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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE BEBER - 1

 

Miguel;

 

Embora tenha sabido de ti por outros amigos comuns, saber de ti por ti, faz acender uma outra vela que esclarece dúvidas que me preocupavam desde que, daqui, partiste para o mundo.

 

Envio-te a galeria aberta de Caragh Thuring, a leste de Londres, Caragh que não se cansa de procurar de onde vieram as coisas, buscando as imagens e as ideias de todos os recantos da vida, criando os atalhos certeiros para ir até ao fundo e reconsiderar, reposicionar até as sombras, e vir de volta ao quadro que lhe dará outra janela panorâmica do que procura.

 

Em rigor, fui edificando muito do que pensava da tua pintura nestas perguntas: poderá o Miguel ter encontrado na Colômbia a proximidade com a distância que por aqui procurava e sempre lhe fugia? Poderá o Miguel, agora, andar a espreitar Thuring ou ter mesmo trocado com ela dicas e acenos para encontrarem, em paz, o vaso de onde a flor cresce clara e tranquila?

 

Miguel, olá Miguel, que pela tua carta se deduz, o teu não receio de ser, mesmo dentro das irrelevâncias das realidades que, aliás, não tentas explicar, antes sugerir-nos que as possamos percorrer, por muito embaraçoso que seja para todos nós, não termos já iniciado um percurso por aí. Eis como senti as fotografias dos teus quadros que me enviaste em diálogo com a tua carta. Julgo ter visto nelas que a tua pintura já não ameaça amanhecer: ela anda de mão com as manhãs.

 

Julgo que o teu processo passou por um confiar no desconfortável, creio que o mistério da tua pintura, nunca tu o conhecerás, é como estar sempre a ler um livro que enxerta outros, até que seja completado, e, nem mesmo quando o completas, tens uma noção exacta do que ele é, e no que se terá completado.

 

Recordo que me dizias que por aqui só encontravas superfícies planas e imóveis, e no entanto amavas muito este país, sobretudo a sua luz, mas receavas que por aqui não fosses capaz de uma pintura sedutora. No entanto, dizes, é nesta luz que pensas quando pintas.

 

Recordas-te daquele dia em que me propuseste pintar a quatro mãos sendo que eu deveria pensar nas cores como palavras? E disseste-me: todos serão trabalhos falhados, não te preocupes. Tudo é preparatório. Como bem sabes, nunca se sabe quando se encontra algo.

 

De facto Miguel, sempre que senti a tua falta, a falta da nossa amizade se ver no tacto das tintas e das palavras, pensava em ti como um pássaro em direcção lá onde e aonde tu partiste sem nunca teres vivido retirado daqui. E sim, agora respondo-te, a rocha continua lá na praia do Bueiro e é tua e minha vizinha, estejamos nós longe ou cada vez mais perto das coisas invisíveis, ela aguarda-nos mar adentro.

 

Miguel continuas com a ideia de um dia fazermos um filme? Afinal qual a razão de alguém o querer ver? Apenas no Outono, os crisântemos, talvez soubessem…não?

 

Que bom Miguel, já vires a caminho não sabes quando.

 

Afinal a maneira confortável de olhar para algo e reconhecê-lo imediatamente, é um desejo forte, e, como estamos ambos cansados, será bom o abraço.

 

Sim, será algo como uma manta de lã sobre os joelhos e sob ela estarmos de novo, mas obviamente de uma maneira diferente. Será o nosso estúdio com as nossas poeiras aquelas que não renegam as nossas responsabilidades.

 

Agora, ambos sabemos, existem sumos de pedra. Existe o decanto da vida. Existem os portões abertos ou fechados ao silêncio. E que alegria os pássaros com saudades das florestas!

 

Querido Miguel,

 

retribuo o teu abraço imenso e peço que o estendas à tua Santa Cruz de Mompox.

 

Isa

 

Teresa Bracinha Vieira