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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O CALVÁRIO DO MUNDO E A SANTA ESPERANÇA

Cristo com a Cruz _ filme de Pasolini.jpg

 

1. Pascal, um dos maiores matemáticos e cristãos de sempre, tinha prevenido nos Pensamentos: “Jesus estará em agonia até ao fim dos tempos. É preciso não dormir.”

Na Paixão de Jesus, estamos todos, pois os figurantes são exactamente os mesmos: Judas que não percebeu Jesus (esperava um messianismo de poder político) e o entregou; os sacerdotes do Templo, Herodes, Pilatos, que o condenaram à morte e morte de cruz; Pedro, o homem generoso, mas que, por cobardia, o negou; os discípulos que, apavorados, fugiram; os soldados que o torturaram, cumprindo ordens; o Cireneu que, embora um pouco forçado, o ajudou; os dois, talvez “terroristas”, que o ladearam na cruz: um continuou a blasfemar, o outro compreendeu e Jesus prometeu-lhe o Paraíso com ele naquele próprio dia; o centurião reconheceu:”Verdadeiramente este homem era Filho de Deus”; as mulheres nunca o abandonaram e ali estiveram em pé. E Jesus, que, no Getsémani sentiu pavor e pediu, em lágrimas e suando sangue, a Deus, seu Pai, que, se fosse possível, o libertasse daquele horror, talvez, transportando a cruz, o tenha assaltado a dúvida: valeu a pena?; morreu, perdoando a todos; sentindo-se abandonado e só, gritou aquela oração que ecoa através dos séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”, mas continuando a confiar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.

Contra o aviso de Pascal, não tínhamos estado atentos e adormecemos. E a Semana Santa estava quase exclusivamente centrada em rituais, em procissões gloriosas com esplendor, e em férias esbanjadoras. A cruz de Cristo foi (já não é?) frequentemente ultrajada em cruzes peitorais de ouro, prata, e pérolas preciosas embutidas. E tínhamos continuado a ser réus do Corpo e do Sangue do Senhor, porque enquanto uns comem lautamente e se embebedam outros morrem de fome, como acusou São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios...

Mas, de repente e sem contarmos, com esta pandemia que invade o mundo todo, fomos obrigados a acordar da letargia em que vivíamos e a parar. Como me escreveu, na Quinta-Feira Santa, um grande médico, cireneu lutador no Hospital de São João do Porto, enviando-me “um enorme abraço neste momento quase não-pensável, de um vazio enlouquecedor... e uma dor invisível quanto insuportável”, “há algo de simbólico, de quase premonitório neste tempo da PAIXÃO”. Por isso, eu digo que, com excepção da primeira, talvez nunca tenha havido uma Semana Santa tão verdadeira como a que estamos a viver. É preciso realmente não dormir, pois estamos convocados para reflectir a fundo sobre a primeira Semana Santa dramática, há 2000 anos, tirando todas as consequências dela, exigentes, certamente, mas ao mesmo tempo portadoras da esperança verdadeira para a vida autêntica neste mundo para o futuro da Humanidade, e abrindo para a transcendência da Vida plena em Deus, para lá de todos os horrores.

Por quem é que Jesus foi mandado matar e porquê? Ao contrário do que demasiadas vezes foi proclamado, ele não morreu porque Deus o tenha enviado para, pela sua morte, pagar uma dívida infinita da Humanidade a Deus e, assim, aplacar a Sua ira. Jesus não é vítima de Deus, mas vítima dos homens. Deus não precisa de vítimas. Jesus é mandado assassinar precisamente porque o Deus que ele anuncia não quer vítimas, e há demasiadas vítimas no mundo.

Jesus fez uma experiência avassaladora de Deus, o Mistério Sagrado, Pai-Mãe, Amor incondicional para com todos, a começar pelos mais frágeis e abandonados, as vítimas da injustiça e de sistemas opressores. Assim, como consequência, anunciou, por palavras e obras, o Reino de Deus, aquele Reino no qual não há opressão nem injustiça, Reino do amor, da justiça e da paz. Por isso, opôs-se à religião do Templo e à imagem do Deus em nome do qual os sacerdotes, os fariseus e os doutores da Lei oprimiam o povo. Jesus ergueu-se contra a Lei, mostrando que o mais importante é a pessoa na sua dignidade divina, todas as pessoas sem excepção, e curava doentes ao Sábado, dia absolutamente sagrado, comia com pecadores, prostitutas, publicanos... E proclamava: “Ide aprender: Deus não quer sacrifícios, mas justiça e misericórdia.” Evidentemente, a classe sacerdotal e os doutores da Lei viram os seus privilégios e interesses em perigo, ameaçados, e, por isso, condenaram-no.

A sua doutrina e as suas obras, embora ele nunca quisesse tomar o poder político — disse que tinha vindo para “servir, não para ser servido” —, colocavam igualmente em causa os interesses imperiais de Roma e, por isso, o representante do Império, Pôncio Pilatos, condenou-o à morte, mandando que fosse crucificado.

Jesus acabou por ser morto como blasfemo religioso e subversivo social e político, dando testemunho da Verdade e do Amor e proclamando que Deus não quer mais crucificados.

É isso: andávamos apressados, distraídos, adormecidos. É tempo de ir ao essencial. Neste drama, sempre presente, mas agora de forma brutal, paroxística, qual tem sido o nosso papel e que papel queremos desempenhar? A Igreja, concretamente, terá de recentrar-se, porque tem de saber que o centro não é de modo nenhum o poder, rituais imperiais, mitras e barretes cardinalícios, mas apenas o serviço a favor de todos. Muitos perguntam agora: Onde está Deus? Jesus respondeu que no Juízo Final não nos será perguntado pelo ritual, mas pelo amor, concretizado no que fizermos aos outros, nomeadamente aos desgraçados: “Tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de beber, estava nu (nu de vestido, de honra, de dignidade...) e vestiste-me, estava no hospital, na cadeia, e foste visitar-me”. Perguntaremos: “Quando te fizemos (ou não fizemos) isso, Senhor?”. “Sempre que o fizeste a um destes meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizeste”. Ele, ela, sou eu.

Onde está Deus hoje, no meio desta catástrofe? Está nos hospitais, nos lares, nas casas, nas empresas..., em todos os crucificados e naqueles e naquelas que, mesmo no meio de perigos e até correndo o risco de morte, procuram por todos os meios curar, dar alento, aliviar a dor, dar esperança, brincar com as crianças, animar e alegrar os outros com um telefonema, com música, consolar os tristes e mais idosos, pôr o país a funcionar minimamente... Esses são “os santos da porta ao lado”, como disse o Papa Francisco.

 

2. “E dando um grito forte, Jesus expirou”, diz o Evangelho.

A morte é sempre paradoxal: ela é biologicamente natural, faz parte da vida, mas, por outro lado, apresenta-se-nos como o maior enigma e mistério. Porquê? Porque o ser humano não se reduz a biologia. Por isso, na longa história da evolução (13.700 milhões de anos), sabemos que há pessoa humana, quando surgem a consciência da morte e rituais funerários. Aí, sabemos que já não estamos perante algo, mas alguém. E a morte angustia-nos, porque é o confronto com a ameaça do nada. “Para onde é que eu irei, quando cá já não estiver?”: pergunta lancinantemente Tolstoi em A morte de Ivan Ilitch. Como é que alguém se pode tornar ninguém, coisa que apodrece?

No presente pesadelo pandémico até a morte se torna ainda mais pesada. Na Quinta-Feira Santa, celebrei na minha terra o funeral de um irmão meu, falecido na Terça no hospital com cancro. Não poder haver uma despedida condigna, com tempo, porque até o ritual tem de ser distante, parco e apressado, não se poder chorar agarrado a alguém que também chora, não se poder abraçar, beijar, termos de parecer indiferentes uns aos outros, num vazio plúmbeo e silêncio de breu — isso pode ser, é mesmo, profundamente desolador. Para não falar daquela cena na Itália, que poderá repetir-se noutros lugares, arrasadora, de uma marcha lenta de camiões transportando, empilhados, os caixões de tantos mortos. Para onde se encaminhava a marcha? E volta, mais intensa, densa e dramática, para não dizer trágica, a pergunta: para onde vão os mortos?

Para a eternidade vamos: a eternidade do nada ou a eternidade do Deus criador e salvador.

É aqui, nesta perplexidade de abismo, que se trava o combate decisivo da fé e da esperança. Outra vez Pascal: “Incompreensível que Deus exista e incompreensível que não exista; que a alma seja com o corpo, que não tenhamos alma; que o mundo seja criado, que o não seja, etc.”. Mas continuamos a perguntar, sem fim, como Heinrich Heine: “E continuamos perguntando,/uma e outra vez,/até que um punhado de terra/nos cale a boca./Mas isto é uma resposta?”

E Jesus? Ele é o Crucificado, morreu na cruz. Mas, se ele fosse apenas o crucificado, não passaria de um homem bom que quis revolucionar a imagem de Deus e do Homem, mas não passaria de mais um crucificado e não haveria cristianismo. “Eu sou a Ressurreição e a Vida”: foi por causa desta proclamação que o cristianismo venceu, disse-me um dia o filósofo ateu, mas religioso, Ernst Bloch. E lembro E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, que, na sua obra A Figura Histórica de Jesus, quis dar uma visão convincente do conjunto da vida do Jesus real, portanto, apenas a partir da história, independentemente da fé. Conclui, como ficou dito, que é possível saber que o centro da mensagem de Jesus foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o Templo, que compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas também sabemos que, “depois da sua morte, seguidores fizeram a experiência do que descreveram como ‘ressurreição’: aquele que tinha morrido realmente apareceu como ‘pessoa viva, mas transformada’. Acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso.” Assim, criaram um movimento, que cresceu e se estendeu pelo mundo e mudou a História. Grande parte da Humanidade foi atingida por esse movimento e pela esperança que transporta de Vida eterna.

Por mim, faço minha a confissão de fé do teólogo Hans Küng, o teólogo considerado rebelde. Recentemente, uma irmã perguntou-lhe: “Acreditas realmente na vida depois da morte?” E ele: “Sim, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma confiança irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. Vita mutatur, non tollitur: a vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo”.

Permita-se-me, neste contexto, deixar aqui as palavras que pronunciei no funeral do meu irmão, diante do caixão aberto: “O meu irmão acreditou sempre em Deus, no Deus que é Amor, Pai-Mãe, como nos foi revelado por Jesus, na sua pessoa, por palavras e obras. O meu irmão entregou a sua vida ao anúncio do Evangelho, a mensagem boa e felicitante de Jesus, e fê-lo por palavras, obras e atitudes. O meu irmão não está aí morto. Nem sequer se pode propriamente dizer que partiu para Deus. Na morte, o meu irmão tomou consciência plena de que foi em Deus que sempre existiu e é, como foi anunciar São Paulo a Atenas: ‘É n’Ele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos’. Assim, o meu irmão nunca esteve tão vivo nem nunca foi tão feliz.” Como é ninguém sabe.

É esta “a Santa Esperança”, como lhe chamou Charles Péguy.

Boa Páscoa para todos!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 12 ABR 2020