ANA HATHERLY: A ROMÃ. DE FRENTE E ASSIM DE DENTRO, AS TISANAS.
Poderia haver uma outra solução que não fosse a de abrir a romã. Poderia existir uma maneira melhor de sair do impasse sem que acreditasse que dentro da romã estava a resposta que procurava? Sentou-se à mesa.
Pensativamente continuava a olhar para a romã como uma possibilidade. Afinal existiam letras e algarismos nas sementes das romãs: existia aquela cor inconfundível do líquido-sangue que vertia.
Um dia, no tabliê de um táxi estava pousada uma romã:
- A romã não cai porquê?
- Tem adesivo – disse, secamente o motorista.
- Mas sabe que a romã é uma peça do mistério da vida?
- Ó amigo, estou a ver que o amigo é das religiões do porque tira e do porque deixa, e mais isto e aquilo, e os pecadores e a salvação? Desculpe lá, não acredito em coisas do além.
- Não, não. Eu falei do mistério da romã porque se eu fosse crente era a altura de rezar ou não andasse indeciso cá numa coisa importante. Contudo não sou crente, e por isso limito-me a ter medo, medo que dentro das romãs esteja um destino que se atire a mim se as abrir. É estranho isto que digo, eu sei. Esqueça. Não devia ter falado.
- Sabe amigo, não percebo nada do que diz, mas coloquei adesivo na romã para ela não cair pois por superstição quero que a romã ande comigo uns tempos, mas assim fechadinha, por dentro são um bocado complicadas, de facto: muitas circulares e muitos entroncamentos…percebe? Até sangue…é estranho é…
- E não receia que ela apodreça e já não o possa proteger?
- Não, não receio. Sabe, eu nunca vi uma romã podre. Já as vi secas, mas não podres. Elas vão mudando de cor, acastanham, depois atrofiam e de repente parece que já não estão lá: como se dentro delas, ninguém! É giro, parece que entram em metamorfose lá como os bichinhos da seda que o meu filho tem. O casulo fica abandonado, vazio.
Voltou-lhe à memória aquela fotografia em que segurava na mão uma romã. Aquela idade fora cúmplice dos segredos das romãs e das razões pelas quais se lhe ofereciam, muito de repente, as decifrações. Para tanto, bastara-lhe a autópsia que fizera a uma romã que tinha na sua mão, e logo, a outra sua mão escrevente, derramara a tinta bem vermelha logogrifos sobre o papel. Agora confirmava que fora como se acontecesse algo aquém do Jogo. Escreveu então que a romã, insinuara-lhe a fragmentação de tudo e de todos, e ele não a entendera. Chegava enfim o momento de ter a coragem de abrir uma romã qualquer apenas para se certificar se poderia chamar literatura às notas esparsas.
Lera As Tisanas de Ana Hatherly as tais que constituem uma espécie de cidade-estado construída pela escrita criadora (…) as tais que também são o excelente filtro da vida através da pintura. Lera As Tisanas e ficara numa experiência íntima tão forte que, receava bem não possuir o saber de a gerir como desejava.
Estou triste e só. Ligo o rádio. Oiço duas das últimas Canções de Strauss. Sinto de uma maneira profunda a sua fluidez cromática, a sua riqueza orquestral. Os metais soam como vibrantes florestas. A voz da cantora é a de uma grande ave solitária. Sinto-me um lobo sem alcateia. Quando se está muito só o gemido transforma-se em uivo.
(Tisana 387 do livro 463 tisanas que em 2006 conteve o conjunto destes poemas, publicado por Quimera Editore)
E perguntava-se agora se poderia ainda haver uma outra solução que não fosse a de abrir a romã?, qual a razão de não a deixar assim na sua metamorfose secreta, e, intuir, solitariamente, as lições que lhe iriam decidir a Sorte?, aquela mesma que ilude até tiranos, aquela que julga só saber coisas pelos seus olhos.
Teresa Bracinha Vieira