Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

EM REBUSCA DO JAPÃO III

 

  Perdi-me (?) um pouco por outros devaneios, e só agora regresso à descoberta do haiku, seguindo citações de escritos de Mutsuo Takahashi, retomando uma análise do desempenho do hokku enquanto ovo da independência do haiku como poema:

 

   Embora não fosse totalmente independente, o hokku continha dois elementos que lhe permitiam uma certa independência: o kireji (palavras cortantes) e o kigo (palavras sazonais). A inclusão de kireji diferencia formalmente o hokku dos outros versos. O kigo é o elemento vital que sustém, do interior, a independência do hokku. Gostaria de falar do kigo com mais vagar.

 

   Porque a forma de cinco-sete-cinco sílabas é a mais curta forma poética fixa imaginável, o hokku deve conter nele o elemento que lhe confira a sua própria vitalidade. Tal elemento pode achar-se a emergir na mudança de estações capturada no kigo. As flores desabrocham na primavera; os cucos cantam no verão; a lua é mais linda no outono; a neve cai e cobre o chão no inverno.

 

   No kigo, as flores que desabrocham na primavera, especialmente as de cerejeira, são escolhidas para representar a essência das florações; a lua outonal para representar a lua de todas as estações. Claro que há flores que podem abrir no verão e no outono; e também a lua brilha no inverno e na primavera. Assim, ao facultar a uma imagem a exemplificação de um importante aspeto das estações, o kigo pode ser visto como um leque de convenções em que concordam os poetas que escrevem renga e haiku.

 

   Os kigo são reunidos em saijiki (almanaques sazonais), onde são classificados por estações e ilustrados por haiku. Tais saijiki acabam assim por ser quer compilações do sentido japonês das estações, quer antologias de excelentes hokku e haiku. [Não sei porquê, tais almanaques, mutatis mutandis, lembram-me um tantinho os nossos Borda d´Água...]

 

   Ele mesmo poeta e compositor de haiku, Mutsuo Takahashi não deixa de realçar até que ponto saijiki haiku pertencem e partilham uma herança comum do povo japonês, visto que, hoje ainda, cerca de 10% da população escreve haiku e consulta saijiki. Lembra-me, a mim, o lugar da quadra, por exemplo e sobretudo, na poesia popular portuguesa. E surgem-me, nesta manhã tão chuvosa de Maio, imagens de manjericos de Santo António com as suas bandeirinhas de versos amáveis que, dentro de um mês, ou menos ainda, virão perfumar-nos os ares e as almas... Regra alguma, nem conceito, nem preconceito poderão tornar-nos mais belo, transparente ou acessível o som essencial dessas vozes todas que um simples amor, aquém e além de nós desperta. E só as traduzimos sentindo nos com elas, como criança cujo choro se afoga na ternura da voz amiga que lhe fala.

 

    Como adiante veremos, há, por esse mundo, alguns, raros, grandes poetas que procuram, como disse Paul Claudel, aplicar nas suas línguas, transformando-os conforme o seu próprio gosto, os princípios da poesia japonesa, animados pelas seguintes ideias: cada poema é muito curto, de uma frase apenas, aquilo que possa sustentar, em som, sentido, palavras, um hálito, um sopro, ou o bater de asa de um leque. Por isso terá Claudel chamado ao seu livro de poemas curtos - a que voltarei - Cent frases pour éventails... Mas por aí também anda muito pretensioso - e alguns bastantes poetas medíocres - a "explicar técnicas" do haiku e até a publicar livros, supostamente obedientes a essa forma japonesa, de composições suas próprias... Mas desses não rezará a história. Mas vamos então aos casos  bons e sérios, e volto a citar Mutsuo Takahashi:

 

   Poetas eminentes de muitos países do Ocidente, e não só, andaram a tentar escrever haiku na sua língua. Na maioria dos casos, tentam adaptar cinco-sete-cinco às sílabas nas suas próprias línguas, e utilizar uma palavra que exprima natureza. Tive certa vez a oportunidade de traduzir para japonês todos os dezassete haiku que Jorge Luís Borges compusera segundo a forma nipónica. (Borges escreveu dezassete haiku em cinco-sete-cinco, por outras palavras, dezassete poemas de dezassete sílabas!). Gostei de traduzir os seus haiku.

 

   Quais poderiam ser as possibilidades do haiku na futura literatura global, no movimento poético global? Gostaria de deixar aqui uma previsão. Devido à sua extrema brevidade, o haiku muitas vezes coloca o seu tema no plano da frente, escondendo atrás a primeira pessoa do singular do poeta. Em muitos casos tal tema é uma coisa concreta, e tais coisas frequentemente se exprimem por kigo. Consequentemente, pergunto-me de isso nos poderá dar ou não um palpite sobre como os humanos deverão habitar a terra no futuro.

 

   Aqui deixo a dica e a interrogação. Mas no texto de Em rebusca do Japão III, voltarei a Claudel e à união entre poesia e caligrafia...

  

Camilo Martins de Oliveira

CENTENÁRIO DE AQUILINO RIBEIRO COMO DRAMATURGO

 

Sabe-se que Aquilino Ribeiro (1885-1963) não se considerava propriamente dramaturgo, e manifestamente não é essa a subjacência direta da sua vasta obra. E isto porque, independentemente dos méritos indiscutíveis da sua obra romanesca, pode ser e é questionável a dinâmica potencial necessária ao teatro como texto/espetáculo.

Em qualquer caso, Aquilino deixou apenas duas peças, e a primeira delas cumpre este ano exatamente um século: referimo-nos a “Tombo no Inferno”, datada de 1920, e a “O Manto de Nossa Senhora” esta datada de 1962. Verifica-se pois, e aqui como tal se assinala, o centenário da criação dramatúrgica assumida pelo autor.


Ora, desde logo se saliente que esta escassez de peças e os mais de 40 anos decorridos entre uma e outra, independentemente de quaisquer considerações, documentam o menor interesse do autor pela expressão dramatúrgica no seu vasto e indiscutível talento literário: o teatro é texto mas, não faz mal insistir na obviedade, o teatro é texto/espetáculo...


E as reservas que se podem assinalar nesta escassa dramaturgia, e escassa sobretudo pela vastidão da obra literária do autor, decorre também mas não só de certo “desajuste”, digamos assim, do estilo literário aquiliniano, com as exigências de espetáculo que o teatro impõe.


Aliás, Taborda de Vasconcelos, num estudo sobre Aquilino, reconhecendo embora a potencialidade de espetáculo, considera expressamente ser “dispensável classificar” as duas peças como meras “narrativas em diálogo” pois reconhece os valores de espetáculo inerentes a ambas (in “Aquilino Ribeiro” Ed. Presença 1965 pág. 264).


Em qualquer caso, há que salientar esta escassez de textos dramatúrgicos, e associá-la ao próprio estilo da criatividade aquiliana, que não se concilia facilmente com a dinâmica do espetáculo teatral.


E no entanto, Luciana Stegagno Picchio, na clássica “História do Teatro Português” que tantas vezes temos referido, elogia Aquilino como analista de textos teatrais. Reconhece porém, e agora citamos, que “na vasta e torrencial obra literária, a atividade do dramaturgo é todavia episódica: na própria opinião do autor, as suas peças são umas férias para o espírito”... (Portugália Ed. 1969 pág. 328).


E mais se acrescenta agora que Luís Francisco Rebello refere uma adaptação por Luís Oliveira Guimarães do romance “O Arcanjo Negro” estreada em 1948 no Teatro da Trindade. (in “100 Anos do Teatro Português" Brasília Editora 1984 pág.117). São referências de indiscutível qualidade.


Em suma: com as reservas sobretudo da expressão e linguagem de espetáculo, reconhecemos e realçamos a verdadeira raiz e matriz deste teatro, a saber, “a humanidade rude, simples, aterrada e confusa nas suas relações com a natureza e o além, o natural e o sobrenatural fundidos numa mesma conceção telúrica e panteísta da vida”. E salientamos “as notas de cena, que precisamente servem para documentar o ambiente e reforçar a reprodução. Nisso é Aquilino notável”... (Duarte Ivo Cruz -  “História do Teatro Português,  Editorial Verbo 2001 pág. 284).


Assim nos parece na releitura das peças de Aquilino Ribeiro.

 

DUARTE IVO CRUZ 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


53. A VIDA É MACROSCÓPICA

Macroscópico é sinónimo de megascópico. 
E antónimo de microscópico.
A visão do mundo microscópico é fazível com microscópios. 
A visão do mundo macroscópico é feita a olho nu ou por telescópios.
O microscópio amplia imagens de coisas muito diminutas ou reduzidas. 
O megascópio projeta sobre a tela a imagem aumentada do objeto.
O telescópio amplia imagens de objetos situados a grandes distâncias no universo.
A visão humana comporta a microscópica e a macroscópica.
Os corpos visualizados a olho nu integram a visão macroscópica.
O olhómetro é o seu instrumento de medição natural.
Esta visão física e material das coisas adapta-se a outras valências da vida humana.
Em filosofia uma visão macroscópica refere-se a uma conceção ampla ou abrangente.
O mesmo sucede quando se tem uma mundividência macroscópica da vida.
O planeta em que vivemos é diminuto, a brevidade da vida humana um bem escasso.
O melhor remédio é uma perceção larga da vida e do seu lugar no universo.
Trabalho, família, afeição, amor, amizade, esforço, espírito de sacrifício, são parte dessa visão macroscópica, como a alimentação, saúde, habitação, mas não chegam. 
Há também os interesses ou prazeres exteriores ou interligados ao labor diário, que não exigem prontas decisões, não absorvendo as faculdades exaustas por um dia de trabalho.
A incapacidade de ter interesse por tudo aquilo que não tenha uma importância prática na vida, causa um gosto de não viver. 
O insistir obsessivo no êxito de competição, no sentimento de triunfo em que só é devido respeito ao vencedor, no êxito pelo êxito, no dinheiro pelo dinheiro, no consumir impulsivo, tem um preço se exclusivo ou excessivo, pode causar aborrecimento e tédio, se incapaz de utilizar de modo construtivo e inteligente os momentos de lazer.
A vida é curta e não nos permite ter acesso e interesse por tudo, mas é fundamental que haja sempre interesses, essenciais e subsidiários, adequados e proporcionais, para a preencher, e quanto menos à mercê do destino melhor, dado que, perdendo-se um, o ideal é o recurso imediato a outro. 
Mesmo que se compare o cérebro humano a um computador, que se vai degradando com o tempo até não funcionar, em paralelo com a curva descendente da existência de cada um até à morte, esse mesmo cérebro, à medida que se aproxima do fim, afeiçoa-se e aprecia cada vez mais, tantas vezes, a beleza do mundo e as coisas belas da vida, como a música de Bach, de Wagner ou de Chopin, uma pintura, uma leitura, ou o silêncio.
Porque a vida é mais abrangente e larga que o microscópio. 
É macroscópica.

 

29.05.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

UM ESPAÇO DE DIÁLOGO

 

Comecei a frequentar o Centro Nacional de Cultura nos anos 1967-68, quando estava nos primeiros anos da Faculdade de Letras de Lisboa. O CNC complementava os lugares onde era possível, para quem fazia parte da contestação estudantil ao regime, ouvir falar de temas proibidos, discuti-los, expor de forma mais ou menos livre aquilo que fazia parte da vida política e cultural da época, trazido pelas revistas a que se tinha acesso («Esprit», «Temps modernes», «Tel Quel»), pelo cinema novo francês (Truffaut, Resnais e sobretudo Godard), numa época em que a França, isto é, Paris ainda era o centro do mundo.

No CNC era possível ouvir falar de forma quase sempre desassombrada, e isto apesar da vizinhança da PIDE na mesma rua António Maria Cardoso, das teorias de vanguarda, da pintura, dos filmes que acabavam de estrear, das situações que na altura dominavam as conversas, de que a guerra do Vietnam ocupava a maior preocupação; também se falava da Igreja, na sua vertente progressista; mas o que fazia parte igualmente das sessões era a literatura que começava a fugir a um cânone neo-realista a chegar ao seu esgotamento, e a abertura para novas formas de escrever e pensar a criação portuguesa na poesia e no romance, tal como na teoria, tendo Eduardo Prado Coelho dado a conhecer essa nova visão que se polarizava no estruturalismo em conferências que ali fez.

Muitas vezes, terminadas as sessões, as conversas prosseguiam na sequência dos assuntos que nos levavam ao CNC: e ali se falava da situação universitária, já então dominada pelo ressurgir da contestação que tinha como exemplo o que se passara nos USA, em Berkeley, a partir das doutrinas de Marcuse, e do que teve lugar em 1968 com a ocupação da Sorbonne. Tudo isto fazia parte desse contexto que influenciou a geração de que eu fazia parte, e que nos levou a envolver-nos nas eleições de 1969, as primeiras do consulado marcelista em que, no início, se criou uma ilusão de abertura logo desmentida pelos factos. Foi aí que conhecemos melhor António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, tendo sido o João Bénard que convidou alguns desses jovens que andavam entre a contestação estudantil e a militância na Comissão Democrática Eleitoral (que ia do PC para a esquerda) e na CEUD (monárquica e socialista), a integrar a redacção de «O Tempo e o Modo», revista que, na sua primeira fase, se podia considerar a expressão ideológica de muitos dos membros do CNC, que iam dos monárquicos aos católicos progressistas. António Alçada talvez desconfiasse dessa abertura promovida por João Bénard e lembro-me da que terá sido uma das primeiras reuniões, passada a fase pós-eleitoral que pusera fim à esperança de uma verdadeira renovação do regime por parte do sucessor de Salazar, em que Alçada pôs o lugar à disposição, tendo passado a direcção da revista para João Bénard. Fui um dos que entrei; e nesse primeiro momento da revista ainda coincidiram Jaime Gama, Alfredo Barroso, José Luís Nunes, do lado à direita do PC, com Amadeu Lopes Sabino, Arnaldo Matos, Luís Matoso, Sebastião Lima Rego, do lado à sua esquerda; rapidamente os radicais tomaram o

poder, o João Bénard cansou-se e afastou-se, a Helena Vaz da Silva, que era uma presença luminosa no meio das discussões inflamadas que muitas vezes tinham lugar, seguiu o mesmo caminho e, a partir da nova fórmula tipográfica, o caminho seguido foi o do corte com os «moderados» que viriam a formar o PS. Julgo que estes conflitos também se reflectiram no ambiente vivido no CNC onde as ideias mais radicais tiveram expressão nos debates que ali se promoviam, embora nunca tenham tomado o poder, como sucedeu na revista.

Estudar a história do CNC, em conclusão, é acompanhar a vida politica e cultural durante a Ditadura no pós-guerra, com todos os conflitos e entendimentos que a percorreram, mas tendo em conta que nunca a moderação e o espírito de diálogo, em que a Cultura tinha sempre o primeiro lugar, deram lugar aos excessos que, já no fim da Ditadura mas sobretudo no pós-25 de abril, dominaram a cena portuguesa.

 

Nuno Júdice

LUIS CERNUDA (II)

 

Considero que un poema va más allá de la literatura y se extiende a la experiencia vital del poeta, en la voz interior.

El poeta es un hombre ansioso de eternidad, y la poesía salva de la muerte:

Ya no podré decirte cuánto llevo luchando para que mi palabra no se muera silenciosa conmigo…

(extrato de uma entrevista a Luis Cernuda)

No seu esforço de depuração, Cernuda abandona a rima e evita o que chamou de linguagem pomposa, procurando um tom mais coloquial e permanecendo sempre constante ao seu único e sagrado desejo: a poesia.

José Bento alerta-nos que sempre Cernuda quis permanecer para lá de tudo o que constituiu a sua vida e talvez por aí também possamos chegar ao seu iluminado poema A un poeta futuro.


E continua a sua entrevista da qual só temos alguns rascunhos:

Por un lado, sentía que debía apoyarme en los poetas y lectores del futuro pues no me sentía comprendido por mis colegas contemporáneos. Lo expreso ya en el primer verso:

“No conozco a los hombres”. Considero que la gente está deshumanizada, con ese ocio atareado, esa prisa errante.


E ouso no meu postal para ti:

Se eu não souber Luis Cernuda, como dominei o medo, e a vida tiver sido o que quase fui, certa de que aprendi algo por que envelheça, e mesmo que as palavras muito se me desmaiem, nelas, habituei-me a crer – por te interrogar - que posso por elas ser espelho, se aguço a minha consciência num enxame de lembranças já sem mim e eu futuro: eu, sem pressa, ou não tivesse amado muitas verdades: eu, que as chamei teimosamente. Tua.


O entendimento e a compreensão para Cernuda surgem na procura de ele se entender na hora da escrita. Julgo mesmo que se sentiu sempre condenado a saber que a sua possibilidade de vencer seria através da sobrevivência da sua obra, já que para ele o poeta é como ave-fénix, renascendo a cada leitura que lhe façam de seus versos. Digo.


E assim no poema

 

A Um Poeta Futuro

 

Eu não conheço os homens. Há já anos

Que os procuro e lhes fujo, em vão.

Não os entendo? Ou entendo-os porventura,

Demasiado?

(…) Não compreendo os rios.

(…) A fonte, que é promessa, somente o mar a cumpre

(…) Não compreendo os homens. Mas algo em mim responde

Que te compreenderia, como compreendo

Os animais, as folhas e as pedras

(…) não me preocupa ser desconhecido

Quero só o meu braço sobre outro braço amigo

(…) pressinto neste humano afastamento

Quanto meus hão-de ser os homens do futuro

(…) Escuta-me e compreende (…) meus sonhos e desejos

Terão razão por fim

 

Por tudo o que deste Poeta tenho lido, nunca lhe notei uma estratégia vaidosa para imaginar futuros de glória. Antes o sinto a procurar um leitor que o entenda na consciência das palavras que escreve, e que saiba um dia esse leitor, ordenar a poesia através de uma nova medida, aquela que leva o poema para lá da literatura.

 

E numa folha da entrevista a Luis Cernuda, entrevista na qual se confessa só e em profundo desalento, ainda encontro estas palavras:

 

Siento que en esta etapa madura he aceptado el sufrimiento y me he dado cuenta de que siempre, a pesar de todo, hay que celebrar el mundo.

Além, Luis, além, onde os lilases dormem.

 

Teresa Bracinha Vieira

CARÍCIAS DE DEUS

 

1. Hoje celebra-se, na liturgia católica, a festa da Ascensão de Jesus ao Céu. Evidentemente, quando se fala em ascensão, não se está a fazer descrições geográficas; trata-se tão-só de tentar expressar simbolicamente que Jesus entrou na plenitude da Vida que é Deus.

 

Antes da despedida, prometeu aos discípulos o Espírito Santo, o Espírito de Deus, que é Amor, aquela luz e força que ilumina, vivifica, dá ânimo, consolação, confiança, coragem. E disse-lhes, segundo os Actos dos Apóstolos, de São Lucas: “Sereis minhas testemunhas  em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo.” Desapareceu da sua vista e “como estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: “Porque estais assim a olhar para o céu?” E observou-lhes que agora a sua missão era partir, para cumprir a missão que Jesus lhes entregara.

 

Esta é a missão da Igreja. Sim, olhar para o Céu, anunciar o sentido da vida, o Sentido último da existência humana, que não caminha para o nada, mas para a plenitude da Vida em Deus. A missão da Igreja, essencial, é ser a multinacional do sentido de todos os sentidos, do Sentido último. Ao mesmo tempo, e por isso mesmo, não pode ficar parada a olhar para o Céu. Não pode abandonar o mundo, a Terra, criação de Deus. É aqui que vivemos e a missão da Igreja é continuar o projecto de Jesus, concretizá-lo, aqui, porque queremos, como é desígnio de Jesus, viver num mundo que é de todos e que deve ser para todos, na justiça, na igualdade radical, na dignidade livre e na liberdade digna, num mundo onde todos possam viver em paz e realizar a sua dignidade humana e divina.

 

A missão da Igreja tem esta dupla vertente: olhar, na Terra, para o Céu. A igreja de Marco de Canavezes, de Siza Vieira, di-lo como só um artista o sabe dizer. Tem uma porta com 10 metros de altura e, quando se sai da celebração, ela abre-se e continuamos com os pés assentes na Terra, mas, diante de nós, abre-se o Céu.

 

2. Durante muito tempo, impôs-se uma espiritualidade de fuga do mundo, desprezo e abandono do mundo, esquecendo que ele é, repito, criação de Deus e é nele que é preciso encontrar Deus, uns com os outros. Mas também é preciso transformar o mundo. Porque o mundo, no Evangelho, aparece num duplo sentido: por um lado, no sentido positivo, ele é criação de Deus; por outro, no sentido negativo, ele pode ser lugar da tentação, pode ser sujo. Por isso, há o contraponto entre cosmos, que significa, em grego, belo (donde vem cosmética?), e caos, o seu contrário: a desordem; e mundo (limpo, belo, universo), que tem o seu oposto em i-mundo. Não é necessário limpar o mundo, também o mundo humano, das suas imundícies? A vida humana e, consequentemente, a vida cristã também, são e estão, portanto, continuamente em tensão.

 

Também a Igreja enquanto organização necessita de limpeza. Morreu, em Tóquio, na passada Quinta-Feira, dia 20 de Maio, o Padre Adolfo Nicolás, antigo superior-geral dos jesuítas. Num texto emocionado,  José M. Castillo, revela como no seu último encontro, em Roma, poucos dias antes de se saber da renúncia ao papado de Bento XVI, quando se estavam a despedir, ele lhe disse algo que o marcou profundamente: “Reza, reza muito pela Igreja. Porque para pior do que está agora não creio que possa cair”. E aí está Francisco a dar uma viragem à Igreja, apesar de todas as resistências. E o problema são mesmo as resistências. Numa entrevista recente, o conhecido vaticanista Marco Politi, afirmou: “Não são uma minoria. 30% do clero, dos bispos e dos leigos mais comprometidos no mundo estão contra Francisco. Há uma parte da Igreja que não está de acordo com Francisco e que está já a tratar de influenciar o próximo conclave. Nunca houve tantos ataques contra um Papa.”

 

Com a presente pandemia, tomámos consciência de muitas realidades de que andávamos muito afastados. Uma delas é que precisamos de atender à natureza, aos ecossistemas, à biodiversidade, à “ecologia integral” de que fala Francisco, precisamos de viver com mais moderação, e a Igreja, concretamente, uma vez que tem de dar o exemplo, não pode continuar no luxo ou a utilizar símbolos, mesmo na liturgia, que não são senão sinais de poder e ostentação. Impõe-se viver com simplicidade, segundo o estilo de Jesus. Nesse sentido e para dar um exemplo apenas, a irmã Mercedes Loring, de 95 anos, religiosa da Assunção, sugeriu: “Seria possível pedir ao Papa que acabe com as mitras dos bispos, inúteis, e que dão a impressão de ‘alta categoria’? Fico mal humorada, quando vejo uma cerimónia religiosa, sobretudo a Eucaristia, e o bispo com mitra. Ou quando vejo um grupo de bispos, todos com as suas mitras! Não consigo imaginar Jesus com essas pretensões.”

 

Já depois de este pedido se ter tornado viral, a irmã Mercedes Loring, que dedicou a sua vida à promoção dos pobres, voltou à carga, em diálogo com José Manuel Vidal, director de Religión Digital: “As mitras episcopais sempre me pareceram ridículas. Agora, com o confinamento, participei em muitas Missas pela internet, algumas presididas por bispos, todos eles com a mitra. E o antigo mal-estar voltou. Aquele tira e põe da mitra parece-me ridículo.” Acrescentou: “Se pudesse realizar o sonho de ver o Papa, dir-lhe-ia que acabasse com a mitra para ele e também para os bispos.”

 

É claro que Francisco não vai satisfazer o pedido da irmã Mercedes, pois não pode arranjar mais um problema, ele que já tem tantos. Há pouco tempo, encontrou o Padre Ángel, um exemplo notabilíssimo de cuidador atento e eficiente dos mais pobres e frágeis. O Papa perguntou-lhe: “Como estás, Ángel?” Resposta: “Vou indo, com os meus problemas.” “E tu?” Francisco: “Os meus problemas? Nem te falo...”.

 

De qualquer forma, fica aí o eco do pedido da irmã Mercedes, com 95 anos. Para exemplo, um extracto de um poema do célebre bispo-poeta Pedro Casaldáliga, também ele nonagenário (92 anos): “A tua MITRA será um chapéu de palha sertanejo./ O teu BÁCULO será a verdade do Evangelho/ e a confiança do teu povo em ti./ O teu ANEL será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador/ e a fidelidade ao povo desta terra./ Não terás outro ESCUDO/ para lá da Esperança/ e da liberdade dos filhos de Deus.”

 

3. Há muito pouco tempo, telefonei ao bispo de Bragança-Miranda, José Cordeiro. Para lhe manifestar a minha total simpatia. Porque vi no JN uma reportagem da jornalista Glória Lopes sobre ele, vestido normalmente e, como se impõe, com a máscara, a distribuir nas ruas alimentos e remédios a quem necessita. Leva também, e talvez seja por vezes o mais importante e necessário, palavras de conforto, “uma carícia de Deus”, como ele diz, neste tempo de pandemia, quando as pessoas se sentem mais sós e tristes. Fá-lo duas vezes por semana, indo ao encontro não só de pessoas mais velhas, mas também de migrantes e alunos estrangeiros do Instituto Politécnico de Bragança. “Eu senti o dever de acompanhar o trabalho da Cáritas Diocesana como um sinal em toda a Diocese, pois não posso acompanhar todas as instituições. Esta crise sanitária transformou-se rapidamente numa crise económica e social”, sublinhando que “não se trata de caridadezinha, mas de um amor em saída (aqui, lembro que Francisco não se cansa de repetir que quer “uma Igreja em saída”), para sermos solidários e de ir para o terreno “para estar junto das pessoas e dizer-lhes que não podemos ter medo”.

 

Estou convencido de que o bispo de Bragança não é caso único. Mas é um excelente exemplo da Igreja em saída, que olha para o Céu, com os pés assentes na Terra, distribuindo “carícias de Deus”. Para que se concretize um mundo melhor.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 MAI 2020

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

A MAGIA DA PAISAGEM 

Ontem, preparava-me eu para ir celebrar os 98 anos do meu querido amigo Gonçalo Ribeiro Telles, como exatamente fiz, quando um brincalhão se lembrou de me recordar o que um dia aconteceu com Mark Twain. Deram-no como morto e ele reagiu dizendo que a notícia era algo exagerada. Por segundos pairou no ar a notícia absurda de que o Gonçalo tinha partido. Notícia sem pés nem cabeça, diria ele ao fim da manhã com os seus botões lançando uma gargalhada sonora. “Ainda vão ter de me aturar um pouco mais”. E nós seus amigos fomos beber uma jeropiga para celebrar a anedota. Mas essa anedota tem muito que se lhe diga, uma vez que esse brincalhão que joga com a vida das pessoas faz parte de uma gente que todos os dias nos procura enganar com notícias bem mais singelas repetidas interminavelmente para que acreditemos nelas… É muito fácil. Uma mentira repetida mil vezes parece tornar-se verdade. Puro engano, porém. Uma mentira repetida um ror de vezes será sempre mentira e só pode convencer-nos de que o combate pela verdade é uma tarefa necessária e bem difícil. Uma meia-verdade é uma mentira. Uma pós-verdade, mentira é. Mas todos os dias procuram induzir-nos no contrário. E o melhor exemplo é o nosso querido Gonçalo, que nos seus escritos e nas suas lições continua a ensinar-nos que as paisagens que nos querem roubar, a natureza de que nos querem privar, os corredores verdes que querem destruir só podem continuar a ser verdade, se houver combatentes persistentes como o nosso imortal herói. Foi ele que nos ensinou muito a sério que «o homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante; ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza. Toda a atividade humana tem como pode fim a satisfação das suas necessidades, quer espirituais, quer materiais. (…) A paisagem terá de ser considerada como um todo orgânico e biológico em que cada elemento é interdependente, influenciando e sofrendo da presença dos restantes participantes. A reciprocidade é a lei fundamental da natureza». Estas são palavras de 1956, mas poderiam ser escritas hoje. Centrando-se na pessoa, na sua dignidade e no seu sentido comunitário, Gonçalo Ribeiro Telles apela a uma natureza equilibrada, na qual a lembrança e o desejo, a memória e a criação se encontrem. Reconstruam-se os jardins, retomem-se os quintais. E a ideia de reciprocidade representa a importância de uma relação diferenciada, com influências cruzadas de interdependência e complementaridade. Sim, o que esse inventor de mentiras de meia-tigela nos ensinou ontem foi que só a verdade persistente, invencível, determinada, incómoda, à prova de bala, como água mole em pedra dura é que vale verdadeiramente a pena. O camponês do Ribatejo de botas enterradas na terra sabe bem que a enxada ou que a tesoura do jardineiro podem muito mais do que meia dúzia de piratas do mar da tinta. Por isso o nosso Gonçalo riu a bom rir ontem, mas com ar sério lembrou que ao longo da sua vida houve muitos que o quiseram ver pelas costas. Um velho amigo nosso deu-se, assim, a procurar uma pista para descobrir esse caçador de patos amador que mais uma vez se queria ver livre do nosso persistente arquiteto das paisagens, jardineiro de paraísos. Mas bastou usarmos uma corneta de caçador, para ele vir lampeiro até à armadilha. E não foi difícil encontrar a pista certa – era um pato bravo qualquer. Ele há muitos por aí, e a verdade é que este foi fácil de encontrar. Mascarado de inofensivo patos bravo da natureza é um verdadeiro pantomineiro das paisagens. Foi, de facto, um pato bravo qualquer que inventou a atoarda. Mentira torpe, mesquinha, era daquelas que se denunciam facilmente. Por isso, pela tardinha, satisfeitos todos por termos o aniversariante das noventa e oito primaveras connosco, pudemos brindar com um verdadeiro hip hip hip hurrah! Continuamos com o combatente connosco. Mas esses patos bravos de feira que tanto mal nos fazem a tentar convencer-nos de que não vale a pena continuar a combater pela paisagem, são caçadores traiçoeiros que só visam os verdadeiramente vivos, as pessoas de carne e osso com a têmpera do nosso herói -  persistente, invencível, determinado, incómodo, à prova de bala, como água mole em pedra dura. Está descoberto o sevandija, pobre pescador de águas turvas, zé-ninguém de maus fígados, belzebu vicentino… E o Gonçalo aqui está!

Agostinho de Morais  

A VIDA DOS LIVROS

 

De 25 a 31 de maio de 2020

 

“A Torre da Barbela” (1964) de Ruben A. (Livros do Brasil, 2020) é uma obra-prima de imaginação, de mestria romanesca e de excelente domínio da língua.

 

 

 

UM NOVO SISTEMA SENTIMENTAL
“Dos quarenta aos cinquenta, limpa-se a casa. Põem-se telhas onde faltam, instala-se um novo sistema sentimental, e no jardim das delícias, no passeio depois do jantar, nas madrugadas sem Deus, ouvimos uma voz que nos buzina que dali para a frente a contagem é outra”. Ruben A., cujos cem anos do nascimento agora celebramos, teve a extraordinária lucidez de escrever as suas extraordinárias memórias no momento que permitiu que usufruíssemos delas como um dos melhores exemplos da nossa literatura memorialística. O Mundo à Minha Procura (1964-68) é uma obra extraordinária, na qual encontramos uma grande personagem, multifacetada, complexa, em que o fino humor se liga ao retrato fiel do tempo, de uma geração e de uma cultura, vistas por alguém que tinha a atenção desperta para o mundo e era conhecedor como poucos, desde as raízes à atualidade, da Arte de ser português. E não esqueço, graças à amizade antiga e sólida do Nicolau, seu filho, os momentos que tenho passado no convívio da memória fascinante de Ruben. Não se entende, por exemplo, a nossa cultura sem a leitura da Barbela. E o certo é que esses momentos não têm sido apenas os da leitura e releitura de uma obra fantástica, mas também os de visita aos lugares marcados pelo percurso de vida de alguém que muito bem conhecia Portugal – desde Entre Douro e Minho, do Porto, do Campo Alegre, até ao Alentejo, passando em Lisboa pela Praça do Príncipe Real, onde veio ao mundo, e pelo Monte Olivete… As excursões e passeios mirabolantes com programas surrealistas foram marca sua… Os percursos de Orlando Ribeiro e Torga apaixonavam-no. No entanto, estes tempos, estranhos de confinamento, adiaram (apenas adiaram) o encontro que tínhamos marcado para a Fundação Gulbenkian, com a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, cuidadosamente preparado com Miguel Tamen e António Feijó e pelo Nicolau, naturalmente. Não poderemos, contudo, deixar de fazer dessa celebração a justa invocação de quem tanto merece que tertuliemos longamente sobre um espírito tão versátil e rico, cujas pistas que nos deixou têm de ser seguidas e aprofundadas.

 

DO CONVÍVIO À EXTROVERSÃO
“Era um homem que se ocultava no convívio e na extroversão” – disse António Quadros, quando falou dele depois da morte inesperada e absurda. “Tinha uma imparável fúria criadora. Não sabia estar parado… quase existia heteronimicamente, como o Pessoa. Havia o Ruben historiador, escrevendo livros sérios, … Havia o Ruben public-relations, literato da Embaixada do Brasil… Havia o Ruben-minhoto, apaixonado por Carreço, Afife e pela Ribeira Lima. Havia o Ruben-colecionador de cacos-velhos e frequentador de Antiquários. Havia o Ruben surrealista e louco, escrevendo livros como as Páginas”. Era isso e muito mais…E Alexandre O’Neill disse, melhor que alguém: “Ao coro de rãs, respondeu Ruben A., com algumas arreliantes dissonâncias, enfim, com o que nele era vivo pressentimento de que uma obra se faz a contrapeso do gosto mediano…” De facto, muitos não compreenderão o que escreve e o sentido da procura. Em Inglaterra no King’s College, Charles Boxer elogia-o pelas capacidades pedagógicas, pelo trabalho realizado e por ser “a vida e a alma do Departamento”. Ruben demonstra conhecimento e entusiasmo, ao falar de Fernão Lopes, de D. Pedro V, da Geração de Setenta e de Fernando Pessoa ou ao encenar o Mar de Miguel Torga. Mas, na escrita, procura novos caminhos, seguindo os passos de Garrett, que nas “Viagens” escreveu como falava, dando à língua o tom vivo do que realmente se comunica. Não lhe interessava copiar “coisas arcaicas do passado numa língua que já ninguém fala”… Mas há quem não entenda, a começar pelo próprio Salazar, que considera intoleráveis as liberdades de Páginas II (1950)O triste episódio é bem conhecido e nada abona para quem o suscitou. João Gaspar Simões ou António Quadros, ao contrário, entenderam bem que era Ruben que estava na razão…

 

LIVRO INSUPERÁVEL
O romancista continua a seguir a via original de uma criatividade inconformista. Sobre Caranguejo (1954) dirá Eduardo Lourenço: “não foi nada senão bicho insólito, entrando às arrecuas e aos pinos na policiada praia lusitana que o reenviou de novo para o mar resplandecente de onde tivera a insolência de querer sair para contemplar o Sol e as estrelas”. E Maria Lúcia Lepecki não tinha dúvidas em considerar o romance como o maior… A Torre da Barbela (1964) é, no entanto, insuperável na obra do autor. E se ele amou tanto Portugal, a verdade é que, por isso mesmo, não deixou de fazer a severa crítica das limitações, invejas, mediocridades, provincianismos, como forma de as podermos superar. Jacinto do Prado Coelho fala de uma “cura de inverosimilhança”, de um retrato do aforro às tradições, da ronceirice, da tacanhez e de ridículas prosápias… E Liberto Cruz tem razão quando alerta para não se confundir o significado com o significante: o leitor “precisa sobretudo de deter-se na seriedade deste romance, atentar na ironia que o envolve, no humor que o reveste, no tom doloroso de dezenas de páginas, na amargura de tantos episódios que provocam gargalhadas salutares, na frescura sadia, na alegria de viver, que exala a cada momento” (Ruben A. – Uma Biografia, Estampa, 2012). Como salientou António Tabucchi é essencial reconhecer a vertente picaresca na cultura portuguesa, além do lírico e do trágico… Bocage, Beckford, Afonso Henriques e D. João V pontuam um enredo pleno de estranhas personagens que são muito mais do que figurantes à volta dos amores entre o Cavaleiro e Madeleine. Só, porém, alguém profundamente conhecedor de Portugal poderia escrever um romance assim, onde os anacronismos são tratados com o cuidado de darem o tom onírico, numa fusão entre tradição e modernidade, num caleidoscópio sempre variado, como assinalou José Blanc de Portugal. E é o homem crente da modernidade, que se apaixona desde cedo pela figura de D. Pedro V. Não, não é o romântico que Ruben Andresen Leitão descobre nas suas deambulações históricas, logo no final de 40. “É este Rei o primeiro homem moderno no nosso País; é ele que nos seus escritos proclama insistentemente o que a geração de 70 vai tentar realizar. É, se me perdoam a expressão, o primeiro grito histórico no século XIX, depois daqueles anos desmantelados de liberalismo duvidoso. A História não pode idealizar figuras quando elas têm valor para transcender o ambiente literário – perde-se a lenda e fica o homem na mais pura conceção de atuação vivida” (D. Pedro V – Um Homem e um Rei, 1950). É significativa a epígrafe que Ruben tira do pensamento do malogrado rei: “Escrevemos para um povo dormente a quem convém despertar; para cegos (dos da pior espécie que são os que não querem ver) a quem cumpre restituir a luz; para obstinados cuja relutância devemos vencer”… Eis o programa de vida, em que o escritor sempre acreditou. Mas Ruben A. era uma personagem. Eduardo Lourenço contou que, na véspera de defender a tese em Coimbra, convidou-o a ir ao Astória, onde o encontrou “fazendo a sua toilette como Luís XVI” – deixando a ideia de uma espécie de encarnação de Fradique Mendes. “Foi divertidíssimo. Não sei se se inventará uma personagem de romance tão singular como foi Ruben A.”… E Sophia escreveu: “Carta a Ruben A. / Que tenhas morrido é ainda notícia / Desencontrada e longínqua e não a entendo bem / Quando – pela última vez – bateste à porta de casa e te sentaste à mesa / Trazias contigo como sempre alvoroço e início / Tudo se passou em planos e projetos / E ninguém poderia pensar em despedida…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença 

EM REBUSCA DO JAPÃO II

 

  Retomo - tal como prometera em carta à Princesa de mim - o fio da meada que nos tem levado a percorrer caminhos e atalhos da cultura japonesa, ou daquilo que, tantas vezes (!), nos possa parecer, e talvez seja, reflexo simétrico do nosso próprio pensarsentir, será também sempre um adquirido. Posto que, na verdade, há momentos da vida em que nos surpreendemos estranhos, "bárbaros" à míngua de outras aprendizagens...

 

   Volto ao esclarecedor texto de Mutsuo Takahashi, isto é, ao iniciar de uma análise da estética e da poética do haiku, neologismo inventado, em finais do século XIX, por Masaoka Shiki (1867-1902), esse poeta que, entre muitos outros, nos deixou estes versos tão primaveris:

  

          ergue-se no ar uma cotovia
          respiro a bruma
          caminho sobre nuvens

 

   Traduzo agora este terceto, só para nos chamar a atenção para que qualquer surto poético não tem de (nem que) ser explicado. Basta respirá-lo, sobretudo quando, como na poesia japonesa, tal respiração nos traz, pelo toque fugidio da evanescência, a contemplação da permanência essencial das coisas. Aliás, para além de qualquer forma métrica, sintática ou rítmica, ou de rimas e sonoridades, a poesia vive sempre nas formas idiomáticas em que foi composta - e que são muito dificilmente traduzíveis - nas quais, afinal, iremos procurar encontrar o tal "não sei o quê e quase nada" que a torna universalmente nossa íntima. Aliviando esta conversa, pergunto como se pode traduzir, do português para japonês (por exemplo), esta quadra de Luís Vaz de Camões, enviada a D. António, senhor de Cascais, que tendo-lhe prometido seis galinhas recheadas, por uma copla que lhe fizera, lhe mandou por princípio da paga meia galinha recheada:

  

          Cinco galinhas e meia
          deve o senhor de Cascais;
          e a meia vinha cheia
          de apetite pera as mais.

 

   Pormenorizadamente explicadinha, talvez a quadra ache graça em ouvidos estrangeiros, e até poderá acordar algum sabor a pilhéria... Mas faltar-lhe-á a espontaneidade do riso, a surpresa imediata de um entendimento espontâneo. No tocante a literatura japonesa, creio que será talvez maior a distância para chegarmos ao seu alcance, não só pela nossa própria estranheza à cultura que a informa, como por ser bem real - e pude pessoalmente verificá-lo em inúmeros encontros e reuniões - que a comunicação entre japoneses acontece, como dizem os antropólogos, em alto contexto.

 

   Kotaro Takamura (1883-1956), escultor e poeta surgido no tempo e ação de aproximação da cultura japonesa à ocidental, familiarizado com a obra de Rodin, Cézanne, Verlaine e Baudelaire, que divulgou e traduziu no Japão, é o autor de um poema em verso livre, intitulado Ore no Shi, cuja versão francesa (Mes Vers)  por Jeanne Sigée (Anthologie de poésie japonaise contemporaine. Paris, Gallimard, 1986) aqui verto para português. Fala melhor do que eu:

 

          Os meus versos não procedem da poesia ocidental
          Dois círculos se traçam mutuamente uma tangente mas
          No termo não se sobrepõem idealmente.
         Sendo eu apaixonado pelo mundo poético ocidental contudo
         Os meus versos próprios não podem negar que assentam noutras fundações.
         O céu de Atenas, a subterrânea nascente do cristianismo
         Geraram língua e pensamento da poesia ocidental.
         Tal mundo entrou-me no íntimo infinitamente belo infinitamente forte contudo
         Essa fisiologia de trigo de manteiga e de entrecosto
         Mantém à distância as necessidades do meu japonês.
         Os meus versos emergem das minhas vísceras, das minhas entranhas.
         Nascido no fim do Extremo Oriente, com arroz criado
         Com a minha alma alimentada de fermento de saké, de soja, de carne de peixe
         Com reminiscências do antigo Gândara todavia pregadas ao corpo
         A minha alma que se alumia mais da cultura amarela do imenso continente
         Que se purifica mergulhada na corrente sussurrante dos clássicos japoneses
         Ei-la repentinamente embasbacada pela energia atómica.
         Os meus versos não têm mais recurso para além do meu corpo,
         O meu próprio corpo é, sem dúvida, o de um escultor do Extremo Oriente.
         A meu ver, embora o universo tenha os anais das estruturas
         São os versos que lhes recitam o contraponto.
         A poesia ocidental é uma vizinha muito querida contudo
         Cumpre-se numa órbita diferente.

 

   Quanto mais me familiarizo com tanta poesia vinda de mundos, línguas e culturas distintas das minhas, tanto melhor entendo como nem tudo se desvenda, ou sequer abre, por conceitos: a proximidade, como, por maioria de razão, o aconchego, vai-se alcançando por escuta presente, silenciosa e humilde. Talvez por isso, quem traduz poderá sempre encontrar novas expressões da descoberta de um encontro, quiçá porque, como árvore, em si também vai crescendo a emoção qualquer que o feriu primeiro. A poesia comove-nos, move-nos com ela.

 

   Procurando outra imagem, vislumbro a minha mão em busca de outra, até que com suas costas se aflorem, como dois círculos se traçam mutuamente uma tangente, na bela expressão de Kotaro Takamura.

  

Camilo Martins de Oliveira

TEATROS E CINEMAS NOS 50 ANOS DA MORTE DE CASSIANO BRANCO

 

Assinalamos hoje o cinquentenário da morte do arquiteto Cassiano Branco (1897-1970) no que concerne a sua criatividade técnica e artística respeitante a salas de espetáculo.

 Há cerca de 5 anos, tivemos aliás ensejo de referir aqui o então chamado Cine-Teatro Império, projetado por Cassiano com intervenções arquitetónicas de Frederico George e Raul Chorão Ramalho, inaugurado em 1952 com o filme de René Clair intitulado “La Beauté du Diable”.

E assinalámos na altura a atuação do também então chamado Teatro Moderno de Lisboa, iniciativa de Carmen Dolores, Rogério Paulo, Armando Cortez e Fernando Gusmão, o qual, entre 1961 e 1965, muito contribuiu para uma modernização cultural do espetáculo e da cultura inerente.

 Aí se destacou aliás a estreia da peça “O Render dos Heróis” de José Cardoso Pires, depois retirada de cena pela censura. Trata-se da evocação histórica da chamada Maria da Fonte realçando os aspetos e compromissos de movimento popular, que neste aspeto histórico assume a veracidade.

E é oportuno então realçar que as indicações e notas de cena conciliam-se com a interpretação histórico-ideológica, mas ao mesmo tempo não afetam de modo alguma a expressão teatral. Cardoso pires tinha efetivamente uma significativa vocação dramática/dramatúrgica, isto é, de técnica de cena e de espetáculo.

E vale a pena então reproduzir o que aqui escrevemos há cinco anos a propósito deste espetáculo.

Pois efetivamente a peça «representa a revolta popular da Maria da Fonte, destacando-se a recriação épica da força do povo no movimento político e a adequação de psicologias e condutas independentemente das motivações. (cfr. “Teatro em Portugal” 2012). Levá-la à cena constitui um dos “verdadeiros atos de resistência” à censura, como diz Luís Francisco Rebello... (in “Breve História do Teatro Português”, 2000; cfr. também Maria Regina Rodrigues “A Situação do Teatro Português na Década de 1960”; Tito Lívio e Carmen Dolores “Teatro Moderno de Lisboa”, 2009.

E assim é!

 

DUARTE IVO CRUZ

Pág. 1/4