CRÓNICAS PLURICULTURAIS
46. UMA CONCEÇÃO HUMANISTA E INTERNACIONAL DE CIÊNCIA
Se a ciência do Renascimento tinha como caraterísticas dominantes a observação, a experiência e o método experimental, também a do século XIX e XX se baseia na convicção de que o ser humano está sujeito às mesmas leis físicas que regem o universo e de que o método experimental é aplicável aos vários ramos da ciência e do pensamento humano.
A ciência era e é tida como obra da humanidade, com benefícios extensivos a todos, sem nacionalismos nem disputas pessoais.
Testemunho presente desta conceção humanista e internacional da ciência, é o testamento do sueco Alfredo Nobel que, em 1896, deixou a sua fortuna a uma instituição incumbida de distribuir todos os anos cinco prémios às cinco pessoas que no decurso do ano prestassem maiores serviços à humanidade.
Pessoas a premiar: “a quem no domínio da física tenha feito a descoberta ou invento mais importante”, “a quem na química tenha feito a descoberta mais importante ou chegado a maior aperfeiçoamento”, “ao autor da mais importante descoberta no domínio da fisiologia ou da medicina”, “ao que tenha produzido a obra literária mais notável no sentido do idealismo” e ao “que tenha feito mais ou melhor para a obra da fraternidade dos povos, para a supressão dos armamentos, assim como para a formação ou propagação dos congressos da paz”.
Químico inventor da dinamite, Nobel morreu magoado com o uso dos seus inventos para fins belicistas, ordenando que, após a sua morte, fosse feita a entrega de cinco prémios em física, química, medicina, literatura e para quem contribuísse de modo decisivo para a paz mundial (o prémio na área da economia foi criado, em 1969, em sua memória).
É o exemplo de mais um cientista para quem o seu trabalho não foi só felicidade pelo facto de a ciência ser progressiva, poderosa e inquestionável para si e os leigos em geral, acabando por colocar no mesmo patamar, e em pé de igualdade, ciências exatas, humanas e sociais.
Alfredo Nobel apercebeu-se, por experiência própria, que enquanto a ciência evoluía, dominando a natureza e vencendo obstáculos, a inteligência humana procurava novas técnicas para se destruir, com o aparecimento de novas armas de destruição e um agudizar da guerra e conflitos bélicos.
Curioso, nesta sequência, que premiasse a medicina, a literatura e a paz como contributos que podem humanizar o poder destruidor da ciência e da tecnologia, não desvalorizando ou vaticinando a hecatombe das humanidades, ao invés de quem elogia e diviniza as ciências exatas.
É uma conceção de um cientista para quem o pesadelo de George Orwell, de uma ditadura tecnológica, com um controlo total da vida das pessoas, num mundo de cidadãos convertidos em autómatos, é de evitar através do não desaparecimento da cultura como questionamento permanente da realidade, agudizado se houver uma degradação das humanidades e do seu espírito crítico.
Reduzir a ciência apenas a uma sua parte, desprezando ou ignorando o estudo das múltiplas ciências que estudam toda a complexidade humana, é não só uma forma de incultura, mas também um modo de fugirmos da realidade e vivermos num mundo virtual.
10.04.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício