Auschwitz, constatou que “não saímos nem melhores nem mais sábios”. E viaja pelas redes sociais uma “graça”, talvez, infelizmente, verdadeira: “Vamos sair melhores?” – “Não. Porque isto é um vírus, não é um milagre”.

 

No entanto, é de um milagre que precisamos, ao sair deste pesadelo: sair melhores e mais sábios. Para isso, não se trata de mudar apenas isto ou aquilo, é urgente mudar o modo de pensar. Precisamos de uma conversão, como manda o Evangelho. Frequentemente, traduz-se essa conversão por “fazei penitência”, mas o que lá está é o verbo grego: metanoiête, que quer dizer: mudai o vosso modo de pensar, mudai a vossa mentalidade, começai a pensar de modo outro e a agir em consequência. Qual é o propósito da vida, o seu sentido mais profundo? É enriquecer, produzir cada vez mais, consumir sempre mais? Ou o bem-estar, o viver bem, num mundo que é de todos, na entreajuda para maior alegria e mais felicidade no sentido autêntico? Queremos continuar na religião de um progresso sem limites, que aliás não é possível num mundo que é finito, limitado? Não queremos viver melhor, com moderação, sem explorar a Mãe Terra nem os outros nem a nós, dentro de um modelo de progresso que assenta num montão crescente de vítimas? Talvez o nosso engano seja este: em vez de vivermos aqui, agora, vivermos, alienados, numa concepção de tempo, que é o tempo que a modernidade inventou: o passado é apenas o ultrapassado e o presente apenas a rampa de lançamento para um futuro de progresso sem fim. Mas, assim, neste modelo, quando vivemos e somos verdadeiramente?

 

2. E cá estão os dados dramáticos, na celebração do Dia da Terra, na passada Quarta-Feira, 22. Ai de nós, se, insaciáveis na satisfação dos nossos desejos não arrepiarmos caminho. Sirvo-me de alguns dados, recolhidos de um texto de Faustino Vilabrille: “Cuidar da Mãe Terra é cuidar dos seres humanos”, com números devastadores. Só alguns:

 

Gases com efeito estufa. Em 2018, o dióxido de carbono (CO2) aumentou uns 147%, o metano (CH4) uns 259%, o dióxido nitroso (N2O) uns 123%. O que quereríamos com milhões de carros, aviões, cruzeiros de luxo...?

 

Invadimos tudo com infinitas radiações electromagnéticas.

 

Os mares e os oceanos acabam por ser o depósito final do lixo do planeta: desde 1950 fabricámos mais de 8.000 milhões de toneladas de plástico. De todo o plástico que há nos oceanos, 268.940 toneladas são microplásticos que, ao ser ingeridos pelos peixes, passarão à nossa cadeia alimentar.

 

Destruímos milhões e milhões de hectares de florestas: só no ano 2000 foram queimados 350 milhões.

 

Resíduos. Milhões de toneladas de substâncias químicas tóxicas são espalhados dos modos mais diversos, como petróleo, produtos radioactivos, explosões atómicas, produtos químicos, pesticidas, resíduos urbanos, hospitalares, sanitários, fabris...

 

A Terra é a nossa Mãe, e ela pode viver sem nós, mas nós não podemos viver sem ela. Cuidar dela é cuidar de nós. Ela é a nossa casa comum e tomamos agora cada vez mais consciência de que formamos uma única humanidade. Precisamos de uma “ecologia integral”, como sublinha permanentemente o Papa Francisco, porque quem mais sofre com os maus tratos do planeta são os mais pobres. É preciso pensar nos 815 milhões de pessoas que passam fome (segundo a ONU, com a crise que acompanha a Covid-19, o número pode duplicar) enquanto outros (será que fazemos parte deles?) esbanjam 1.400.000 toneladas de comida ao ano e 1.500.000 toneladas de roupa. “É injusto exigir ao planeta produzir tanto para a seguir esbanjar, e tantas pessoas a passar fome, nudez e frio. A Mãe Terra está a pedir-nos um pouco de austeridade, solidariedade e amor para o bem de todos e de toda a Criação.” E os milhões de milhões de euros ou dólares em gastos militares? E chegamos ao absurdo de a um investigador de alta qualidade se pagar por ano uns 100.000 euros, mas a um desportista de elite, que dá pontapés numa bola, pagamos 30, 50 ou até 100 milhões ao ano. “A sério: não estamos um pouco loucos?”.

 

No Dia da Terra, lá esteve o Papa Francisco, que a História não esquecerá também por causa da encíclica histórica sobre a ecologia, Laudato Sí, a pedir que “se crie um movimento de base, de baixo para cima” para conseguir “a conversão ecológica”. “Criados à imagem e semelhança de Deus, estamos chamados a cuidar e a respeitar todas as suas criaturas, mas com amor especial e compaixão os nossos irmãos, sobretudo os mais débeis”. “A presente pandemia está a ensinar-nos que só se estivermos unidos e encarregando-nos uns dos outros poderemos superar os actuais desafios globais e cumprir a vontade de Deus, que quer que todos os seus filhos vivam em comunhão e prosperidade. Falhámos na protecção da Terra, nossa casa-jardim, e na protecção dos nossos irmãos. Pecámos contra a Terra, contra o nosso próximo e, em última análise, contra o Criador, Pai bom.”

 

3. Devia celebrar-se o 25 de Abril? Quem poderá pôr isso em causa? Mas as comemorações tinham de ser como foram, na Assembleia da República? Não. Foi incompreensível e escandaloso que, enquanto a Páscoa foi celebrada como foi, no confinamento, e o Papa a celebrar sozinho, e bem, os funerais, e bem, têm de ser celebrados como são, numa míngua arrepiante de possibilidades de despedida e de expressão da dor, enquanto os cidadãos continuam confinados, e bem, o Parlamento se mantivesse irredutível para as comemorações, incluindo convidados, que deveriam ter respondido que, entre uma ordem — ficar em casa — e um convite, deveriam ter obedecido à ordem. O escândalo é tanto maior quanto era possível uma comemoração condigna: com o discurso do Presidente da República e um concerto de música clássica (a nona Sinfonia de Beethoven, por exemplo) e canções de Abril, a transmitir pelas televisões e outros meios de comunicação social.

 

Dito o que aí fica dito, penso que os deputados e os políticos em geral fariam bem em reflectir sobre as razões do enorme afastamento e desinteresse da população e, concretamente, dos mais jovens, em relação a estas comemorações e à política em geral.

 

Na presente situação de catástrofe pandémica, sei que a prioridade é dar as mãos, colaborar lealmente, não estamos em tempos de luta na atribuição de erros, mas, por outro lado, a caminho de um lento desconfinamento gradual e com as devidas cautelas — Ângela Merkel, por exemplo, avisou na Quinta-Feira que a pandemia está ainda “no começo” —, não se pode de modo nenhum deixar de pensar criticamente. Tenho insistido constantemente nisso, e não me canso de fazê-lo: escola vem do grego scholê, que significa ócio, não o ócio da preguiça, mas tempo livre para homens e mulheres livres pensarem e governarem a polis, e tenho alertado para a ameaça de ter acabado esse ócio, porque tudo, incluindo a política, se tornou negócio, do latim nec/otium, negação do ócio, e a técnica (e os negócios têm sobretudo a ver com técnicas), não pensa, apenas calcula, como aprofundou o filósofo Martin Heidegger.

 

Neste contexto e face à crise económica, social e política já presente e que vai acentuar-se dramaticamente — será mesmo verdade que não vai haver medidas de austeridade?! —, permito-me voltar a textos meus, que aqui publiquei muito antes da pandemia (“As maravilhas de Portugal”, Novembro de 2018, e “Sobre as eleições”, Setembro de 2019), nos quais não embarcava na “aparente euforia nacional”.

 

Algumas citações. Em 2018. “Quanto ao futuro, receio o abalo que acontecerá com a subida dos juros e se alguma crise internacional chegar. Há uma almofada suficientemente sólida de suporte? De qualquer forma, a dívida... E os portugueses não poupam, porque se criou a percepção de que tudo está sob controlo, e desculpam-se pensando também no que os Bancos cobram e as pessoas ainda se lembram de que vários Bancos faliram, e, até agora, não aconteceu nada, excepto que os contribuintes vão ter de continuar a pagar... O turismo continuará com a força do presente? Que investimentos se tem feito? O crescimento da economia tem derivado sobretudo da procura interna, e os portugueses até se endividam para consumos dispensáveis e viagens.”

 

Em 2019. “Dado que vivemos internamente mais de uma situação conjuntural favorável do que de investimentos sólidos para um desenvolvimento estrutural sustentável, receio que o país venha a confrontar-se com percalços inesperados. Tenho a sensação de que a aparente euforia tenha na sua fonte um manto de mentira e ilusão”. “Recentemente, a anterior Procuradora-Geral da República afirmou que o Estado está ‘capturado’ por redes de corrupção e compadrio. Joana Marques Vidal lamentou concretamente: Se nós pensarmos um pouco naquilo que são as redes de corrupção e de compadrio, nas áreas da contratação pública, que se espalham às vezes por vários organismos de vários ministérios, autarquias e serviços directos ou indirectos do Estado, infelizmente nós estamos sempre a verificar isso’.

 

Que compromisso assumem os Partidos neste domínio gravíssimo?”. “Ponto decisivo: que os Partidos esclareçam o que pretendem fazer em relação à justiça, não só à justiça social — há muita miséria no país (acrescento agora: e vai aumentar assustadoramente) —, mas à justiça-poder judicial, órgão de soberania, independente. A justiça continua lenta e, por isso, pouco eficaz, e, se se ler e ouvir a opinião pública: que ela foi atingida pelo véu de alguma desconfiança. Lembro o Presidente da República referindo-se, no passado 10 de Junho, às ‘falências na justiça’: Portugal não pode ‘minimizar cansaço, corrupções, falências na justiça’. Neste contexto, a Banca. Uma catástrofe! Há anos que o Estado, isto é, os contribuintes, andam a pagar, a tapar buracos com milhares de milhões de euros, e não há consequências para as más administrações e os desvios?”

 

Mais. “O que vão fazer os Partidos para que haja transparência na política e com os políticos? Sinceramente, atendendo às suas responsabilidades, penso que os políticos são mal pagos e até pergunto: será essa uma das razões por que para as tarefas políticas a maior parte das vezes não vão os melhores e estamos cheios de incompetentes? Mas, por outro lado, verifico que imensa gente se bate por, como diz o povo, “ir para lá — para onde? Para o poder. Há muita sedução pelo poder, pois ele é ‘o maior afrodisíaco’ (Henry Kissinger dixit). Mas também haver muitos privilégios que moram para essas bandas. Que haja, portanto, transparência! Donde vêm tantas regalias e privilégios auto-concedidos? Já não há vergonha em Portugal? Leio que subvenções vitalícias para políticos custam milhões de euros, que extras quase duplicam o salário dos deputados (...). E a maior parte dos deputados não morrerão de cansaço, a trabalhar no e para o Parlamento, como denunciou numa entrevista recente Macário Correia: ‘Metade dos deputados no Parlamento não faz nada de concreto ou sequer útil, anda lá só a ocupar o tempo.’ E ficam sempre aberturas para contactos presentes e sobretudo futuros, numa ligação in-transparente de política e negócios...”.

 

“É essencial a racionalidade política em ordem ao bem comum, bem para lá dos interesses próprios e partidários. E a competência. É necessário pensar sempre mais longe e aproveitar a oportunidade para um consenso mínimo nacional, com duração suficiente, nos domínios da saúde, da educação, da justiça, da segurança social, da política internacional. Numa hierarquia de valores, que anda muitas vezes, desgraçadamente, transtornada. Para evitar o sobressalto permanente. E com que geoestratégia?”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 ABR 2020

ALMAS VOADORAS

 

Era uma tarde de terça feira. Voltara de uma tarde de ensaios de guitarra.

Estava apreensiva, pois tinha conversado sobre a hipótese de ficarmos fechados em casa mais cedo do que poderíamos esperar.

Parei.

Pus os fones e decidi pôr uma playlist a que chamo "banda sonora da minha vida". Gosto bastante dela, pois ela tem o poder de me transportar para o papel de uma personagem principal de um daqueles filmes antigos intemporais.

Naquele momento, decidi, que durante aquele passeio costumeiro, interpretaria esta personagem que idealizei para mim mesma.

Sentei me na borda do passeio, a ver o pôr do sol que espreitava entre prédios.

Quando já não conseguia ver mais, pus-me de pé, e decidi ir pelo caminho mais longo.

Não tinha pressa.

A luz do ar era roxa.

Quando me recordo desta tarde, é a primeira coisa de que me recordo.

Ataques de sinestesia?

Olhando para trás, talvez estivesse assustada, e este pequeno teatro fosse uma forma de me abstrair de tudo em geral.

Lembro-me de quando cheguei a casa. Estava feliz, despreocupada.

Contrastava um pouco com o meu "eu" apreensivo no princípio do caminho.

Isto foi há 47 dias.

Todos os dias risco no calendário o dia anterior, para saber em que dia estou.

Durante a quarentena, costumo comparar-me a um ser um pouco adormecido, mas bastante pensativo.

Todos os dias parecem domingo (aquele dia em que toda a gente está um pouco deprimida, por no dia seguinte ser segunda feira).

Acho que dos "fios" que me "ligavam à terra", só restam aqueles que me conferem mais conforto, alegria e companhia.

Arte, amigos, música, livros, família...

Ao menos uma coisa boa trazida pela quarentena.

Aprendemos forçosamente a "filtrar" o que a nossa alma precisa para voar cada vez mais alto.

Pois, se o nosso corpo está preso, é urgente que as nossas almas voem mais alto do que alguma vez voaram.

Oxalá esta quarentena traga mais almas voadoras.

 

Teresa Souza d’Alte

NESTA HORA

 

 

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exilio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

 

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

 

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

 

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

 

Não basta gritar povo
É preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

 

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

 

Para construir o canto do terrestre
- Sob o ausente olhar silente de atenção -

 

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen | "O nome das coisas", 1977  

 

 

A VIDA DOS LIVROS

 

De 27 de abril a 3 de maio de 2020

 

Acaba de ser publicada em Espanha, pela Editorial Trotta, Jürgen Habermas, Una Biografia, da autoria de Stefan Müller-Doohm, obra dada à estampa em Berlim em 2014, na qual encontramos o percurso intelectual e cívico de quem é indiscutivelmente uma das consciências morais da Europa contemporânea.

 

 

IMPORTÂNCIA DA LEITURA
Em tempos de confinamento, a leitura é sem dúvida o melhor remédio, desde que temperada por algum sol e por contacto com os amigos através dos meios técnicos que o progresso permite. Os livros e a música são preciosos companheiros, que permitem abrirmos outras janelas, para além das reais, que nos levam a usufruir a luz irregular que tem caracterizado a meteorologia nestes dias. Mas vou ao que hoje me traz. E neste momento de tantas incertezas, em que os egoísmos e a cegueira do curto prazo tendem a prevalecer, é importante recordarmos alguém que representa a necessidade de reflexão e do espírito da Ilustração, não numa lógica fechada e positivista, mas numa perspetiva aberta à diversidade e capaz de ligar as ideias e os acontecimentos, a razão e os sentimentos. “Babelia”, o suplemento literário de “El Pais”, reservou a sua capa a Jürgen Habermas, que nos seus noventa anos se mantém ativo, de um modo persistente, na compreensão da importância do tempo, da decisão e da reflexão na vida democrática. O tema da democracia está na ordem do dia. Há nuvens negras no horizonte e temos de estar despertos para os perigos que espreitam. Nada há de mais sério. E se hoje há urgência na prevenção e na ação, para que a saúde pública não contrarie a democracia e possa estar associada à retoma na economia e na sociedade, é importante falar do “patriotismo constitucional” e da “democracia deliberativa”, de que trata Habermas, não apenas nas democracias nacionais, mas também na vida supranacional, em especial europeia. Num momento em que há sinais preocupantes, em que a dúvida se confunde com a descrença, e em que o desalento alimenta a desistência, importa não esquecer o que nos diz o filósofo: “A verdade não existe no singular”, pelo que a legitimidade democrática deve ligar-se à mediação das instituições e ao envolvimento dos cidadãos.

 

NO DEBATE EUROPEU…
No debate europeu, infelizmente, há sinais de recusa de uma elementar solidariedade que contrarie a fragmentação e a lógica do salve-se quem puder. E Habermas lembra as origens da União Europeia, como construção de paz e desenvolvimento, capaz de integrar as diferenças, sem esquecer a memória histórica, não numa perspetiva de culpa (se lembrarmos o Holocausto), mas sim de responsabilidade. E a tarefa do intelectual tem de ser a de melhorar o lamentável nível do discurso das confrontações, evitando a todo o custo o cinismo. Um filósofo intelectual é contemporâneo dos nossos contemporâneos – e daí a sua necessária inserção numa ética de responsabilidade. É esse o papel que Habermas assume, com todas as limitações e virtualidades – lembrando tantas vezes aos seus alunos: “Nunca te compares com um génio, mas trata sempre de criticar a obra de um génio”. Nesta perspetiva, ainda jovem, o filósofo ousou afrontar Heidegger, em 1953, num texto publicado no “Frankfurter Allgemeine Zeitung” com o título significativo “Pensando com Heidegger contra Heidegger”, menos pelo desprezo que o velho pensador tinha pela igualdade democrática, e mais pela recusa da autocrítica e pelo facto desse silêncio contaminar irremediavelmente a atitude filosófica. Afinal, a principal tarefa dos que se dedicam ao ofício de pensar é a de fazer luz sobre os crimes que se cometeram no passado e manter desperta a consciência sobre eles? Lembrar para que não voltem a acontecer, mas evitando o ressentimento e a vingança. Heidegger evitaria a polémica e responderia que a sua preocupação tinha a ver com a relação entre o homem e a técnica. Mas Habermas contraporia que a sua crítica não tinha a ver com o envolvimento político com o nacional-socialismo em 1933, mas com a teimosa negativa em reconhecer o seu erro a partir de 1945. No fundo, “a discussão sobre o comportamento político de Martin Heidegger não poderia nem deveria servir propósitos de difamação e desprezo sumários. Como nascidos depois, não podemos saber como nos teríamos comportado nessa situação de ditadura”.

 

O ENCONTRO COM ADORNO
Pouco depois, Habermas chamaria a atenção de Theodor W. Adorno com um texto publicado na revista “Merkur” “A dialética da racionalização”, no qual analisava a alienação gerada tanto pelo trabalho numa cadeia de montagem, como no consumo sem limites. E premonitoriamente avisava: «da produção ao transporte, passando pela comunicação ou pelo ócio, a “cultura das máquinas” terminará por dominar as nossas vidas. Cada dia, estaremos mais longe da natureza e do resto dos seres humanos». Apesar da resistência de M. Horkheimer, pelo pendor pacifista de Habermas na altura, este ingressou, em 1956, no célebre Instituto de Investigação Social, centro da chamada Escola de Frankfurt, o dito Café Marx, que Lukács designava depreciativamente como “Grande Hotel Abismo”… Adorno admirava o pensador, e para sua mulher Gretel ele fazia lembrar Walter Benjamin, o grande amigo, que se suicidara em Port Bou, em 1940, perseguido pela Gestapo… Ao longo de 650 páginas, a biografia acompanha um percurso extraordinário, em que, além de Adorno e Gadamer, encontramos os grandes dilemas do pós-guerra, num contexto de complexidade, diversidade e incerteza. E fica claro que a reflexão filosófica e o compromisso social são faces de uma mesma moeda – a necessidade da Ilustração… E é esse sentido de responsabilidade crítica que marcará a decisiva importância do pensador na atualidade – designadamente no tocante à defesa de uma Europa como fator de paz, de desenvolvimento e de diversidade cultural. Daí a necessidade de domesticar o capitalismo com a democracia garantida por um Estado de direito com “rosto social”, com superação do “pessimismo antropológico” que caracterizou a primeira fase da Escola de Frankfurt. Os conceitos de conhecimento, liberdade e progresso constituem valores de uma razão ilustrada, no contexto de uma “modernidade”, como “projeto inacabado”, por contraponto à “condição pós-moderna” de Jean-François Lyotard… Lembrando ainda a democracia quando há sinais da sua fragilidade em tempos de peste, recordo outro livro, Penser la Justice, constituído por entrevistas a Michael Walzer por Astrid von Busekist, (Albin Michel, 2020). Para o filósofo norte-americano, democracia e justiça têm de estar ligadas. Aos grandes sistemas, Walzer prefere as “pequenas teorias”, acreditando num Estado social, no qual as nações e as fronteiras sejam garantes da liberdade das pessoas. E, em seu abono, lembra o Profeta Amos, para quem não bastava condenar a injustiça e a idolatria, sendo necessário construir em concreto a sociedade mais humana. Tanto Walzer como Habermas insistem numa consciência crítica capaz de entender a sociedade em mudança, em conflito e em diálogo, num contexto plural. E nessa perspetiva se explica a anedota que corre nos meios intelectuais: um professor norte-americano aterra na Alemanha, toma um táxi e diz: “Leve-me à Escola de Frankfurt!”. E o taxista surpreendido responde: “A qual delas?”… 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Domingo da Ressurreição do Senhor, e esta segunda-feira de Páscoa, neste confinamento largo pelo privilégio de já viver exilado e isolado no campo, feito anacoreta (ou retirado no deserto) e monge (em grego, monachos significa sozinho), têm sido dias de nova reflexão sobre o Jesus histórico e o Ressuscitado. Até escrevi, em breve mensagem a uma querida amiga, precisamente em Dia de Aleluia: «A Páscoa é sempre - para mim - um passo difícil, na medida em que nos (me) leva a ir do histórico ao cerne da fé... Os únicos testemunhos coevos  que conheço da Ressurreição de Jesus são os constantes de textos neotestamentários. Tenho pensado na escrita de um texto sobre isto, apesar de, provavelmente, poder interessar a muitos poucos».

 

   Mas, Princesa de mim, sem me esquecer da promessa que te fiz de falar sobre Pôncio Pilatos, Tácito e Anatole France, aproveito esta oportunidade para te traduzir o início do artigo Ponce Pilate do Dictionnaire amoureux de Jésus do historiador francês Jean-Christian Petitfils (Paris, Plon, 2015): Penso muitas vezes na extraordinária e sulfurosa fama póstuma desse prefeito da Judeia que condenou Jesus ao suplício da cruz, quando afinal a gente tudo ou quase tudo esqueceu da vida dos poderosos Césares romanos. Todos os domingos, centenas de milhões o mencionam ao recitar o Símbolo dos Apóstolos ou Credo de Niceia-Constantinopla: «Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado...»

 

   Sub Pontio Pilato: tal referência nada tem de despicienda. É mesmo essencial para os dados da fé. Significa que a Incarnação não é um mito, um conto de fadas, aquilo, precisamente, que dela dizia o filósofo incréu Paul-Louis Couchoud no seu "Mystère de Jesus" (1924). Pois que, para ele, Jesus não é uma personagem histórica, mas uma figura mítica idealizada, um ser divino paulatinamente elaborado pela consciência cristã. «Admito todo o Credo, escrevia ele a Jean Guitton, menos essa inclusão de sub Pontio Pilato.» A presença intempestiva do prefeito romano num texto cristão incomodava-o. Já que ela é, pelo contrário, uma caução histórica da existência de Jesus.

 

   Apoiando-se nos escritos coevos de cronistas como Flavius Josephus, Fílon de Alexandria  e sobretudo Tácito, os historiadores durante muito tempo consideraram que Pilatos era "procurador" na Judeia. [Na verdade, como se veio a verificar depois, por uma lápide descoberta no teatro romano de Cesareia, o seu título (e sua função ali), no reinado de Tibério, ao tempo de Jesus, era o de "Prefeito", isto é, administrador público exercendo poderes militares e judiciais, sendo nessa sua capacidade que interveio no processo do Nazareno].

 

   Não sabemos bem se a aposição do Titulus damnationis  (razão da condenação), inscrito numa tabuinha de madeira no alto da cruz, era prática corrente. No caso de Jesus, o título INRI (Iesus Nazarenus Rex Iudeorum), terá sido redigido por Pôncio Pilatos. Tal redação consta do Evangelho de João, transcrevendo o que testemunhas oculares observaram. É interessante reproduzir nesta carta para ti, Princesa de mim, um comentário de Jean-Christian Petitfils. Traduzo:

 

   Foi intencionalmente que os sumos-sacerdotes Anás e Caifás denunciaram Jesus como perigosos Nazareno, não enquanto habitante da insignificante aldeia de Nazaré, na baixa Galileia, mas antes como membro do clã davídico que tinha esse nome que assim fazia dele um pretenso Messias político.

 

   Ao interrogar Jesus, Pilatos tinha-se dado perfeitamente conta de que o prisioneiro nada tinha a ver com qualquer chefe de bando com aspirações a uma realeza temporal. Tinha-lhe dito: «O meu reino não é deste mundo». E vira bem como os sumos-sacerdotes o procuravam manipular. Mas, fingindo segui-los, ordenou que o texto fosse inscrito nas três línguas utilizadas na Judeia: em aramaico, língua corrente; em latim, língua oficial do império; e em grego, usado nos meios comerciais e trocas internacionais.

 

   Estigmatizando assim a expectativa messiânica de Israel, Pilatos troçava dos sumo-sacerdotes e dos que haviam tentado obrigar a condenar Jesus. Escreve S. João que «essa tabuleta foi lida por muitos judeus porque o lugar onde crucificaram Jesus era próximo da cidade». Quando perceberam que tinham sido enganados, Anás e Caifás protestaram: «Não devias escrever "Rei dos Judeus" mas que "ele disse que era Rei dos Judeus"». Pilatos logo arrumou a questão: «O que escrevi está escrito».

 

   Petitfils, e outros historiadores nossos contemporâneos deduzem da leitura do texto grego original, em que essa resposta de Pilatos, dita em grego, sofre todavia de latinismo, terá si registada por testemunhas presenciais, entre as quais estava o próprio João Evangelista, que seria membro da alta aristocracia de Jerusalém e assim a teria recolhido da própria boca do Prefeito romano.

 

   Aliás, em muitos passos do seu Evangelho João insiste em referir testemunhos presenciais, muitos deles seus próprios. No relato da Paixão e Morte de Jesus é meticuloso na nomeação das pessoas presentes aos atos sucessivos que vai narrando, bem como no próprio silêncio em redor da Cruz. O texto de João é surpreendentemente magnífico pela sua íntima densidade, oferecida num cenário quase cinematográfico: ao assistirmos a uma cena, simultaneamente vamos descobrindo e pensarsentindo um mistério que apocalipticamente nos penetra. 

 

   Ao lermos o capítulo 19, Princesa de mim, vimos com minúcia o exterior aparente dos atos e dos factos, e podemos imaginar os rostos dos presentes, mas também sentimos o que tantos silêncios nos dizem da perplexidade e do sofrimento anímico das pessoas. É uma reportagem.

 

   Mas o capítulo 20 "apenas" interpela o íntimo dessa gente e de nós mesmos perante a revelação e manifestações posteriores de um facto único, que ninguém presenciou nem podia presenciar: a Ressurreição do mesmo Jesus que víramos morrer e ser sepultado. É um apelo à metanoia.

 

   Pois muitas vezes pensossinto que uma coisa é a nossa compreensão, outra será o poder de Deus. Aliás, este nem sequer poderá bem ser o que por poder entendemos. Tenho para mim, desde a minha mais tenra adolescência, que o poder de Deus não é qualquer faculdade de impor sem interrogar, de obrigar sem consulta.  Antes me soa como um apelo, uma chamada a sair dos meus limites, para ir ao encontro do que não conheço, ou ainda não sei entender. Nesse sentido se abre para mim a religião como espaço e tempo de libertação. Isto que te escrevo agora, Princesa de mim, ocorre-me neste instante como sendo aquilo que tantas vezes te disse quando te falava de me sentir simultaneamente no tempo mensurável e fora dele.

 

   O tal João Evangelista - de que não tenho foto alguma, nem sei ao certo, nem cientificamente, quem foi exatamente - é meu companheiro e irmão, sei que vivo com ele todos os dias. Confio nele porque me diz o que viu e ouviu presencialmente, e assinala o que ouviu dizer e testemunhar. Afinal, todos nós, seres humanos e limitados, somos honestamente assim: até os cientistas vão tendo cada vez mais de considerar o adquirido por quem os antecedeu. O início do capítulo 20 do conto evangélico de João refere: No primeiro dia da semana, Maria Madalena chega cedo ao túmulo, estando ainda escuro. E vê a pedra retirada do túmulo. Então desata a correr e vai ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, o que Jesus amava, e diz-lhes: «Levaram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o puseram!» Saíram então Pedro e o outro discípulo e foram até ao túmulo. Corriam juntos, e o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao túmulo; e, espreitando, vê depostos os panos. Porém não entrou. Chega então também Simão Pedro, seguindo atrás dele, e vê os panos depostos, e vê que o sudário, que estivera à volta da cabeça dele, não jazia juntamente com os panos, mas dobrado à parte em lugar próprio. Então o outro discípulo, o que chegara primeiro ao túmulo, entrou e viu, e acreditou. Ainda não  tinham entendido o passo da Escritura, segundo o qual ele tinha de ressuscitar dos mortos. Os discípulos voltaram de novo para junto dos seus.

 

   Maria Madalena ficou de pé a chorar no exterior do túmulo. Enquanto chorava, espreitou para dentro do túmulo e viu dois anjos sentados, vestidos de branco, um à cabeça, outro aos pés, no sítio onde jazera o corpo de Jesus. E eles dizem-lhe: «Mulher, porque choras?» Ela diz-lhes: «Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram». Enquanto ela dizia isto, voltou-se para trás e vê Jesus de pé, e não sabia que era Jesus. Jesus diz-lhe: «Mulher, porque choras? Quem procuras?» Ela, pensando que era o jardineiro, diz-lhe: «Senhor, se o levaste, diz-me onde o puseste e eu levo-o.» Diz-lhe Jesus : «Maria!» Ela, voltando-se, diz-lhe em hebraico: «Rabbouni!» (o que quer dizer Mestre). Jesus diz-lhe: «Não me toques. Ainda não ascendi para o Pai. Vai para junto dos meus irmão e diz-lhes: "Subo para meu Pai e vosso, Deus meu e Deus  vosso.»

 

   A cena do "Noli me tangere" encontra-se largamente representada na iconografia cristã. A tradução literal da expressão latina da Vulgata será "Não queiras tocar-me". O corpo de Jesus ressuscitado é já um corpo glorioso, isto é, incorruptível, intocável. Não é como o de Lázaro  -  que Jesus tirara do reino dos mortos para devolver à vida terrena - um corpo restituído à animação da sua própria carne, como que apenas arrancado à dormição em que se encontrara. O Corpo de Cristo está já noutro mundo, onde nem sequer os seus discípulos poderão ir agora, e no mundo presente é o Corpo Místico que formam, na Eucaristia comum, aqueles que acreditam e se reconhecem pelo amor fraterno. Por isso mesmo se celebra, na Eucaristia, o Mistério da Fé como anúncio da morte, proclamação da ressurreição e esperança no regresso do Senhor Jesus, na hora em que todos seremos glorificados com ele.

 

   Mas não deixa de ser curioso que, no mesmo capítulo 20 de João, a seguir ao relato do "Noli me tangere!" e do anúncio feito por Maria Madalena, bem como da presença inesperada de Jesus que surge no meio dos seus discípulos reunidos numa casa totalmente fechada (pois tinham medo dos judeus), atravessando barreiras físicas e apresentando o seu corpo glorioso, seja também narrado o episódio da permissão dada a Tomé, uma semana depois, de tocar as feridas visíveis no mesmo corpo, para que, assim confirmando a sua realidade, acredite que é o corpo ressuscitado que tanto padecera... «Meu Senhor e meu Deus!» - exclama o desconfiado discípulo. «Porque me visteacreditasteBem aventurados os que não viram e acreditaram».

 

   Tal como quem não experimentou ainda a sua morte, não sabe o que esta é e apenas pode sofrer com a de outros, assim também quem ainda não ressuscitou terá de se contentar com acreditar na Ressurreição e esperar a sua. O próprio Tomé, mesmo depois de ter visto e tocado, terá tido que acreditar. A divina misericórdia interroga a nossa esperança.

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

COMO VOLTAR À TONA DE ÁGUA…

 

A retoma da economia depois da pandemia do covid-19 vai demorar. E vai ocorrer gradualmente, consoante as atividades económicas e os países. A prevenção contra a pandemia vai ter de continuar, até porque vai haver grandes assimetrias na superação da doença. A livre circulação das pessoas será afetada e o tema fundamental vai ser o do combate ao desemprego e o da criação de valor. Começando pelas lições de 2008, importa recusar a ilusão monetária e financeira. O endividamento e o mero aumento da circulação monetária não criam riqueza. Temos de lembrar a regra de ouro das Finanças Públicas – só pode haver dívida pública para financiar despesa de investimento reprodutiva. Não basta lançar dinheiro sobre os problemas. E se aumentam as desigualdades, importa garantir a justiça distributiva – horizontal, com salários e impostos justos que garantam uma partilha de riqueza e a criação de valor; e a vertical, pela equidade intergeracional, reduzindo o endividamento.

 

Depois da crise, a prioridade terá de estar nas políticas de emprego, orientadas para a satisfação das necessidades fundamentais, o combate ao desperdício, a promoção de poupanças virtuosas e a melhoria da qualidade de vida, para que o desenvolvimento se oriente para as pessoas. Mas o tema do emprego obriga a repensar o tempo de trabalho. A situação atual de confinamento e de teletrabalho, e a política gradual de retoma, ensinam-nos que os horários de trabalho presencial terão de ser repensados. O grave problema demográfico dos países ricos obriga a criar políticas de conciliação familiar com horários flexíveis. As licenças de paternidade para marido e mulher e os horários flexíveis para os pais tem permitido melhorar as taxas de natalidade nos países nórdicos, sem esquecer o cuidado dos mais velhos.

 

Terão de ser considerados, assim, “bancos de tempo” com flexibilidade, em vez de uma lógica de horários rígidos. Isto, para conciliar as necessidades, a disponibilidade individual e o melhor aproveitamento das capacidades disponíveis. Os “bancos do tempo” permitirão acorrer a uma multiplicidade de tarefas sociais que têm de ser asseguradas por todos. Não devemos esquecer que a inovação vai obrigar à ligação das políticas do Estado, do mercado e das iniciativas privada, social e pública não estatal. Por iniciativa pública não estatal entendemos a das instituições sociais, culturais, académicas e científicas de utilidade pública ou natureza cooperativa. As políticas públicas têm de ser consideradas como catalisadores económicos e sociais. A inovação científica obriga a que a lógica do lucro não impeça a difusão do conhecimento. A criação de valor dependerá da articulação do Estado e da sociedade. A lógica Silicon Valley tem de ser completada com planeamento estratégico global e com redes coordenadas de informação e conhecimento.

 

Mas não haverá inovação sem aprendizagem. Daí uma atenção necessária à educação e à formação ao longo da vida. Uma parte dos “bancos do tempo” tem de ser ocupada com formação contínua relevante, afinada individualmente. Por outro lado, o ensino profissional terá de articular os níveis secundário e superior, com atenção à cooperação entre Universidades e Politécnicos. Não deve haver becos sem saída, nem canais rígidos e não comunicáveis entre si. Prosseguimento de estudos, vida ativa, mobilidade e cooperação internacional (Erasmus) têm de se articular.

 

Numa palavra, a prioridade é a promoção de valor e de um desenvolvimento justo e sustentável. O “doce comércio” de Montesquieu tem de se completar pela subsidiariedade. Urge tornar a informação conhecimento, e o conhecimento sabedoria. Para contrariar os egoísmos, temos de favorecer a solidariedade e o cuidado. Com instituições mediadoras, participadas e representativas, atentas a uma justiça complexa e equitativa, que favoreça a coesão e a sustentabilidade, é a democracia das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas que está em causa. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
in Jornal Expresso | 18 de abril de 2020

ATORES E ESPAÇOS TEATRAIS NO SÉCULO XVII EM LISBOA

 

Em publicações e evocações diversas, temos referido um documento do Município de Lisboa, datado de 21 de novembro de 1622, que relata a situação e atividade dos edifícios, pátios e espaços teatrais diversos na cidade.

 

 A relevância decorre efetivamente de dois aspetos determinantes: de um lado, a intervenção direta da autoridade municipal no que respeita à regulamentação da atividade de produção de espetáculos teatrais, em si mesmo considerada, e tendo em conta as implicações sociais e pessoais que a mesma envolve; e simultaneamente, a própria regulamentação da atividade laboral e artística dos comediantes envolvidos.

 

E tenha-se presente que a situação portuguesa, no contexto da época, era afetada pela dominação filipina então em curso (estamos, repita-se, em 1622) o que no ponto de vista cultural envolvia óbvias ambiguidades; designadamente pela preponderância crescente da intervenção castelhana - e estamos a 18 anos da Restauração, com todas as implicações políticas e culturais inerentes.

 

E importa ainda recordar que na época o espetáculo teatral fazia-se em espaços muito variados, designadamente em Lisboa, onde a coexistência de Teatro-edifícios com a tradição histórica dos Pátios ainda dominava a produção teatral. De tal forma que se definiu uma tradição de continuidade desses espaços de espetáculo, desde os Pátios aos Teatros.

 

Ora em 1888, Eduardo Freire de Oliveira divulgou um documento do Município de Lisboa, datado de 21 de novembro de 1622, que procede à regulamentação da atividade de espetáculo. 

 

Trata-se de um vastíssimo documento, que aqui em parte transcrevemos, procedendo à devida atualização ortográfica.

 

Diz então o documento:

 

“(...) Deem despacho aos comediantes, para que  representem no pátio em que agora o fazem, enquanto não houver outro concertado, capaz de se poder representar nele,  ao que se satisfaz com dizer de palavra ao autor que fosse continuando a representar aonde o fazia, até se lhe ordenar cousa: porém, pareceu significar (...) o grande dano que resulta do pejamento da rua das Arcas donde estão oficiais arruados e não podem trabalhar em seus ofícios nem vender e dar expediente às suas obras o dia que ali se representa de mais de estar a rua impedida, que com dificuldade pode uma pessoa passar a cavalos por elas além das brigas que por estes respeitos são causadas”...

 

E cita então o Pátio das Fangas da Farinha e o Pátio da Rua das Arcas como dois espaços determinantes da atividade cénica na época.

 

 

E acrescente-se que em 1771 sendo Presidente do Senado de Lisboa o Conde de Oeiras, filho do Marquês de Pombal, é criado por Decreto de 30 de maio daquele ano uma chamada Sociedade para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte, a qual antecedeu em séculos as infindáveis entidades públicas de apoio à atividade de teatros, numa “tradição” que dura até hoje!...

 

 

 

 

 

 

DUARTE IVO CRUZ

ANSELMO BORGES: "É POSSÍVEL QUE OS CATÓLICOS SE SINTAM ABANDONADOS"

 

Em tempos de pandemia, o teólogo Anselmo Borges questiona o que está atrás das portas fechadas das igrejas, o que se passa com a humanidade que deixou as praças vazias em todo o mundo – sem esquecer a de São Pedro.

 

O padre e teólogo Anselmo Borges refere nesta longa entrevista que tem tido muito tempo nas últimas semanas para pensar, ler, andar... Ao mesmo tempo, tem sido confrontado com uma Igreja Católica bastante diferente da que tem existido há dois mil anos, seja por ver o Papa Francisco sozinho na Praça de São Pedro a falar ao mundo e a celebrar a Páscoa, bem como por se confrontar com a interrupção de todas as celebrações religiosas desde há semanas e de uma forma tão radical que jamais achara ser possível.

 

Esta entrevista mostra um pensador diferente de anteriores conversas, dir-se-ia um crente que foi mais do que nunca obrigado a recorrer à sua reflexão de décadas, aos ensinamentos da Bíblia e aos de muitos teólogos e cientistas sociais – a favor e contra a instituição Igreja e estudiosos da fé – com quem se deu ou estudou, de modo a ser capaz de repor a ordem do seu pensamento perante a catástrofe que atingiu toda a humanidade sem um aviso prévio.

 

Sendo uma voz critica de muitos comportamentos ostentatórios da Igreja, estudioso de novas formas do existir contemporâneas, como as questões que a neurociência vai desbravando entre outras novas tecnologias, adepto do diálogo inter-religioso e insaciável no confronto de ideias, Anselmo Borges realiza nesta entrevista um mergulho teológico através da história de muitos homens e mulheres que o antecederam. Por isso não se estranha quando afirma perante a crise temporária provocada pela covid-19 junto da instituição de que faz parte: “Na Igreja primitiva, não havia sacerdotes nem toda a maquinaria de que a Igreja, entretanto, e não pelas melhores razões, se foi apetrechando.”

 

Aproveita para equacionar além do tempo mais imediato que se segue à maior preocupação de todos os habitantes da Terra, o fim da pandemia, no que respeita a pilares que o Papa Francisco tem estado a abanar: “Pensando no futuro, julgo que se imporá uma revisão na formação dos futuros padres. Ela deve operar-se em ambientes naturais, mais em contacto com a realidade – os seminários serão para encontros espaçados, para uma formação mais específica comunitária. E haverá dois tipos de padre: o homem ou a mulher, casados ou não, escolhidos pela comunidade, que têm a sua profissão e que por algum tempo assumem a missão de liderar a comunidade; haverá também os que, celibatários por opção, se entregam a tempo inteiro à coordenação de comunidades e à sua formação mais profunda e intensa...” Para que não fiquem dúvidas, recupera as palavras do antecessor de Francisco:”O próprio Bento XVI, quando era ainda apenas o professor Joseph Ratzinger, propôs algo de semelhante.”

 

Há uma semana aconteceu o primeiro Domingo de Páscoa na história dos católicos em que as suas igrejas estiveram e continuam encerradas por todo o mundo. Esperava ser testemunha de uma religião de portas fechadas?
Sinceramente, não. Aliás, nunca imaginei que havíamos de passar por um flagelo global como este que estamos a viver.

Mas uma crise é ou deve ser sempre uma oportunidade. Neste caso, penso que foi uma oportunidade para reflectir. De facto, havia o perigo de reduzir a Páscoa a procissões, correrias, talvez demasiada exterioridade e até folclore. Foi a oportunidade de se ir ao essencial e perguntar pelo sentido real e verdadeiro da Páscoa. Perguntar, por exemplo: em que é que eu acredito, em que é que realmente acreditamos, e sobretudo: em quem acreditamos? A Páscoa celebra a paixão e morte de Jesus e a sua ressurreição, e este é o centro da fé cristã. Neste mistério, revela-se que Deus, o Mistério último, indizível, se revelou como Amor incondicional em Jesus. Evidentemente, a ressurreição não é a reanimação do cadáver; nela, o que se afirma é que Jesus, crucificado, está vivo para sempre, ele é o Vivente em Deus, que é a Vida e a fonte da vida.

 

Foi a oportunidade para o reencontro com uma fé mais límpida?
Nada nem ninguém consegue dizer o mistério da ressurreição como os Evangelhos. Os discípulos, a começar pelas discípulas (Maria Madalena foi a primeira), reflectindo sobre o que Jesus fez e foi, no modo como ele se relacionava com Deus e com todos, a começar pelos mais abandonados, pobres, pecadores, prostitutas, no modo como morreu, fizeram a experiência avassaladora de fé de que ele é o Vivente em Deus e, quando quiseram dizer essa experiência descrevem o que chamaram “aparições”, “visões”, mas de tal modo que Maria Madalena, por exemplo, não o reconheceu, só quando ele se lhe dirigiu pelo nome: “Maria”, mas ela não pôde tocá-lo; Jesus caminhou com os discípulos de Emaús, mas eles só o reconheceram “ao partir do pão”; entrava, com as portas fechadas, saudava os discípulos: “a paz esteja convosco”, e desaparecia; disse a Tomé que metesse a mão no lugar dos cravos, mas não se diz que ele tenha metido, inclinou-se: “Meu Senhor e meu Deus”… Acreditaram e foram proclamar a grande notícia e morreram por ela. Na fé, como em tudo o que é essencial, o ver é o ver espiritual, íntimo e único, mas partilhável. Sem essa experiência interior, fica-se na mera exterioridade e em fórmulas dogmáticas congeladas que nada dizem.

É isso: é ele, pessoalmente, o Jesus real, mas transformado, já não no tempo e no espaço, mas na dimensão da eternidade. Foi Ernst Bloch, o ateu religioso, que me disse um dia: “Eu sou a Ressurreição e a Vida”: foi com esta proclamação que o cristianismo venceu.”
Depois, quem acredita parte para a vida, procurando fazer o que Jesus fez e mandou: combater por um mundo justo, feliz, para todos, na paz. Com mais esperança, força, confiança. E na convicção de fé, com razões, de que o ser humano na morte não cai no nada, mas entra na Realidade mais real e verdadeira, na plenitude da vida em Deus. Como é? Ninguém sabe.

 

Estarmos perante uma religião que deixou de baptizar crianças, dar catequese, casar e enterrar católicos, não a deixa questionável aos olhos dos fiéis? 
Esta situação pode provocar um abalo nos fiéis, e eu espero que seja positivo. O que se passa é que o clero se tinha apropriado da Igreja, dos sacramentos, acabando por criar, mesmo que talvez isso não tenha estado na sua intenção, uma Igreja piramidal, vertical, clerical, com privilégios, o carreirismo e o clericalismo e a corte, que é a Cúria romana e outras, tudo o que, segundo o Papa Francisco, constitui “a peste da Igreja”.

No quadro dessa mentalidade, nesse modo de Igreja, é bem possível que os católicos se sintam agora um pouco abandonados, desamparados, pois não podem ter acesso imediato aos “donos” da sua religião.
É urgente repensar o que é verdadeiramente a Igreja, que é, antes de tudo, o conjunto de todos os baptizados. Na Igreja primitiva, a Igreja era primeiro “a Igreja doméstica”, que se reunia nas casas de algum cristão ou cristã com uma casa mais ampla e quem presidia era o dono ou a dona da casa e celebravam a memória de Jesus, fazendo o que ele mandou: dar a bênção e partilhar o pão e o vinho, lembrando-nos dele, em acção de graças, como diz a palavra Eucaristia. E foi a primeira tremenda revolução na história do mundo no que à religião se refere: se algum senhor se tinha convertido a Jesus, ali sentava-se à mesma mesa que um escravo. Nestes dias de Páscoa, leu-se a história dos discípulos de Emaús, que reconheceram Jesus ressuscitado “ao partir do pão”. Para escândalo de muitos, não se fez a consagração.
Ainda alguém me há-de mostrar no Novo Testamento onde é que está que Jesus ordenou alguém sacerdote. Todos os baptizados são sacerdotes e o ministro ordenado (o chamado indevidamente sacerdote) é, como diz a palavra, apenas o que preside, num serviço ministerial, ao sacerdócio real dos cristãos.

 

Esta situação de prática de religião suspensa fisicamente irá provocar algum estremecimento nos católicos que viam nas missas e noutras cerimónias religiosas uma certeza ao longo de toda a sua vida?
Suspensa porquê? Já disse que na Igreja primitiva não era assim. Na Igreja primitiva, não havia sacerdotes nem toda a maquinaria de que a Igreja, entretanto, e não pelas melhores razões, se foi apetrechando. Por isso, é necessário reconhecer, com o teólogo Bernardo Pérez Andreo, que o coronavírus, com o confinamento, acabou por colocar em xeque esse catolicismo tradicionalista, que deixa os padres e bispos com a possibilidade de celebrar e comungar, discriminando os outros fiéis, que ficarão à míngua: “O catolicismo não pode ser a dependência do clero”.

Eu não sou nem nunca fui anarquista. E, por isso, considero que deve haver uma “ordem” (daí, o padre ordenado ou o bispo…) e um mínimo de organização.
Mas quem pode impedir ou declarar inválidas as celebrações da Eucaristia realizadas nas famílias? Estas não são porventura Igrejas domésticas? Ou, como já escrevi, impedir que se concelebre “coronoviricamente” em casa, assim: em vez de apenas “assistir” à Missa pela televisão ou outras novas tecnologias, colocar numa mesa com uma vela acesa e o livro dos Evangelhos pão e vinho, símbolos da vida, e participar na celebração, perdoando uns aos outros os pecados como Jesus mandou, ouvir a Palavra de Deus e comungar realmente e não apenas espiritualmente, como é aconselhado? Aliás, a comunhão, para ser real, não tem de ser sempre espiritual também? E o que são os sacramentos senão sinais visíveis de uma Presença (com maiúscula) invisível, mas real e actuante na graça que vivifica?

 

Está a falar por experiência própria?
Permita que lhe conte um entre muitos encontros que tive com o maior exegeta católico do século XX, grande cristão, o meu querido amigo, professor de Tubinga, Herbert Haag. Foi numa Sexta-Feira Santa em sua casa, em Lucerna. Conversámos longamente sobre Jesus, a sua história, os seus desígnios, a sua morte e ressurreição, a sua Igreja. Até foi nesse encontro que ele me pediu para ir buscar o Evangelho segundo São João em grego e ler aquele passo: “Àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados”, e reparei então que Jesus não disse isso aos Apóstolos mas aos discípulos (oi mathetai). Conversámos enquanto partilhávamos uma refeição ao anoitecer, uma refeição com pão, queijo e bom vinho. Já noite dentro, à saída para o hotel, perguntei-lhe em afirmação: “Professor, foi uma Eucaristia”. E ele, serenamente: “Claro que foi.”

 

E nos membros do clero esta interrupção da sua missão levantará questionamentos diferentes daqueles que assombravam a Igreja nos últimos tempos, como mulheres a serem ordenadas, casamento dos padres?
No contexto do que acabo de dizer-lhe, é essencial que o clero medite na sua missão e no seu lugar na Igreja e no mundo. Impõe-se uma conversão radical, em ordem a uma Igreja já não clerical, piramidal, mas participativa, em círculo, comunional, pondo cada um, cada uma, os seus carismas ao serviço de todos. Homens ou mulheres, casados ou não, porque Jesus não impôs o celibato.

Mas, repito, não sou anarquista e, quando passar este pesadelo, os católicos, porque o cristianismo é simultaneamente uma fé pessoal a partir de uma experiência íntima, e comunitária, reunir-se-ão outra vez festivamente em assembleia comunitária, para, todos juntos, celebrarem a Eucaristia.
Mas, pensando no futuro, julgo que se imporá uma revisão na formação dos futuros padres. Ela deve operar-se em ambientes naturais, mais em contacto com a realidade (os seminários serão para encontros espaçados, para uma formação mais específica comunitária). E haverá dois tipos de padre: o homem ou a mulher, casados ou não, escolhidos pela comunidade, que têm a sua profissão e que por algum tempo assumem a missão de liderar a comunidade; haverá também os que, celibatários por opção, se entregam a tempo inteiro à coordenação de comunidades e à sua formação mais profunda e intensa... O próprio Bento XVI, quando era ainda apenas o professor Joseph Ratzinger, propôs algo de semelhante.

 

Se todas as epidemias da História da humanidade até há bem pouco tempo eram 'carimbadas' como um castigo de Deus, esta não o será. É uma primeira pedra a cair num edifício mental religioso com dois mil anos e que produzirá leituras diferentes das páginas da Bíblia que guiaram até há bem pouco os católicos? 
Desgraçadamente, ainda há quem, incluindo cardeais, ouse apelar para o castigo de Deus. Isso é uma blasfémia. Porque é incompatível com Deus que criou por amor.

Como já disse, impõe-se saber ler a Bíblia e renovar e recriar a linguagem, não só teológica, mas também litúrgica. Por exemplo e só exemplos: como se pode continuar a dizer que as crianças nascem com o pecado original? Só se se entender por isso o que faz sentido: que nascem inocentes, mas para um mundo onde já há pecado e, por isso, podem ser afectadas por ele, como um não fumador, ao entrar numa sala de fumadores, pode ser contaminado pelo fumo. E o que é que quer dizer para um contemporâneo, ao recitar o Credo: “Gerado, não criado, consubstancial ao Pai”?; que quer dizer: “Creio na ressurreição da carne?”; que dizer a uma pessoa que tem medo de comungar na mão, porque podem cair fragmentos da hóstia? E as homilias inúteis, vazias ou contra  a razão? Só exemplos, que obrigam a reflectir e a não esquecer que de Deus, no Novo Testamento, se diz que ele é “agapê” (amor incondicional) e também “Logos”, que quer dizer razão, inteligência. Portanto, não basta o amor, a bondade, impõe-se atender à razão, à inteligência e procurar viver interpenetrando bondade e razão, amor e inteligência.
Por vezes, aparecem na Internet vídeos a ridicularizar o que parece a fé cristã. A mim não me ofendem, pois apenas ridicularizam, e é urgente aprender com isso, imagens ridículas de Deus e dos dogmas que a Igreja foi e vai tantas vezes transmitindo.

 

A forma como o Papa Francisco tem conduzido as suas aparições nestas últimas semanas torna-o mais consensual dentro da própria igreja Católica?
Aqui, permita que, na situação desta calamidade da Covid-19, que lembra, por exemplo, as pestes, recorde o Decameron de Bocaccio (1313-1375) no contexto da Peste Negra. Está lá a história daquele judeu bem intencionado que, instado por um amigo a converter-se, decide ir a Roma para ver e analisar o que se passava no centro da cristandade. O amigo tenta dissuadi-lo, pois Roma não seria o lugar ideal para encontrar o cristianismo, mas ele parte, deparando realmente com a podridão moral: luxúria, todos eram gulosos e beberrões, simonia e tantos outros vícios e pecados… Regressando a Paris, encontra-se com o amigo, que esperava tudo menos a sua conversão. Mas não. Ele voltara convertido, e a razão era que, se a Igreja, apesar do que vira, continuava viva, só podia ser porque como sua base e fundamento se encontra o Evangelho e o Espírito Santo. Nesta linha, também se conta que, quando Gandhi esteve no Vaticano, olhou para aquilo tudo e terá dito como o judeu do Decameron: se nem estes acabaram com o cristianismo, o Evangelho de Jesus é realmente verdadeiro.

 

O que nos leva de novo a Francisco...
Hoje, no Vaticano, mora (não será o único) um Papa cristão, Francisco. Que dá ânimo, consolação, esperança, confiança, que põe o seu esmoleiro apostólico, o cardeal Krajewski, protegido mas sem qualquer adorno cardinalício, nas ruas com os sem abrigo e indigentes, que quer abraçar a todos, que devem saber que “no isolamento em que sofremos falta de afecto e de encontro, fazendo a experiência da falta de muitas coisas”, ninguém está só. Na Páscoa, fez uma homilia programática para uma conversão global, pedindo o alívio ou até o perdão da dívida aos países mais pobres, que os refugiados não sejam abandonados à sua tragédia, apelou à solidariedade na União Europeia e à superação dos egoísmos, porque “do desafio do momento actual depende não só o seu futuro, mas o do mundo inteiro”. E esta semana tomou a iniciativa de criar uma Comissão de peritos para estudar como enfrentar a terrível crise económica, social e política a caminho. Com cinco grupos de trabalho que se ocuparão de reflectir sobre os desafios socioeconómicos, culturais, políticos, espirituais, do futuro já presente. Qual o contributo da Igreja nesta nova situação dramática e decisiva na qual o que está em jogo é o próprio futuro da Humanidade?

 

Que significado tem, e terá, para os fiéis um homem só na Praça de São Pedro a falar para todos eles e para o resto do mundo?  
É uma imagem pregnante que ficará na memória de todos quantos, naquela tarde um pouco chuvosa e escura, presenciaram Francisco a atravessar sozinho em passos lentos aquela Praça de São Pedro deserta e a subir as escadas que levavam a uma plataforma. Dali, convidou à conversão e à esperança, insistiu repetidamente na necessidade da fraternidade e da solidariedade, dirigiu-se longamente às “pessoas comuns, muitas vezes esquecidas, que não ocupam as primeiras páginas dos noticiários televisivos, dos jornais e das revistas nem aparecem nos grandes desfiles do último show, mas que, sem qualquer dúvida, estão a escrever hoje os acontecimentos decisivos da nossa história”, e citou “médicos, enfermeiros e enfermeiras, empregados de supermercados, agentes de entretenimento, artistas, fornecedores de cuidados ao domicílio, transportadores, forças da ordem, voluntários, padres, religiosas e tantos, tantos outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”. Num abraço que quer abraçar e consolar a todos, abençoou o mundo, pedindo que se ponha de lado “a nossa sede de omnipotência e de posse e domínio”.

Na sua simplicidade comovente, de uma intensidade avassaladora, foi mais um gesto que corroborou não só nos fiéis mas também em não crentes a imagem de um líder, um profeta, político-moral global confiável.

 

A Igreja Católica fechou rapidamente as portas dos templos, no entanto não demorou demasiados dias a aparecer ao lado dos que creem nela? 
Mais uma vez, penso que é urgente operar uma revolução. Cá está: quando se fala em Igreja, pensa-se em primeiro lugar e imediatamente na organização e na hierarquia: Papa, bispos, cardeais, padres… Ora, o Concílio Vaticano II veio corrigir. A Igreja é em primeiro lugar o Povo de Deus, o conjunto dos baptizados e, nesse Povo, há uma organização, inevitavelmente, que deve seguir o que Jesus queria, e o que ele queria até se adequa mais aos tempos, que caminham no sentido da democracia. Na Igreja, tem de haver serviços, ministérios, sem honrarias nem privilégios nem mitras nem barretes cardinalícios nem solidéus que, nas celebrações, levam àquele ritual, tão desinteressante, do tira e põe solidéu. A Igreja deve ser mais do que uma democracia, pois Jesus disse: “Eu vim não para ser servido, mas para servir” e: vós não deveis procurar ser os primeiros pelo poder, mas pelo serviço: “vós sois todos irmãos”.

O equívoco tem de ser urgentemente corrigido. Os católicos não crêem na Igreja; o que é preciso é, passando à verdade, confessar: em Igreja, todos juntos, crêem em Deus Pai-Mãe, criador e salvador, crêem em Jesus, o enviado de Deus, que revelou por palavras e obras Deus, o Mistério invisível e indizível, como Amor, e crêem assim, na luz do Espírito Santo. O acento não pode estar de maneira nenhuma na organização e na hierarquia.

 

E já vê sinais de uma futura mudança?
Viaja na Internet uma “graça” que diz bem o que eu quero exprimir. Mais ou menos assim: o Diabo: “Com a Covid-19 fechei-te as igrejas”; Deus: “Pelo contrário, abri uma em cada casa”. É evidente que eu não quero de maneira nenhuma que as igrejas fiquem definitivamente fechadas, mas para que servem as igrejas-edifício sem a Igreja da fé vivida por cada um dos cristãos e sem as “Igrejas domésticas” em cada casa e família?

Dito o que aí fica, quero prevenis e sublinhar que,  tanto mais quanto ensinei muitos e muitos anos Antropologia Filosófica, não ignoro que o ser humano é um animal simbólico e simbolizante e precisa de símbolos e de rituais. Mas que eles sejam adequados e vivos e belos.

 

A palavra cisma deixou de se ouvir. O inédito de dois papas vivos em simultâneo, com opiniões nem sempre convergentes, vai ser uma polémica esquecida no pós-pandemia ou tudo voltará a ser com dantes?
Em primeiro lugar, quanto aos dois Papas, nada justifica teologicamente que Bento XVI se tenha intitulado Papa emérito. Não há Papas eméritos. O Papa é o bispo de Roma,  ao qual está vinculado o papado, como serviço de unidade da Igreja, na caridade. Só há um Papa, como foi dito até pelo ultraconservador cardeal Gerhard Müller, durante a recente polémica, por causa do cardeal Robert Sarah. Quando deixa de ser Papa, torna-se bispo emérito de Roma. E devia, para evitar confusões e aproveitamentos, deixar o Vaticano e as vestes pontifícias. Como fará, estou convencido disso, o Papa Francisco, se e quando resignar.

Sim, a palavra cisma deixou de se ouvir, pois, no meio desta calamidade que a todos atinge, quem quer ouvir falar nisso? É preciso ir ao essencial e acudir às pessoas em necessidade, também em necessidade espiritual.

 

É uma discussão em quarentena?
Mas não é impossível que, se não houver conversão ao núcleo da fé, esse discurso do cisma volte. Mas digo-lhe: uma Igreja sem conversão ao que é essencial e determinante da fé cristã — o determinante é Jesus Cristo, na vida e na morte —, e que não se recrie segundo esse determinante, na organização, na formulação da doutrina, na liturgia, será uma Igreja cada vez mais museu, que se irá tornando irrelevante, insignificante, no meio da sociedade e da História.

A Igreja assenta em três pilares fundamentais. Em primeiro lugar, a fé, essa entrega confiada a Deus, o Mistério último, Amor incondicional revelado em Jesus Cristo. Essa fé não pode ser irracional, não pode, muito menos, agredir a razão, tem de ser pensada e reflectida e ser capaz de dar razões dela e da esperança. A Igreja tem de ser a multinacional do sentido, do Sentido último. Depois, a fé vive-se na oração, certamente, mas não menos no amor, que se traduz no combate lúcido e corajoso pela justiça, pela dignidade divina de todos, pelos direitos humanos. Aqui, é preciso lembrar que o cristianismo operou várias revoluções, uma delas, essencial: ele transcende a confessionalidade; de facto, como diz o capítulo 25 do Evangelho segundo São Mateus, no Juízo Final, não se perguntará às pessoas, em ordem à salvação, por doutrinas e dogmas, por actos religiosos confessionais (isso não significa, de modo nenhum, menosprezo por eles), mas por aquilo que se fez na ordem aparentemente tão pouco espiritual, religiosa e confessional: “Tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de beber, estava nu e vestiste-me, estava no hospital, na cadeia, e foste ver-me.” E quem assim procedeu não sabia que o outro necessitado é Jesus, o que significa que alguém que até se confessa ateu, mas pratica a justiça e faz o bem, é realmente cristão, e isto é estrondoso. O terceiro pilar são liturgias belas, que celebram festiva e comunitariamente, com alegria, a vida vivida em Deus. Porque Deus não está fora; quem acredita sabe que é em Deus que nos encontramos sempre.  

 

Nos seus livros e ensaios existem preocupações filosóficas, científicas e metafísicas que se debatiam com o mundo como o conhecíamos. Até que ponto esta pandemia o vai obrigar a rever certos pressupostos em que acreditava?
Desculpe talvez a vaidade, mas não me sinto na necessidade de revisões. De facto, nestas circunstâncias que atiram para um sofrimento incrível, a impotência, a morte, talvez o abalo maior possa vir daquele famoso dilema, que já vem de Epicuro: Deus deve ser omnipotente e infinitamente bom. Então porque é que nos abandona e nada faz? Eu já tinha reflectido muitas vezes nisso, mostrando que é falso o pressuposto de que é possível um mundo finito ser infinito, em processo evolutivo e sem choques; não se pode querer a autonomia das realidades terrestres e cósmicas e ao mesmo tempo um Deus intervencionista; nem é compaginável querer a liberdade e ao mesmo tempo um Deus manipulador.

Deus é omnipotente, não no sentido de dominar, mas enquanto Força infinita de criar. Ele é o criador, não se afastou do mundo, está infinitamente presente ao mundo, impulsionando ao bem e como anti-mal, mas respeitando a sua autonomia e a nossa liberdade. E a História está em processo e lê-se do fim para o princípio e o crente espera, com razões, que a última palavra, que ainda não foi dita, será dita por Deus e será uma palavra de misericórdia e salvação para a vida eterna. Evidentemente, o crente não pode dizer que sabe que Deus existe e que há vida para lá da morte. E entende o não crente, concretamente por causa do mal no mundo. Mas o não crente também não pode dizer que sabe que não há Deus e que com a morte acaba tudo. Ele não sabe, crê, e eu entendo as suas razões. Mas o crente também crê, com razões. Pessoalmente, penso que é mais razoável acreditar em Deus e na vida eterna. No próprio acto em que o crente ousa entregar-se, em confiança radical racional, a Deus, o mundo, que se apresenta tão ambíguo, ambivalente  e tantas vezes sem sentido, ilumina-se e torna-se mais razoável, pleno de sentido.

 

Já releu livros de colegas teólogos em que certas questões de que divergia parecem agora ter algum significado?
Não. Mas, salvaguardando sempre o pluralismo na Igreja, pois, como disse São Paulo, “onde está o Espírito de Cristo aí está a liberdade”, e o princípio de que as pessoas estão antes e acima do Código de Direito Canónico, estou de acordo em que, no meio de algum descalabro moral das nossas sociedades, se impõe evitar o perigo de que agora, dentro da infinita misericórdia divina, vale tudo. Como é igualmente necessário prevenir contra a ameaça de alguma anarquia institucional na Igreja.

E é preciso manter sempre o equilíbrio racional, também na análise política, incluindo a economia política e a geoestratégia. É evidente que é necessário denunciar o capitalismo desregrado, que não serve de modo nenhum e que mata, mas também não se pode, depois, de modo nenhum, ser ingénuo quanto às soluções.
Lá está sempre a aliança da bondade e da razão.

 

Acredita que a humanidade ficará diferente após esta crise mundial ou retiraremos poucos ensinamentos? 
Esta crise vem cheia de ensinamentos. Vamos aproveitá-los? Temo que estejamos agora unidos mais pelo medo comum face ao incontrolável (“o indisponível”, de que fala o filósofo Hartmut Rosa) do que pelas lições que esta crise nos traz e que tanto precisávamos de aprender.

Alguns exemplos. Andávamos distraídos do essencial, apressados, pensando que estava tudo sob o nosso controlo, que éramos omnipotentes. De repente, ficámos desorientados e perdidos na nossa fragilidade, expostos ao medo, à morte, caíram sobre nós perguntas essenciais, como: o que é que verdadeiramente vale? qual o sentido da vida? quem somos, o que somos? Os nossos planos caíram, ficámos com imenso tempo, um tempo estranho, parado, vazio, num silêncio de breu. Egoístas, cultores de um individualismo soberano e arrogante, demo-nos de repente conta de que dependemos uns dos outros, que nos podemos contagiar uns aos outros, mas também só uns com os outros nos podemos salvar. E, presos num consumismo voraz e alarve, reparamos agora que precisamos de muito menos para viver bem, é possível viver com menos. E que precisamos de pensar e de meditar. E não somos omnipotentes, não somos Deus, não somos deuses, como lembrava há dias Paulo Rangel, citando o cardeal alemão Reinhard Marx.

 

Pouco mudará, então?
Ficaremos com estes ensinamentos vitais ou, terminada a crise, esqueceremos tudo e voltaremos à vertigem da corrida e da competição, fechando-nos outra vez no individualismo, no consumismo, esquecendo todas as vítimas: por exemplo, todos os dias morrem de fome 24 mil pessoas no mundo e há 215 milhões de crianças no mundo que são vítimas de escravatura, continuarão as guerras, a violência, a exploração, o primado do deus Dinheiro? Tanto mais quanto já está presente e aumentará uma crise terrível económica, social, política. E precisávamos de unir-nos na solidariedade global, mas será que os nacionalismos, populismos, imperialismos invadirão o mundo? Tínhamos tomado consciência de que, por causa do confinamento, o ar era mais puro, havia menos poluição, mas estaremos dispostos a uma real conversão também neste domínio vital da salvaguarda da mãe Terra e da casa comum?

 

Que atitudes sugere?
Precisaríamos de parar, de meditar, de rezar, de ter tempo para nós, para a família, para a beleza, para a contemplação, para a música, para pura e simplesmente fruir do milagre de viver e estar vivo… Mas vamos esquecer e voltar à vertigem da aceleração alienada? Para onde queremos ir, afinal, até que venha outro vírus?

O ser humano é terrivelmente complexo e carente. É por isso que não se aquieta no essencial do ser, e deslumbra-se com o ter. Chamo permanentemente a atenção para a escola, essa palavra mágica que vem do grego scholê, que significa ócio, não o ócio da preguiça, mas o tempo livre para homens e mulheres livres pensarem e governarem a polis. Mas há sempre o perigo do negócio (de nec/otium, negação do ócio), de tudo se tornar negócio, incluindo a política. Esse perigo está aí concretizado e operante. Ora, para os negócios e a técnica, não se pensa – o filósofo Martin Heidegger preveniu: a técnica não pensa —, não se pensa, apenas se calcula, e fica tudo reduzido a cálculos.

 

Perigos não faltarão à humanidade nos próximos tempos?
Sim, há uma série de problemas que são globais, como o armamento atómico, químico e biológico; as questões da ecologia; os mercados; os problemas levantados pelas NBIC (acrónimo de nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, neurociências), como o transhumanismo, o pós-humanismo, o eugenismo; as migrações… Problemas globais, que precisam de soluções ético-jurídico-políticas globais, no quadro de uma Global Governance (não digo um governo mundial), uma governança global. Ora, de facto, a política é nacional ou, quando muito, regional.  E a nova geoestratégia? E a China?

Aqui, a Igreja Católica, enquanto única instituição verdadeiramente global, poderá, como já ficou dito, em união com as outras Igrejas cristãs e as religiões mundiais, ter um papel decisivo numa Declaração ao mundo sobre as condições de possibilidade de futuro para a Humanidade. Apesar de tudo, pelo menos 80% da Humanidade ainda se confessa religiosa.

 

Em cem anos nunca Fátima fechou as portas aos peregrinos que vêm de todo o mundo para o 13 de Maio como irá verificar-se este ano. Será, finalmente, a vitória da legião anti-Fátima ou um fait-divers no meio de todo o pandemónio global? 
De maneira nenhuma. Não é nem será a vitória dessa legião. Pelo contrário. Para já, impunha-se evidentemente, até por uma questão de bom senso, fechar Fátima e anular a celebração pública do 13 de Maio. Mas, dentro da lógica de Fátima e do que leva milhões de peregrinos a Fátima — Maria é a mãe, a que ouve e entende —, logo que seja possível (quando, não se sabe), as pessoas irão lá em massa, para rezar, para agradecer, para pedir. Exactamente para aquilo que já fazem e independentemente da Igreja oficial. Fátima salta, de algum modo, para fora do controlo do clero. Nunca esqueço que, quando há anos se anunciou, num 13 de Maio, que ia ser “revelado” o terceiro segredo de Fátima, eu, diante da televisão, pensei que toda aquela gente iria ficar especada a ouvir. Mas não. Os peregrinos continuaram na sua devoção e na sua fala íntima com a Mãe. A definição precisa de Fátima foi dada há muito tempo por Frei Bento Domingues: “Fátima é o cais de todas as lágrimas dos portugueses”.

 

Sabe como está a situação financeira dos padres nas paróquias que ficaram sem receber os peditórios?
Não sei, porque não sou pároco. Pareceu-me, por aquilo que ouvi a um colega que é pároco, que vai haver algumas dificuldades, exactamente na medida em que não há os peditórios nem se deu a chamada “côngrua” no compasso da Páscoa. Penso serem essas as duas fontes de receita para o salário dos párocos e para pagar as despesas das igrejas.

De qualquer modo, as suas dificuldades não se assemelharão às de muitas famílias que suponho viverem já em autêntica miséria, inclusivamente queixando-se da falta de possibilidade de alimentar os filhos.

 

Como estão a conviver as outras religiões com estes novos tempos?
Tanto quanto me é dado saber, concretamente os protestantes, os judeus e os muçulmanos têm utilizado também as novas tecnologias para se unir e rezar.

E parece-me que as dificuldades terríveis por que todos passamos têm unido a todos inter-religiosamente. Afinal, indo mais fundo, é mais o que nos une do que o que nos separa. O que nos une é o Mistério, o Sagrado, referente comum de todas as religiões que saibam o que isso quer dizer, e o mandamento de amar o próximo como a nós mesmos, concretamente e sobretudo quando está mais fragilizado e em maior dificuldade. O que nos une é, antes de tudo, a humanidade comum de todos numa casa comum, sabendo que nos salvamos juntos ou nos perdemos todos.
E, dado o prestígio do Papa Francisco, penso que as várias religiões deveriam ser associadas à Declaração comum à Humanidade, atrás referida.

 

Como está a decorrer a sua quarentena? 
Normal. Eu sou um privilegiado. Por vários motivos. Depois de suspender uma série de aulas, conferências e palestras em agenda, continuo a fazer o meu trabalho, de que gosto e que não me falta: ler, estudar, escrever, dar entrevistas. Depois, o Seminário onde vivo tem uma quinta, podendo eu dar passeios, arejar, pensar peripateticamente (a andar…). Três colegas concelebramos todos os dias, mantendo as devidas distâncias sociais, segundo as regras. Há um colega, padre Zacarias Pinho, que é um autêntico provedor e que prevê e provê, não faltando nada do que é essencial. E tenho muitos amigos e amigas que me telefonam ou escrevem (dá-me particular alegria ouvir antigos alunos que, espalhados por muitos lados, até nas ilhas, até em Nova Iorque, que me telefonam a perguntar e a animar) e se oferecem para, se algo for necessário: “Saiba: eu estou aqui, nós estamos aqui”). Também procuro dar ânimo, esperança, confiança, e ouço confidências incríveis.

Durante este tempo já me aconteceu ter de andar em hospitais e fazer na Quinta-Feira Santa, na minha terra (Paus, Resende), o funeral do meu irmão mais velho que faleceu canceroso. É a lei da vida. E oportunidade para a aprofundar a ela e à fé. E perceber melhor e mais intensa e dramaticamente aqueles e aquelas que não puderam sequer despedir-se dos seus entes queridos entretanto falecidos. Por isso é que tenho aconselhado vivamente os párocos e agentes pastorais a comprometerem-se a fazer, quando for possível, uma celebração condigna de homenagem aos que, entretanto, faleceram, também porque é necessário ajudar no luto ainda mais difícil.

  

O que mais o surpreendeu nos últimos dias entre os que o rodeiam ou daquilo que sabe pelas notícias?
Por um lado, a imensa generosidade e criatividade, de tantos no apoio, de todas as maneiras, a quem mais precisa, material ou espiritualmente. Fico comovido.

Por outro, tornou-se-me ainda mais claro que à frente das instituições, também religiosas, não se pode colocar incompetentes, hesitantes, temerosos.
Evidentemente, como já ficou subentendido, não tenho palavras para agradecer a tantos que arriscam até a saúde e a vida para cuidar dos outros em necessidade: médicos, enfermeiros, auxiliares, bombeiros, e todos aqueles e aquelas que anonimamente trabalham para que o país funcione minimamente… Os verdadeiros heróis e “santos da porta ao lado”, como diz o Papa Francisco.

 

João Céu e Silva entrevista Anselmo Borges
in Diário de Notícias | 19 de abril de 2020  

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

48. UTILITARISMO, DIREITOS HUMANOS, ÉTICA E CONSEQUÊNCIAS

 

1. Face às teorias neoliberais dominantes, há uma tendência para a restrição dos direitos humanos a um núcleo duro e restrito.

 

Embora se admita que uma Constituição deve consagrar o que há de mais fundamental, especialmente, e em democracia, os direitos, liberdades e garantias no que toca à relação entre o indivíduo e o Estado, há quem defenda que quanto mais longe se vai na consagração de direitos económicos, sociais e culturais, entre outros, mais problemático é exigir-se o seu cumprimento.

 

Por razões de escassez de recursos, há o que se pode e não pode exigir, podendo chegar-se ao absurdo de exigir o impossível, porque está constitucionalmente consagrado.

 

Argumenta-se haver uma constitucionalização em excesso, como há quem o advogue em Portugal, em que a realidade, no seu todo, se tornou inconstitucional, dada a desconformidade entre o dever de cumprir exigido pela nossa Constituição e a alegada ausência de recursos que tornam materialmente impossível o seu cumprimento.   

 

A solução proposta é alterar a Constituição, mudá-la, quanto antes.

 

Apesar de se aceitar que a lei constitucional intervenha em matéria de questões económicas (princípio da concorrência, regras primárias e programáticas em sede de finanças públicas) e sociais (direito à saúde, ao trabalho, à educação, à habitação e correlativos deveres do Estado para que se concretizem), há que lhe impor limites em função dos recursos materiais e humanos disponíveis. 

 

É a conceção da intervenção do Estado mínimo, da secundarização do Estado social. Porque, como em tudo na vida, há o que se pode e não pode fazer.

 

Para esta visão utilitarista, os direitos económicos, sociais e culturais (direitos humanos de segunda geração), como o direito à saúde, educação, habitação, entre outros, trouxeram uma mudança de sentido para a noção de direitos humanos, dado que a sua efetivação passa a estar dependente do Estado, sendo determinados por opções políticas e dependentes dos recursos materiais e sociais disponíveis, realizando-se através do Estado, ao invés dos direitos humanos de primeira geração (ou direitos de abstenção estadual, como o direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal, à constituição de família, a não ser escravizado ou torturado, a um julgamento justo).

 

Defende-se uma restrição dos custos em função da maximização do maior bem comum ou bem-estar geral, em antinomia com a justiça ligada à defesa e promoção dos direitos humanos, associados a ideias humanitárias, não dependendo do Estado, sendo-lhe anteriores, porque inatos a todo e qualquer ser humano. 

 

O que tem consequências em termos de ética. 

 

A ética prática ou utilitarista não parte de regras, mas de objetivos, avaliando as ações e os resultados na medida em que os fins e os objetivos desejados sejam favorecidos.

 

Para a teoria deontológica da ética, os fins não justificam os meios, a natureza ética de um ato não decorre de produzir ou não resultados positivos, sendo inaceitável sacrificar direitos humanos de uma só pessoa para salvar muitas outras.   

 

2. Uma prioridade absoluta e inegociável é o direito à vida, à saúde, salvar vidas. 

 

Todos temos direito à vida (art.º 24.º da CRP) e à saúde (art.º 64.º).

 

Face ao coronavírus há um problema grave de saúde pública, estando em causa a sobrevivência global de inúmeras pessoas em todos os países, em que escolher entre a vida e a morte é um drama pessoal, ético, humano e social para os médicos.

 

Ninguém, em circunstância alguma, quer que sejam médicos a decidir se devemos morrer ou viver por ausência de recursos (materiais e humanos) para combater o vírus da Covid-19, mesmo se idosos ou num grupo de risco, embora saibamos que pessoas mais novas merecem viver mais, e apesar de os mais velhos terem contribuído em grau superior, por força da idade, para a segurança social e serviço nacional de saúde. 

 

O que é aceitável e imperativo é esperar que todos se salvem, sendo  incompreensível que se decida em favor ou desfavor da vida de outrem por ausência de condições de tratamento adequado naquela circunstância, que alguém tenha de abdicar de um tratamento por ter 70 ou 80 anos (ou mais), estar num grupo de risco, ter deficiência física ou mental, por confronto com alguém sem deficiência ou mais novo, ou um pai e uma mãe com filhos que têm de ceder perante outros por serem mais jovens.

 

Este escalonamento humano pode abrir precedentes condenáveis e levar-nos a situações muito perigosas.   

 

Pela ordem natural das coisas é aceitável, se e quando esgotados todos os tratamentos adequados e exigíveis naquele contexto.   

 

Pela ordem artificial das coisas não o é.   

 

Não é legítimo culpabilizar quem deseja viver, nem querer que alguém seja herói, mártir ou uma referência orientadora dada a ausência ou escassez de meios e recursos, quando agudizados pela degradação e desinvestimentos num serviço público de saúde universal que não deve estigmatizar ninguém.

 

Porém, as notícias vindas de alguns países, suscetíveis de universalização, são preocupantes, mesmo assustadoras, quando os próprios médicos reconhecem, impotentes, que por ausência de meios e recursos são obrigados a ter de escolher entre a vida e a morte de doentes, dando preferência de sobrevivência aos mais novos, perante o dilema de salvar a vida, sem alternativa, entre um jovem e um idoso, mesmo que ambos úteis e, até aí, saudáveis.   

 

Gera-se um conflito de interesses, tendencialmente resolvido via utilitarismo, agudizado por uma maior contenção de recursos estaduais disponíveis, nomeadamente a nível dos alocados ao respetivo serviço nacional de saúde, o que é mais preocupante em países grandemente endividados, potenciando maior desadequação e desproporcionalidade entre a concretização prática e a consagração formal dos direitos humanos. 

 

Tudo em desfavor de um padrão ético, moral e humanista mais elevado, antepondo o sentido da vida ao dos negócios, indisponível para cortes cegos, prestando-se a adaptações só em último recurso, em oposição ao utilitarismo que se adapta e flexibiliza  permanentemente face à maior ou menor disponibilidade dos recursos existentes.  

 

24.04.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

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