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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

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                    Minha Princesa de mim:

 

   Ao ler hoje, como é meu hábito diário, pela manhã nascente, o trecho do Evangelho proposto para o dia, comovi-me profundamente, como quase sempre me acontece ao silenciosamente entrar no texto de São João, pois que assim se nomeia o suposto autor do quarto evangelho, bem distinto dos três sinópticos, escrito provavelmente já na primeira década do século segundo, por alguém que não se cruzou pessoalmente com Jesus Nazareno. Este magnífico testemunho da vida adulta e do ensino, paixão, morte e ressurreição de Cristo aponta assim, nos dois últimos versículos (24 e 25) do seu capítulo final, o seu autor : Este é o discípulo que testemunhou estas coisas e as escreveu. E sabemos que o testemunho dele é verdadeiro. São muitas as outras coisas que Jesus fez, que, se fossem escritas uma a uma, não penso que o mundo tivesse espaço para tantos livros escritos. Mas, mais do que concluir daí a sua atribuição a redator contemporâneo de Jesus, designadamente João, filho de Zebedeu e pescador quiçá analfabeto e certamente ignorante da língua grega escrita, poderá talvez deduzir-se que o texto é, de facto, o registo posterior de memórias de uma comunidade cristã formada à volta de um João. Registo tal que, aliás, se terá elaborado por uma construção teológica dessa tradição de fé. Mas, Princesa de mim, remeto-te para a consulta da nota introdutória ao Evangelho de João, incluída pelo Prof. Frederico Lourenço na edição da sua tradução portuguesa (que aqui utilizamos) pela Quetzal (Lisboa, 2016). Nesta carta, só quero reproduzir o trecho que tanto me comoveu:

   Depois de ter lavado os pés deles, pegou na sua roupa e voltou a reclinar-se à mesa. Disse-lhes: «Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me "o Mestre" e "o Senhor" e dizeis bem. Sou de facto. Se eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós vos deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos um exemplo para que, tal como eu fiz, façais vós também. Amém, Amém vos digo, o escravo não é maior do que o amo dele, nem um apóstolo é maior do que Aquele que o enviou. Se sabeis estas coisas, bem aventurados sois se as fizerdes.
   Este trecho do capítulo 13 é como um prefácio à maravilhosa súmula da verdade cristã, que Jesus amorosamente nos dá, como João regista nos versículos 9 a 17 do capítulo 14, passo marcante do seu discurso de despedida, antes de partir, pela via crucis, a caminho da Paixão que o aguarda e lemos descrita pelo mesmo João em Sexta Feira Santa :

   Tal como me amou o Pai, assim eu vos amei. Permanecei no meu amor. Se observardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, tal como eu observo os mandamentos de meu Pai e permaneço no amor d´Ele. Disse-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria se complete. Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros tal como eu vos amei. Ninguém possui maior amor do que este, que alguém dê a vida pelos seus amigos. Vós sois meus amigos se fizerdes as coisas que vos mando. Nunca vos chamo escravos, porque o escravo não sabe o que faz o seu amo. Chamo-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vos dei a conhecer. Não fostes vós que me escolheste mas eu que vos escolhi e vos estabeleci, para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça, para que aquilo que pedirdes ao Pai em meu nome ele vos dê. As coisas que vos mando são que vos ameis uns aos outros.

   Mas foi hoje mais funda a minha emoção, pela circunstância difícil que estamos vivendo, e sobretudo pelo muito que ela tem movido o meu modo de pensarsentir a realidade humana, não só dos que muito sofrem, mas também de tantos e tantos que, generosamente, se vão oferecendo e esforçando para a todos trazerem um apoio, um alívio, um amigo, um aconchego, a nossa humanidade comum. Nem todos, talvez nem muitos, sejam cristãos confessos ou sequer crentes simplesmente. São apenas seres humanos livres que, pela singela consciência do ser antiquíssimo que todos somos na comunhão da nossa condição, vão distribuindo essa graça de frutos que em cada um permanecem, como lembrança, esperança e promessa de comunidade em amor. 

   A leitura que qualquer cristão faça dos capítulos 13 a 17 do evangelho de João nunca poderá ser sectária, nem sequer clubista. A mensagem ali contida só pode ser entendida à luz do versículo que afirma: Na casa de meu Pai há muitas moradas (Jo.14, 2). No seu Christian Beginnings: from Nazareth to Nicea, 30 a 325 DC (Penguin, 2013) Geza Vermes, professor de Estudos Judaicos na Universidade de Oxford, judeu de origem húngara, que estudou em Budapeste e Lovaina e passou por um período católico (creio que até foi padre jesuíta), falando do cristianismo joanino, escreve: Jesus o Filho, ou o Filho de Deus: é o título de Filho e não o de Messias que mais acertadamente descreve o Jesus joanino. E mais adiante diz: Na perspetiva religiosa do Quarto Evangelho, o Filho é enviado por Deus Pai, não como juiz final, mas como dispensador de vida. E o próprio Geza Vermes faz questão em recordar de que vida se trata, citando outro passo de João (17, 22-24): E eu dei-lhes a glória que Tu me deste para que sejam um, tal como nós somos um. Eu estou neles e Tu em mim, para que eles atinjam a completude em um, para que o mundo saiba que Tu me enviaste e os amaste tal como me amaste a mim. Pai, aqueles que me deste, quero que estejam também comigo onde eu estiver, para que contemplem a minha glória, que Tu me deste, porque me amaste antes da fundação do mundo... Daí que o professor oxoniano ouse dizer que, além da redenção da humanidade do pecado, o propósito da Incarnação do Filho é a deificação dos humanos.

   Em Sexta e Sábado Santos, fui sobretudo escutando, a meditar nos textos, as "Paixões" segundo Bach (S. Mateus, S. João e... S. Marcos, sim, quase desconhecida). A última estrofe cantada pelo coro de Marcos reza assim:

 

               Bei deinem Grab und Leichenstein,
               Will Ich mich stetes, mein Jesu, weiden,
               Und über dein verdienstlich Leiden
               Von Herzen froh un dankbar sein.

 

   Traduzo assim, acrescentando também os últimos quatro versos: "Junto da tua tumba e sua pedra
                                                                                                              para sempre quero ficar, ó meu Jesus!
                                                                                                              E graças à tua admirável Paixão
                                                                                                              estar de coração alegre e reconhecido
                                                                                                              e teu será este epitáfio:
                                                                                                              Da tua morte nasce a minha vida,
                                                                                                              aqui jaz a angústia dos meus pecados,
                                                                                                              que com Jesus aqui mesmo sepultei".

 

   Sobre a noite que vai caindo em dia de Sábado Santo se ergue a luz alegre das vestes de um anjo do Senhor que, rolando a pedra que fechava o túmulo, se senta em cima dela, diz às mulheres: Não temais. Sei que procurais Jesus, o crucificado. Não está aqui, pois ressuscitou, tal como afirmou.

   E em comunhão com todos, sobretudo aqueles que com pandemias se defrontam, pensossinto comigo que um dia será completa a nossa alegria. Seja já nossa essa semente da Páscoa de hoje.

 

            Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

UM SÉCULO SOBRE A PRIMEIRA PEÇA CONHECIDA DE ALMADA NEGREIROS

 

Nesta alternativa entre teatros-edifícios e teatros-textos, fazemos hoje referência ao “Antes de Começar” de Almada Negreiros, escrita há exatamente um século e que constitui a mais antiga peça "sobrevivente" do teatro criado pelo autor. Isto porque antes Almada teria escrito em 1912 dois textos teatrais desaparecidos, “O Moinho” e “23, 2º Andar” , tal como se perderam “Pensão de Família”, “A Civilizada”, “Os Outros” e cenas de peças que felizmente sobreviveram, algumas  em versões posteriores.

 

E por isso, “Antes de Começar”, título que assume valor simbólico, constitui a peça mais antiga de Almada que chegou até nós. Justifica-se assim esta referência ao centenário, sendo certo que a ela nos temos referido numa perspetiva dramatúrgica global, enriquecida, digamos assim, pelo conhecimento direto do teatro de Almada e do próprio autor, amigo de família.

 

E importa ter presente a simbologia que Almada atribui à sua obra dramatúrgica, como aliás à sua vastíssima e excecionalíssima criação artística e cultural. Orgulho-me pois de o ter conhecido bem.

 

E tenha-se então presente que o teatro de Almada Negreiros cerca de 15 peças, assume no seu conjunto a simbologia do lema que também é identificável na restante obra criacional: “1+1=1” marca esta expressão dramática que, afinal, surge também na restante, vastíssima, variadíssima e qualificadíssima obra do autor.

 

 E recordo, a propósito, que na pintura do pórtico da Faculdade de Letras de Lisboa, da autoria de Almada, “Todo o Mundo” é igual a “Ninguém”.

 

“Antes de Começar” é um diálogo de bonecos que assumem a luta de comunicação, busca de entendimento, a generalização da individualidade para o conjunto humano, em suma, a passagem do particular para o geral, raiz e essência da obra conjunta de Almada.

 

Tal como já noutro lado escrevemos, trata-se afinal de uma luta pelo entendimento, um esforço de comunicabilidade, a já referida passagem do particular para o geral numa expressão identificativa que em si mesma se consubstancia no simbolismo de  “1+1=1”.  É pois nessa passagem a identificação dos dois personagens que aparentemente seriam diferentes, mas não são.

 

E essa constatação permite-nos reproduzir um conjunto de citações retiradas desta e de outras peças de Almada, e que marcam a unidade tanto da sua obra teatral como da sua inigualável criatividade artística, aqui na fórmula do texto e do espetáculo.

 

Pois, como veremos em próximo artigo, esta conjunção estética e filosófica marca todo o conjunto do teatro de Almada Negreiros, no total das 15 peças, das quais se perderam diversas, e cenas de outras que completa ou parcialmente sobreviveram: mas em qualquer caso, o conjunto marca pela coerência, pela qualidade e pela homogeneidade estética de forma e conteúdo!

 

DUARTE IVO CRUZ