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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

Espreitou pelo bocal da ânfora inclinando a cabeça para o interior do vaso: lá dentro o que em tormento sonhara vígil, a confirmação do que suspeitara no quase antes do adormecer.

 

Agora, o alerta vencia o sono.

 

Lá dentro, eram inúmeras as gentes em afazeres iguais, executantes de cidades e de países, todos sob um líquido translúcido e pegajoso, todos a correrem em círculos para o mesmo lado, numa obediência sem limite a quem.

 

Todos se pisavam violentamente uns aos outros para que diminuíssem o número daqueles a vigiar e também daqueles que quase tinham saído do líquido e que deveriam voltar a entrar para mais fundo ainda, não sem que antes passassem pela antecâmara que lhes sugaria a réstia de ar, liquidando-os definitivamente.

 

Dos círculos sobressaíam máscaras que tapavam os rostos de quem ali se acoitava como testemunha do que se passava. Assim e afinal estavam marcadas estas gentes. Confirmava-se tudo o que suspeitara.

 

O que lhes aconteceria? Seriam despersonalizadas? Teriam destino expiatório?

 

Olhou uma segunda vez para dentro da ânfora. Vendo sem ser visto. Os guardas da entrada estavam apenas atentos ao interior.

 

Contudo, receava as micro-câmaras que, dissimuladas, e sem sono, tudo registavam, concentradas no que se jogava, e aptas a quebrarem sempre duas asas de cada vez, lá onde se decidia o absolutismo do poder.

 

Teresa Bracinha Vieira

O CONTÁGIO DA ESPERANÇA

 

1. Naquele fim de tarde escuro do passado dia 27 de Março, quando a chuva começava a cair, o Papa Francisco, sozinho, concentrado, em passos lentos, quase alquebrado como se transportasse aos ombros a cruz da Humanidade toda, atravessou, em silêncio, uma Praça de São Pedro deserta e subiu os degraus para uma plataforma fragilmente iluminada e rezou, sozinho. Uma imagem que fica na memória de todos quantos assistiram àquela caminhada lenta, uma das imagens marcantes desta catástrofe. A apontar para a solidariedade mundial de todos e para a esperança. E disse: “Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair da noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem; pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos.” Aludindo à imagem do Evangelho, acrescentou: “Fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda”. Constatando que “nos demos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários”, continuou, sublinhando o que desde a deflagração da pandemia tem sido uma constante sua: “Somos todos chamados a remar juntos, todos carecidos de encorajamento mútuo.” “Estamos juntos neste barco”, ninguém poderá vencer a tempestade sozinho, “só conseguiremos todos juntos”. E incutiu esperança e abençoou o mundo: “Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus.”

 

De lá, do seu confinamento em Santa Marta no Vaticano, todos os dias está presente ao mundo, dando ânimo, esperança, apelando à co-responsabilidade mundial. Para que ninguém se sinta só. Na homilia do Domingo de Ramos, mais uma vez, apelou à solidariedade, lembrando concretamente os mais sós: “Quando nos sentimos encurralados, quando nos encontramos num beco sem saída, sem luz, quando parece que nem Deus responde, lembremo-nos de que não estamos sozinhos.” E foi ao essencial, quando a Humanidade no meio desta pandemia é obrigada a deixar o supérfluo: “O drama que estamos a atravessar impele-nos a levar a sério o que é sério, a não nos perdermos em coisas de pouco valor, a redescobrir que a vida não serve, se não for para servir. Porque a vida mede-se pelo amor.” Aos jovens deixou esta mensagem: “Queridos amigos: olhai para os verdadeiros heróis que vêm à luz nestes dias: não são aqueles que têm fama, dinheiro e sucesso, mas aqueles e aquelas que se oferecem para servir os outros. Senti-vos chamados a arriscar a vida.”

 

2. No Domingo de Páscoa, há 8 dias, deixou uma mensagem histórica, pensando já no que é preciso e urgente para o futuro próximo. Uma mensagem própria de um líder político-moral global, pronunciada excepcionalmente, como não acontecia desde 1947, a partir do interior da Basílica de São Pedro e não da varanda frente à Praça. Para a sua síntese, inspiro-me na exposição esquemática do jornal “La Croix”.

 

2.1. Dedicada em larga medida à crise causada pela Covid-19, incentivou o mundo, “oprimido pela pandemia, ao contágio da esperança.” A ressurreição de Cristo não é “uma fórmula mágica que faz desaparecer os problemas, mas a vitória do amor sobre a raiz do mal.” E lembrou em primeiro lugar as vítimas do coronavírus, “os doentes, os que morreram, e as famílias que choram o desaparecimento dos seus entes queridos, aos quais por vezes não puderam sequer dizer um último adeus”.

 

2.2. Pediu para não esquecer aqueles que esta pandemia torna ainda mais vulneráveis: “os idosos e as pessoas sós, os que trabalham nas casas de saúde, os que vivem nas casernas ou nas cadeias”. Uma palavra especial, “pedindo força e esperança” para os médicos e enfermeiros, auxiliares, todo o pessoal de saúde, “que em toda a parte oferecem ao próximo um testemunho de atenção e de amor até ao limite das suas forças e muitas vezes até ao sacrifício da sua própria saúde”. Exprimiu-lhes a sua “gratidão”, a eles e “aos que trabalham assiduamente para garantir os serviços essenciais”, e ainda aos polícias e militares que “contribuíram para aliviar as dificuldades e os sofrimentos da população.”

 

2.3. Encorajou os governos “a empenhar-se activamente a favor do bem comum dos cidadãos, fornecendo os instrumentos e os meios necessários para permitir a todos levar uma vida digna e para favorecer, quando as circunstâncias o permitirem, a retoma das actividades quotidianas habituais”.

 

Porque “este tempo não é o tempo da indiferença, todos devem estar unidos para enfrentar a pandemia”, e fazer o necessário para que não se agrave a situação dos que já carecem de alimentos, medicamentos e assistência de saúde.

 

E pediu um alívio das sanções internacionais, “que impedem os países que as sofrem de dar um apoio conveniente aos seus cidadãos” e a redução ou até pura e simplesmente o perdão da “dívida que pesa sobre os orçamentos dos mais pobres.”

 

2.4. Porque “este tempo não é o tempo dos egoísmos”, dirigiu uma palavra veemente sobre e para a União Europeia, que nestas últimas semanas não brilhou particularmente pela sua solidariedade. Sublinhando que “do desafio do momento actual dependerá não só o seu futuro, mas o do mundo inteiro”, lembrou “o espírito concreto de solidariedade que lhe permitiu ultrapassar as rivalidades do passado” a seguir à Segunda Guerra mundial, sendo imperioso que “estas rivalidades não ganhem novo vigor”. E preveniu: “A alternativa é o egoísmo dos interesses particulares e a tentação de um regresso ao passado, com o risco de expor a uma dura prova a coabitação pacífica e o desenvolvimento das próximas gerações”.

 

2.5. Porque “este tempo não é o tempo das divisões”, apelou a “um cessar fogo mundial e imediato em todas as regiões do mundo”, citando nomeadamente a Síria, o Iémen, o Iraque, o Líbano, a Terra Santa, a Ucrânia e os “ataques terroristas perpetrados contra tantas pessoas inocentes em diversos países de África”, e desejou que “os capitais enormes” para o armamento “sejam utilizados para cuidar das pessoas e da melhoria das suas existências”.

 

2.6. Porque “este não é o tempo do esquecimento”, fez votos “para que a crise que enfrentamos não nos faça esquecer outras emergências que trazem consigo o sofrimento de muitas pessoas”, citando as “graves crises alimentares” na Ásia e na África, mas também a situação dos migrantes “que vivem em condições insuportáveis, especialmente na Líbia e nas fronteiras entre a Grécia e a Turquia, a que juntou especificamente a ilha de Lesbos, e a Venezuela.

 

2.7. E concluiu: “Indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são propriamente as palavras que queremos ouvir neste tempo. Queremos bani-las para sempre!”.

 

3. A esperança não se pode confundir com wishfull thinking. Ela tem de ser pensada e activa, implicando uma estratégia correcta e eficaz. Assim, durante a semana, Francisco, convencido de que nos encontramos numa mudança de época, criou uma comissão de peritos, com cinco grupos, para estudar a crise económica, social e política global, já presente e que se agravará na sequência deste flagelo pandémico, e qual o contributo que a Igreja pode e deve dar a nível local e universal.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 ABR 2020

A ALEGRIA EPILÉPTICA

 

É afrodisíaca mesmo que quem a sinta não saiba quem raio seja Afrodite. Falo da grande alegria, daquela que já não cabe no corpo, dessa alegria que nos estremece, enche e esvazia os pulmões. A alegria convulsa.

 

Imaginem um campo de prisioneiros. Jim, um miúdo inglês, cresceu ali, meio-protegido, meio-abusado, por dois corrécios americanos. Cresceu entre o desdém e a humilhação dos guardas japoneses.

 

O campo de prisioneiros já é o deserto de toda alegria. Mas o campo de prisioneiros que sofre o ataque da nossa própria aviação é o pandemónio dos sentimentos, a lágrima de sangue que transborda do cálice. Só o Pai que sabemos tem a crueldade de dar esse cálice a um Filho.

 

É o que acontece em “Empire of the Sun”, filme de Steven Spielberg. Há um ataque aliado. Um Christian Bale novinho, o actor que dá corpo a Jim, corre eufórico para o telhado meio-destruído de uma das construções do campo de concentração.

 

Lá em cima, salta, abraça-se a si mesmo, treme de excitação, respira forte para não sufocar e explode num grito e num riso epilépticos. O mundo suspende-se, o movimento quase pára para deixar voar a beleza fantástica de um avião de fogo e morte.

 

O pindérico inglesinho sobrevivente berra: “P-51 Cadillac of the skies”. Vénus quando era virgem, Deus nosso senhor, a inominável Beleza, não seriam saudados com mais exaltação e exultação. Jimmy salta de costas, salta de frente, enquanto as bombas rebentam com tudo à sua volta. “P-51 Cadillac of the skies”, ó alegria de um catano: o fogo, a morte, a destruição, sabem-lhe a vitória. O avião dos seus sonhos, que os seus dedos quase tocam fisicamente, arrasa o mundo em escombros onde sobrevive. Tudo morre, mas tudo morre para que ele renasça.

 

A alegria convulsa, epiléptica, é privilégio de criança. Tem de ser inaugural. Lembro-me da minha primeira vez, dos sintomas e do devastador ataque. Conto.

 

A primeira vez que eu vi mesmo o mar foi já no meio do Oceano Atlântico. De Angola, o meu pai chamava os meus cinco anos e lá iam eles agarrados à saia da minha mãe e a toque de caixa da minha irmã. O pouca-terra, pouca-terra, numa tarde de cerejas vermelhíssimas, trouxera-nos da Beira fria, farta e feia. Em Lisboa, Cais da Rocha, tínhamos entrado no Vera Cruz, então sofisticado transatlântico. Descemos logo ao camarote e quando voltámos a subir – no dia seguinte? –cercava-nos um vasto tapete ondulado, de um azul inútil e livre. Flutuávamos num infinito lençol oscilante: Houdini tinha escondido a terra.

 

Os pulmões não me cabiam no peito de contentes; em riso e lágrimas até pelos olhos os pulmões me saíam. Dizem que é a plenitude. Gostava de me lembrar melhor, se era igual o azul de céu e mar, se havia vento, quase nenhumas nuvens, e se cantavam sereias ou sonhava já contigo.

 

Manuel S. Fonseca 

A VIDA DOS LIVROS

De 20 a 26 de abril de 2020

 

Poucos dias antes de nos deixar, Maria de Sousa (1939-2020) escreveu o poema “Carta de Amor numa Pandemia Vírica”, que aqui reproduzimos integralmente na invocação de uma cientista que amava as artes, a poesia, a literatura, a filosofia, a música e a cultura.

 

 

A CIÊNCIA E A CULTURA DE MÃOS DADAS
Maria de Sousa foi uma médica, bióloga e mulher de cultura e de ciência de exceção, que nos deixou vítima do terrível vírus que nos assola. Lembramo-nos do seu livro “Meu Dito, Meu Escrito” (Gradiva, 2014), onde se encontra a força e a alegria da sua personalidade única. Era Professora Emérita da Universidade do Porto e fez um brilhante percurso internacional no Reino Unido (onde foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian) e nos Estados Unidos. Encontrei sempre em Maria de Sousa, que conheci em 1985, o genuíno entusiasmo de quem procura em cada momento o modo de chegar à dignidade humana pela vida, pelas ideias, pelo entendimento da complexidade, pela compreensão de que a descoberta corresponde ao sentido crítico e ao permanente inconformismo. Daí dar tanta importância ao desassossego, que nos leva ao exemplo, à aprendizagem e à experiência. Em 1966 tornou-se notada ao publicar no “Journal of Experimental Medicine” e na “Nature” dois artigos relatando descobertas fundamentais em imunologia na sequência de estudos realizados nos laboratórios do “Experimental Biology do Imperial Cancer Research Fund” em Mill Hill (Londres). Numa notável entrevista a Anabela Mota Ribeiro, explicou, com uma grande simplicidade, o que fez nesse tempo: «Creio que todos saberão que temos linfócitos a circular. O que muitos não saberão é que os linfócitos não são uma população homogénea, com a mesma pátria. Uns nasceram no timo e saíram para a circulação no período a seguir à nascença, outros fora do timo, na medula óssea. Essa distinção não era clara em 1964. Ainda se pensava que talvez viessem todos do timo. O meu trabalho consistiu na observação de lâminas de cortes de órgãos linfáticos periféricos de ratinhos que tinham tido o timo removido no período neonatal. As minhas observações demonstravam que esses animais timectomizados à nascença ainda tinham linfócitos. E mais, os espaços vazios de linfócitos eram distintos dos espaços onde havia linfócitos, o que significava que as células pareciam saber para onde ir. Isso foi posteriormente demonstrado como uma técnica importante, a autoradiografia, que permitia seguir células marcadas. As do timo iam para o território a que chamámos área dependente do timo (tda) e que hoje é conhecida por Área T. E achei esse fenómeno de as células saberem para onde vão tão importante que lhe dei (em 1971) um nome: Ecotaxis».

 

REGRESSADA A PORTUGAL
Quando regressou a Portugal, desempenhou um papel fundamental na Universidade do Porto, no Instituto Abel Salazar, mas também, ao lado de José Mariano Gago no lançamento da política científica nacional. Como afirmou Manuel Valsassina Heitor: «Foi com a Maria de Sousa, com Fernando Lopes da Silva, que aprendemos a ser sujeitos em Portugal a avaliação científica independente, quando José Mariano Gago era presidente da JNICT no final dos anos 1980. Inicialmente testada para as ciências da vida sob a liderança da Maria, esta prática que hoje nos parece tão óbvia, só viria a ser alargada a todas as outras áreas científicas há 25 anos, com a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia». Não por acaso, Maria de Sousa citava muitas vezes o grande Garcia de Orta: «O que sabemos é a mais pequena parte do que ignoramos». E entendamos que se trata de um verdadeiro programa de vida e de conhecimento. Só essa atitude nos permite compreender como o espírito científico é uma busca permanente, de insatisfação, de persistência, de tentativa e erro, de regresso constante ao que podemos saber mais. Quando morreu o nosso comum amigo José Mariano, a Maria de Sousa, grande leitora e amante de poesia e de arte, escreveu: «Há os que passam e os que ficam / Há os que ficam onde os seus restos mortais ficarem ou cinzas forem dispersas / Há os que ficam nos que lhes são mais próximos: amores, filhos, mãe, amigos, mulher, etc. / Há os que ficam em muitos outros desconhecidos / Há em geral espaços em que todos ficamos mortos / Mas no tempo, na transformação do tempo / Só um ou outro raro e belíssimos no fazer e no fazer-se / Ficará. / Como este assim / Que será sempre encontrado no tempo todo / Na história da ciência na Europa / E neste nosso país / Transformando o nosso tempo/ Transformando-nos pelo seu Fazer / No Seu Fazer-se». E podemos dizer que nestas belíssimas palavras, encontramos facilmente também a sua autora, uma vez que, de facto, entendeu “o tempo todo”, compreendendo que nos transformamos pelo que fez no sentido do que fazemos.

 

SABIA MUITO E EXPLICAVA BEM
Francisco Pinto Balsemão recordou, aliás, no “Expresso”, as extraordinárias qualidades de quem “sabia e sabia muito e explicava bem” e sobretudo que não havia domínio da cultura que lhe fosse estranho. Sou testemunha pessoal disso mesmo. E se era uma pessoa de esperança, era-o de fino humor, mas sobretudo de querer e de esperança, como fica bem evidente no último poema que escreveu:

«Carta de amor numa pandemia vírica.

Gaitas-de-fole tocadas na Escócia / Tenores cantam das varandas em Itália / Os mortos não os ouvirão / E os vivos querem chorar os seus mortos em silêncio / Quem pretendem animar? / As crianças? / Mas as crianças também estão a morrer / Na minha circunstância / Posso morrer / Perguntando-me se vos irei ver de novo / Mas antes de morrer / Quero que saibam / O quanto gosto de vós / O quanto me preocupo convosco / O quanto recordo os momentos partilhados e queridos/ Momentos então / Eternidades agora / Poesia / Riso / O sol-pôr / no mar / A pena que a gaivota levou à nossa mesa / Pequeno-almoço / Botões de punho de oiro / A magnólia / O hospital / Meias pijamas e outras coisas acauteladas / Tudo momentos então / Eternidades agora / Porque posso morrer e vós tereis de viver / Na vossa vida a esperança da minha duração.

3 de abril de 2020».

Onze dias depois, apenas, deixou-nos, recordando a plena vitalidade e o apego à vida que se comunica em permanência. E assim a sua memória está bem viva, como exemplo e como apelo a que a educação e a ciência de mãos dadas possam criar vias de esperança, sobretudo neste momento de incerteza e perplexidade. Como disse Sófocles: “Inúmeras são no mundo as maravilhas, mas nenhuma que ao homem se compare. É o ser dos recursos infindáveis”.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:  

 

   Eis como vou vivendo esta  Semana Santa: em quarentena que me aproxime de familiares e amigos, e de ti, Princesa de mim, na contemplação de mistérios que, menino e moço, aprendi a guardar em labor de contínua cultura. Também me dá para novamente mergulhar nos labirintos secretos da literatura japonesa, talvez por me desafiarem a repensarsentir o nosso próprio universo. Acontece-me, aliás, ser levado por atalhos de regresso ou de vaivém, como quando autores nipónicos do início do século XX se inspiram em Stendhal ou Flaubert, sem esquecer Anatole France, que um romancista japonês me recordou, e do qual um encontro com Pilatos na leitura da Paixão de Jesus Cristo me fez reler Le Procureur de Judée.

 

   Para quem, como eu, viveu alguns anos no Japão, a leitura de textos históricos e literários, mesmo da Bíblia, ganha, em paralelo  ao seu propósito espiritual, e deste por vezes extravasado, um sabor exótico acentuado pelo próprio ambiente climático e cultural em que tal leitura se vai então fazendo. Jerusalém, a Judeia e a Galileia do tempo de Jesus não têm vida nem história entendíveis sem a perceção de Roma e do seu poder, ao ponto de ser até fácil cair-se na tentação de cotejar duas cidades mediterrânicas tão carismáticas e imaginar algum tribuno romano a reclamar delenda est Jerusalem! , como aliás veio a acontecer com a destruição do Templo no ano 70 D.C. E, por outro lado, também imaginaremos cheiros, alimentos, encontros e ruídos familiares, contrapondo-os à humidade do clima japonês, que o calor estival anualmente torna pesado, sudorífero e silencioso. Quando estamos no campo, sobretudo na montanha pouco habitada, abandonamo-nos a essa atmosfera, entregamo-nos a uma meditação telúrica com a natureza, como se nesta também a transcendência repousasse. Esquecemos a distinção mediterrânica, linear, da luz e da sombra, a verticalidade grega de uma iluminação vinda de cima. E percebemos melhor o porquê de São Francisco Xavier ter desistido de achar na terminologia shintoísta ou budista palavra que dissesse Deus, ao que parece quando descobriu que até a palavra kami  significa os espíritos, mesmo imanentes (como árvores, águas ou rochas) do universo. Por isso os nossos jesuítas optaram pelo nome latino e português de Deus que, em romaji ou caracteres latinos para transcrição fonética do japonês de então, se escreveu Daesu.

 

   A revisão literária "ocidentalizante" que se iniciou na Era Meiji e se prolongou pelos períodos Taisho e Showa, na primeira metade do século XX, trouxe à ribalta das letras nipónicas formas de tratamento dos comportamentos e paixões mais conformes aos cânones das escolas romântica, realista e naturalista europeias. Mas delas se apoderaram sensibilidades japonesas, que lhes trouxeram um gosto mais paciente do pormenor e outra delicadeza e profundidade. Sobretudo, talvez, um pouco mais de penumbra, um jeito mais sombrio de aproximar e contemplar humanos corações e mentes. Algo bem chegado ao mistério essencial da humanidade e do mundo, tal como sentido por imanência. Tenho para mim - reconhecendo todavia tratar-se sobretudo de pessoal sensibilidade - que a espiritualidade japonesa mais próxima da nossa se encontra no ensinamento Zen. Talvez por uma certa mística do vazio como visão. Ou por uma qualquer possível intuição metafísica de Deus que, todavia, no cristianismo se revestiu da humanidade de Pai. Diz o preceito da oração de Jesus: Pai Nosso... O mesmo a que, na agonia humana da morte, o mesmo Jesus interroga: Meu Pai, meu Pai, porque me abandonaste? Como, ao longo de séculos, a todos nós tem acontecido fazê-lo.

 

   Le Procurateur de Judée, a novela histórica de Anatole France que te referi, conheceu várias edições, a primeira em 1902, tendo Leonardo Sciascia, que dela publicara uma tradução para italiano em 1980, escrito um posfácio para a edição francesa de 2005 (Paris, Payot et Rivages) de que seguidamente te verto alguns passos:

 

   Tácito, Anais, Livro III: «Entretanto, em Roma, Lepida que, além da nobreza dos Aemilii, se reclamava da ancestralidade de L. Sila e C. Pompeu, foi acusada de ter fingido dar à luz um filho nascido da sua relação com P. Quirinius, homem rico e sem descendência. Era ainda acusada de adultério, envenenamento, e de ter consultado magos caldeus sobre a família do imperador». Estamos no início da década de 20, depois do nascimento de Cristo, e Tácito narra o caso de Lepida como exemplo da corrupção de que eram então presas as grandes famílias. Na realidade, trata-se de ação movida por um marido, a fim de negar a sua paternidade de um filho que sua mulher, da qual estava separado tinha fingido ter tido. Duplo delito, pois, ao qual, diríamos nós hoje, no decurso da instrução, se acrescentam adultério, tentativa de envenenamento, manigâncias com magos caldeus que prefiguram crime de lesa majestade. Tácito não fala em cúmplices nem corréus. Dezanove séculos mais tarde, Anatole France inventa um: Lucius Aelius Lamia: «Acusado de  manter relações criminais com Lepida, mulher de Suplicius Quirinus...» [há aqui um pequeno engano, esse Quirinus não se chamava Sulpicius, mas Publius] E a partir da condenação ao exílio que fere o adúltero Lamia se desenvolve uma narrativa curta e perfeita, quiçá uma das mais perfeitas do género.

 

   Tal conto é, na opinião de Leonardo Sciascia, e na minha, uma homenagem paradoxalmente subtil e descarada àquilo que terá sido o ceticismo e o espírito de tolerância de Tácito, tal como te lembrarei na próxima carta. Por hoje, em tarde cinzenta e atenta de 4ª. Feira Santa, vou recolher-me na escuta da versão original, para orquestra, das Septem Verba Christi in Cruce, de Joseph Haydn, considerada uma das obras mais representativas da música do Iluminismo, composta por um pedreiro livre sobre palavras dos evangelhos da Paixão de Cristo. Aliás, a única voz humana que se ouve, recitando-as, é de um narrador. Na gravação, que irei acompanhar hoje, de Le Concert des Nations, de Jordi Savall, registam-se também textos de Raimon Panikkar e José Saramago. Pela mão deste interrogarei também a minha fé:  ...E eu respondi-lhe:« Sai da minha frente, Satanás. Impedes-me o caminho porque não entendes as coisas à maneira de Deus, mas à maneira dos homens». ...   ...E agora, Deus Pai, Senhor, uma última pergunta: Quem sou eu? Em verdade, em verdade, quem sou eu?

 

   Estas cartas, afinal, são apenas desabafos. Para nos ajudarem a pensarsentir, juntos, esta Páscoa em confinamento.

 

   Amanhã, voltarei ao que estava a dizer-te...

 

 Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira

NOS 20 ANOS DA RECUPERAÇÃO DO TEATRO ROMANO DE BRAGA

 

Já tivemos ocasião de evocar a recuperação das ruínas do Teatro Romano de Braga, nos finais de 1999. As duas décadas entretanto decorridas justificam esta nova referência, até porque não são muitos os vestígios de espaços de espetáculo de tão longa tradição entre nós. E a esse respeito, pode-se também citar o Teatro Romano de Lisboa, descoberto em 1798.

 

Ora, tal como evocamos, na então Bracara Augusta, já fora dos limites históricos da Lusitânia, os trabalhos de expansão urbana da atual Braga puseram a descoberto o conjunto do teatro e anfiteatro. Foram desenvolvidos entretanto trabalhos da Câmara Municipal e da Universidade do Minho para a recuperação arqueológica e divulgação histórica dignos de registo, sobretudo porque, como bem sabemos, são poucos os recintos de espetáculo oriundos do período da civilização romana que chegaram até nós.

 

 Aliás a Lusitânia Romana não abrangia o território português a norte do Douro. Mas estendia-se pela Península, tendo por capital a então chamada Augusta Emerita hoje região de Mérida. Evoca-se o Anfiteatro de Mérida, capital que foi da Lusitânia, o mais imponente, significativo e utilizado recinto/monumento de espetáculos de origem romana da Península: os trabalhos de pesquisa e recuperação revelam uma área significativa de construção que documenta da melhor maneira a importância do aglomerado urbano e o seu significado cultural e monumental.

 

No que respeita a Bracara Augusta, as termas romanas de Maximinos ou as ruínas encontradas na área que é hoje a zona das Carvalheiras, referidas por Fernando Mota de Matos, são vestígios, já recuperados e devidamente estudados, da importância do núcleo urbano: como o é também o que Aarão de Lacerda descreve minuciosamente como o Quintal do Ídolo, remetendo para estudos de Leite de Vasconcelos e outros autores que tivemos já ocasião de referir.

 

Como dissemos, as ruínas foram descobertas em 1999 no contexto de trabalhos de reconversão urbana de cidade de Braga. A partir dessa data, decorridos que foram 20 anos, assinalam-se trabalhos notáveis de recuperação, descritos designadamente no estudo intitulado “A Construção do Teatro Romano de Bracara Augusta”, da autoria de Manuela Martins, Ricardo Mar, Jorge Ribeiro e Fernanda Magalhães.

 

A transcrição que a seguir se faz do estudo acima citado, permite avaliar este trabalho notável de recuperação. E decorridos estes 20 anos, haverá ainda muito a dizer das ruínas do teatro romano de Braga, o qual teria uma lotação de 4000 a 4500 espetadores.

 

Citamos o estudo: “A intenção politica terá residido no estabelecimento de uma relação privilegiada do edifício com o fórum que se situava a nascente do teatro”. E refere-se “a construção de termas públicas anexas que se dispõe a sul do teatro, sendo de sublinhar que existem numerosos exemplares de uma estreita relação entre os teatros, os equipamentos termais e os jardins”.

 

Nestes 20 anos decorridos, o que já chegou até hoje e a forma como se procedeu à recuperação constitui um caso exemplar de articulação de entidades públicas que, na altura escrevemos, e hoje repetimos, tantas vezes por esse país fora, vivem de costas voltadas ou em conflito aberto: E voltaremos ao assunto!...

 

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA
Carlos Fabião “A Herança Romana em Portugal” – 2006; Fernando Mota de Matos, in “Portugal Património”, dir. Álvaro Duarte de Almeida e Duarte Belo vol. I - 2007; Aarão de Lacerda “História da Arte em Portugal” – 1942; Manuela Martins, Ricardo Mar, Jorge Ribeiro e Fernanda Magalhães “A Construção do Teatro Romano de Bracara Augusta” in “História da Construção – Arquitetura e Técnicas Construtivas” coord. Arnaldo Sousa Melo e Maria do Carmo Ribeiro - 2013.

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

47. DO UTILITARISMO À JUSTIÇA DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS

 

Para Jeremy Bentham, há um princípio moral essencial: o da utilidade.

 

Sempre que haja a possibilidade de escolha entre ações ou políticas sociais alternativas, há que escolher aquela que, no seu todo, se apresente mais satisfatória para todos os interessados.   

 

John Stuart Mill, discípulo de Bentham, expôs as suas ideias no livro Utilitarismo, em que defende que ao decidir o que fazer, devemos perguntar qual o curso da ação que irá promover a maior felicidade para todos os que serão afetados pelos nossos atos.

 

Para os utilitaristas o bem é o que trouxer maior felicidade global.

 

A boa ação é que tiver maior exequibilidade de trazer a maior felicidade nas circunstâncias em causa.   

 

Uma objeção feita ao utilitarismo é que pode justificar muitas ações que, usualmente, são tidas imorais. Exemplificando: se pudesse provar-se que enforcar publicamente um inocente teria o efeito benéfico e imediato de reduzir os crimes violentos, por atuar como um fator de dissuasão, causando assim, no cálculo geral, mais prazer que dor, um utilitarista seria obrigado a aceitar que enforcar um inocente é a atitude moralmente mais correta a tomar.   

 

Generalizando, o princípio da utilidade ou utilitarista implica a maximização do bem-estar de todos os envolvidos, tendo também em conta os recursos disponíveis.

 

As medidas a tomar devem ser as que geram maior utilidade, maior bem-estar agregado, incluindo aqui, por exemplo, o doente em causa, outros doentes no mesmo contexto e com as mesmas necessidades, e a sociedade em geral.   

 

Defende-se um economicismo, poupança ou contenção dos custos que tem de ter lugar em função da maximização do bem-estar geral.     

 

Tem de ser medido pela utilidade máxima geradora para a sociedade no seu todo, pouco ou nada relevando o direito das pessoas, das minorias, marginalizados ou mais vulneráveis, desde que o conjunto beneficie maioritariamente com o sacrifício delas ou de alguns.     

 

A natureza ou eficácia deste princípio decorre de produzir ou não resultados positivos, tendo como admissíveis todos os meios para atingir os fins.       

 

Em oposição, temos o princípio da justiça ligada à defesa e promoção dos direitos humanos.   

 

Sendo a pessoa, todo o ser humano, um fim em si mesmo, é inadmissível sacrificar direitos humanos de uma pessoa para salvar um maior número de outras pessoas.

 

Contra o consequencialismo utilitarista, adota-se uma conceção deontológica, assegurando uma justiça unida à defesa e promoção dos direitos humanos, enumerando determinadas coisas que podem ser sempre feitas, ou que nunca podem ou devem ser feitas ainda que isso levasse a um maior bem-estar da sociedade em geral.

 

As restrições serão sempre ditadas pelos direitos humanos.

 

A racionalização dos custos não pode ser feita em função do bem-estar geral, mas no sentido de proteger, do melhor modo possível, por exemplo, o direito à saúde dos doentes, ou doente, em causa.   

 

Aqui o padrão ético e moral é mais elevado, estando indisponível para cortes cegos ou negociações, disponibilizando-se apenas para adaptações e tão só como último recurso, ao invés do utilitarismo que se adapta imediatamente em função da maior ou menor pressão dos recursos disponíveis. 

 

O pior e mais condenável é várias dimensões humanas entrarem em choque e conflito, desde logo a ética e a ciência, porque esta também tem limites, não tendo respostas para tudo.

 

Esta introdução teórica questiona-nos sobre os critérios de preferência a adotar, na prática, em termos de sobrevivência da espécie humana, nos tempos que agora vivemos, face à pandemia do coronavírus (do COVID 19) para a humanidade, que iremos abordar.

 

17.04.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício  

BERGAMO

 

Pega no tempo 

E coloca-o na tua mão em chaga

 

Verás que uma ave 

Inesperada 

Maravilha-se

 

E recompensada voa 

Levando as trágicas horas consigo

 

E é teu o espetáculo

 

Ex ovo           

 

Teresa Bracinha Vieira  

O CALVÁRIO DO MUNDO E A SANTA ESPERANÇA

Cristo com a Cruz _ filme de Pasolini.jpg

 

1. Pascal, um dos maiores matemáticos e cristãos de sempre, tinha prevenido nos Pensamentos: “Jesus estará em agonia até ao fim dos tempos. É preciso não dormir.”

Na Paixão de Jesus, estamos todos, pois os figurantes são exactamente os mesmos: Judas que não percebeu Jesus (esperava um messianismo de poder político) e o entregou; os sacerdotes do Templo, Herodes, Pilatos, que o condenaram à morte e morte de cruz; Pedro, o homem generoso, mas que, por cobardia, o negou; os discípulos que, apavorados, fugiram; os soldados que o torturaram, cumprindo ordens; o Cireneu que, embora um pouco forçado, o ajudou; os dois, talvez “terroristas”, que o ladearam na cruz: um continuou a blasfemar, o outro compreendeu e Jesus prometeu-lhe o Paraíso com ele naquele próprio dia; o centurião reconheceu:”Verdadeiramente este homem era Filho de Deus”; as mulheres nunca o abandonaram e ali estiveram em pé. E Jesus, que, no Getsémani sentiu pavor e pediu, em lágrimas e suando sangue, a Deus, seu Pai, que, se fosse possível, o libertasse daquele horror, talvez, transportando a cruz, o tenha assaltado a dúvida: valeu a pena?; morreu, perdoando a todos; sentindo-se abandonado e só, gritou aquela oração que ecoa através dos séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”, mas continuando a confiar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.

Contra o aviso de Pascal, não tínhamos estado atentos e adormecemos. E a Semana Santa estava quase exclusivamente centrada em rituais, em procissões gloriosas com esplendor, e em férias esbanjadoras. A cruz de Cristo foi (já não é?) frequentemente ultrajada em cruzes peitorais de ouro, prata, e pérolas preciosas embutidas. E tínhamos continuado a ser réus do Corpo e do Sangue do Senhor, porque enquanto uns comem lautamente e se embebedam outros morrem de fome, como acusou São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios...

Mas, de repente e sem contarmos, com esta pandemia que invade o mundo todo, fomos obrigados a acordar da letargia em que vivíamos e a parar. Como me escreveu, na Quinta-Feira Santa, um grande médico, cireneu lutador no Hospital de São João do Porto, enviando-me “um enorme abraço neste momento quase não-pensável, de um vazio enlouquecedor... e uma dor invisível quanto insuportável”, “há algo de simbólico, de quase premonitório neste tempo da PAIXÃO”. Por isso, eu digo que, com excepção da primeira, talvez nunca tenha havido uma Semana Santa tão verdadeira como a que estamos a viver. É preciso realmente não dormir, pois estamos convocados para reflectir a fundo sobre a primeira Semana Santa dramática, há 2000 anos, tirando todas as consequências dela, exigentes, certamente, mas ao mesmo tempo portadoras da esperança verdadeira para a vida autêntica neste mundo para o futuro da Humanidade, e abrindo para a transcendência da Vida plena em Deus, para lá de todos os horrores.

Por quem é que Jesus foi mandado matar e porquê? Ao contrário do que demasiadas vezes foi proclamado, ele não morreu porque Deus o tenha enviado para, pela sua morte, pagar uma dívida infinita da Humanidade a Deus e, assim, aplacar a Sua ira. Jesus não é vítima de Deus, mas vítima dos homens. Deus não precisa de vítimas. Jesus é mandado assassinar precisamente porque o Deus que ele anuncia não quer vítimas, e há demasiadas vítimas no mundo.

Jesus fez uma experiência avassaladora de Deus, o Mistério Sagrado, Pai-Mãe, Amor incondicional para com todos, a começar pelos mais frágeis e abandonados, as vítimas da injustiça e de sistemas opressores. Assim, como consequência, anunciou, por palavras e obras, o Reino de Deus, aquele Reino no qual não há opressão nem injustiça, Reino do amor, da justiça e da paz. Por isso, opôs-se à religião do Templo e à imagem do Deus em nome do qual os sacerdotes, os fariseus e os doutores da Lei oprimiam o povo. Jesus ergueu-se contra a Lei, mostrando que o mais importante é a pessoa na sua dignidade divina, todas as pessoas sem excepção, e curava doentes ao Sábado, dia absolutamente sagrado, comia com pecadores, prostitutas, publicanos... E proclamava: “Ide aprender: Deus não quer sacrifícios, mas justiça e misericórdia.” Evidentemente, a classe sacerdotal e os doutores da Lei viram os seus privilégios e interesses em perigo, ameaçados, e, por isso, condenaram-no.

A sua doutrina e as suas obras, embora ele nunca quisesse tomar o poder político — disse que tinha vindo para “servir, não para ser servido” —, colocavam igualmente em causa os interesses imperiais de Roma e, por isso, o representante do Império, Pôncio Pilatos, condenou-o à morte, mandando que fosse crucificado.

Jesus acabou por ser morto como blasfemo religioso e subversivo social e político, dando testemunho da Verdade e do Amor e proclamando que Deus não quer mais crucificados.

É isso: andávamos apressados, distraídos, adormecidos. É tempo de ir ao essencial. Neste drama, sempre presente, mas agora de forma brutal, paroxística, qual tem sido o nosso papel e que papel queremos desempenhar? A Igreja, concretamente, terá de recentrar-se, porque tem de saber que o centro não é de modo nenhum o poder, rituais imperiais, mitras e barretes cardinalícios, mas apenas o serviço a favor de todos. Muitos perguntam agora: Onde está Deus? Jesus respondeu que no Juízo Final não nos será perguntado pelo ritual, mas pelo amor, concretizado no que fizermos aos outros, nomeadamente aos desgraçados: “Tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de beber, estava nu (nu de vestido, de honra, de dignidade...) e vestiste-me, estava no hospital, na cadeia, e foste visitar-me”. Perguntaremos: “Quando te fizemos (ou não fizemos) isso, Senhor?”. “Sempre que o fizeste a um destes meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizeste”. Ele, ela, sou eu.

Onde está Deus hoje, no meio desta catástrofe? Está nos hospitais, nos lares, nas casas, nas empresas..., em todos os crucificados e naqueles e naquelas que, mesmo no meio de perigos e até correndo o risco de morte, procuram por todos os meios curar, dar alento, aliviar a dor, dar esperança, brincar com as crianças, animar e alegrar os outros com um telefonema, com música, consolar os tristes e mais idosos, pôr o país a funcionar minimamente... Esses são “os santos da porta ao lado”, como disse o Papa Francisco.

 

2. “E dando um grito forte, Jesus expirou”, diz o Evangelho.

A morte é sempre paradoxal: ela é biologicamente natural, faz parte da vida, mas, por outro lado, apresenta-se-nos como o maior enigma e mistério. Porquê? Porque o ser humano não se reduz a biologia. Por isso, na longa história da evolução (13.700 milhões de anos), sabemos que há pessoa humana, quando surgem a consciência da morte e rituais funerários. Aí, sabemos que já não estamos perante algo, mas alguém. E a morte angustia-nos, porque é o confronto com a ameaça do nada. “Para onde é que eu irei, quando cá já não estiver?”: pergunta lancinantemente Tolstoi em A morte de Ivan Ilitch. Como é que alguém se pode tornar ninguém, coisa que apodrece?

No presente pesadelo pandémico até a morte se torna ainda mais pesada. Na Quinta-Feira Santa, celebrei na minha terra o funeral de um irmão meu, falecido na Terça no hospital com cancro. Não poder haver uma despedida condigna, com tempo, porque até o ritual tem de ser distante, parco e apressado, não se poder chorar agarrado a alguém que também chora, não se poder abraçar, beijar, termos de parecer indiferentes uns aos outros, num vazio plúmbeo e silêncio de breu — isso pode ser, é mesmo, profundamente desolador. Para não falar daquela cena na Itália, que poderá repetir-se noutros lugares, arrasadora, de uma marcha lenta de camiões transportando, empilhados, os caixões de tantos mortos. Para onde se encaminhava a marcha? E volta, mais intensa, densa e dramática, para não dizer trágica, a pergunta: para onde vão os mortos?

Para a eternidade vamos: a eternidade do nada ou a eternidade do Deus criador e salvador.

É aqui, nesta perplexidade de abismo, que se trava o combate decisivo da fé e da esperança. Outra vez Pascal: “Incompreensível que Deus exista e incompreensível que não exista; que a alma seja com o corpo, que não tenhamos alma; que o mundo seja criado, que o não seja, etc.”. Mas continuamos a perguntar, sem fim, como Heinrich Heine: “E continuamos perguntando,/uma e outra vez,/até que um punhado de terra/nos cale a boca./Mas isto é uma resposta?”

E Jesus? Ele é o Crucificado, morreu na cruz. Mas, se ele fosse apenas o crucificado, não passaria de um homem bom que quis revolucionar a imagem de Deus e do Homem, mas não passaria de mais um crucificado e não haveria cristianismo. “Eu sou a Ressurreição e a Vida”: foi por causa desta proclamação que o cristianismo venceu, disse-me um dia o filósofo ateu, mas religioso, Ernst Bloch. E lembro E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, que, na sua obra A Figura Histórica de Jesus, quis dar uma visão convincente do conjunto da vida do Jesus real, portanto, apenas a partir da história, independentemente da fé. Conclui, como ficou dito, que é possível saber que o centro da mensagem de Jesus foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o Templo, que compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas também sabemos que, “depois da sua morte, seguidores fizeram a experiência do que descreveram como ‘ressurreição’: aquele que tinha morrido realmente apareceu como ‘pessoa viva, mas transformada’. Acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso.” Assim, criaram um movimento, que cresceu e se estendeu pelo mundo e mudou a História. Grande parte da Humanidade foi atingida por esse movimento e pela esperança que transporta de Vida eterna.

Por mim, faço minha a confissão de fé do teólogo Hans Küng, o teólogo considerado rebelde. Recentemente, uma irmã perguntou-lhe: “Acreditas realmente na vida depois da morte?” E ele: “Sim, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma confiança irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. Vita mutatur, non tollitur: a vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo”.

Permita-se-me, neste contexto, deixar aqui as palavras que pronunciei no funeral do meu irmão, diante do caixão aberto: “O meu irmão acreditou sempre em Deus, no Deus que é Amor, Pai-Mãe, como nos foi revelado por Jesus, na sua pessoa, por palavras e obras. O meu irmão entregou a sua vida ao anúncio do Evangelho, a mensagem boa e felicitante de Jesus, e fê-lo por palavras, obras e atitudes. O meu irmão não está aí morto. Nem sequer se pode propriamente dizer que partiu para Deus. Na morte, o meu irmão tomou consciência plena de que foi em Deus que sempre existiu e é, como foi anunciar São Paulo a Atenas: ‘É n’Ele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos’. Assim, o meu irmão nunca esteve tão vivo nem nunca foi tão feliz.” Como é ninguém sabe.

É esta “a Santa Esperança”, como lhe chamou Charles Péguy.

Boa Páscoa para todos!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 12 ABR 2020

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

UM ESTRANHO RETRATO EUROPEU…

 

É muito estranho o momento que vivemos. De um lado, temos uma pandemia descontrolada – é disso que verdadeiramente se trata, com situações muito diversas e uma evolução necessariamente assimétrica. De outro, a antevisão de uma crise económica de contornos inéditos. Há muitas comparações, mas não houve outra situação igual que possa ser comparável. Mesmo as maiores epidemias do passado não tiveram uma expressão global como esta – lembremo-nos da peste negra do século XIV ou da pneumónica um século atrás. Ambas foram devastadoras, mas nenhuma global, induzida pela rapidez de uma sociedade caracterizada pela extraordinária mobilidade. Acresce o facto desta pandemia ser enganadora, uma vez que se manifesta de modos muito diversos – ora sem sintomas, ora com manifestações moderadas, ora com uma expressão dramática e fatal. E o certo que a transmissão se faz por todos os portadores dos diferentes tipos de doença. O ciclo do vírus é inexorável. Um assintomático transmite a alguém que vai desenvolver a enfermidade na sua expressão mais mortífera. Trata-se de vírus traiçoeiro, que emigrou do meio animal para o meio humano e iniciou o ciclo de uma nova vida…  É esse ciclo que se procura minorar, através do confinamento e da distância social. Mas, como o vírus tem uma incubação relativamente lenta, não sabemos quando e onde se manifesta, nem quem são os seus portadores perigosos. Se é certo que nos deparamos com dezenas de especialistas, ou de sabichões, como diria um conhecido jornalista, a verdade é que apesar das mil explicações, estamos vulneráveis, sem saber se poderemos ser atingidos. E, afinal, apenas pedimos sinceramente que não se inventem mais explicações e teorias. Precisamos de prevenção, prudência, cuidado, coragem e esperança. O Papa Francisco, com especial oportunidade, não nos deu outras palavras senão esperança e coragem… O confinamento em tempos de peste obriga-nos a encontrar novos modo de relacionamento, de forma que não percamos as cadeias de solidariedade, mas que interrompamos a cadeia da doença. E vem à baila a atitude dos governantes europeus. Corremos o risco de ter os terríveis métodos de “todos ao molho e fé em deus” ou de “cada um por si”… E ambas as atitudes só anunciam o desastre. E sejamos ainda claros, desastre também haverá se começarmos a dar ouvidos aos profetas da desgraça à procura de bodes expiatórios…  A União Europeia é a nossa única tábua de salvação. A sua existência é uma questão de sobrevivência. Lembremo-nos de 2008. Sem o Banco Central Europeu tudo teria sido muito pior. E agora? Sejamos claros! A epidemia veio num momento em que as lições da última crise ainda não estavam inteiramente tiradas. E agora arriscamo-nos a continuar a assistir à repetição dos erros passados – primado da ilusão, incapacidade de fazer despesas de investimento reprodutivas! A mutualização da dívida, por si só, não é uma panaceia. E se hoje se fala de um novo Plano Marshall, percebamos que só poderemos ter investimento reprodutivo se tivermos planeamento estratégico. Volto ao meu tema de há quinze dias… O acordo de quinta-feira santa é um solução ainda tímida. Melhor que nada, é certo, mas falta muito caminho para andar. Há forças contraditórias e incoerentes. O caso dos Países Baixos é um sintoma, não é um caso isolado. Como sintomas são a rigidez de diversas naturezas da Áustria, da Finlândia, de um lado; da Hungria e da Polónia de outro… Tudo são sintomas de uma União necessária que se deixa arrastar pelo imediatismo, pelo curto prazo e pelo medo de descontentar os arautos do momento. Os melhores generais são os que são capazes de dar orientações, mesmo sabendo que haverá resistências. Urge assumir riscos, para podermos caminhar… Coragem e esperança exigem determinação, mesmo na dúvida… Haverá dúvidas e riscos. Disso não tenhamos dúvidas. Há duas batalhas contraditórias, a de salvar vidas e a de garantir a sobrevivência económica…

 

Agostinho de Morais