Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A porta abre-se para a direita, os violinos entram pela esquerda e a madura silhueta de uma mulher recorta-se contra a luz do deserto. A mulher, passos hesitantes, dançados, vai da porta para a varanda tosca, a câmara atrás dela. O contra-campo revela-lhe a beleza ansiosa de anos de sacrifício e renúncia. Põe a mão sobre os olhos para decifrar o vulto de cavalo e cavaleiro que o horizonte empurra em direcção à casa. Atrás dela surge a indiferença interrogativa de um marido e ouve-se a primeira palavra: “Ethan?” A resposta sufoca na garganta da mulher. Uma rubra comoção acorre-lhe às faces, à respiração que, mais do que o vento, agita a gola da blusa, o avental.
Em 40 segundos, contra-luz e contra-campo, a porta que se abre, três actores, um só hipotético nome e a vibração de um violino, John Ford conta, a quem tenha olhos para ver, uma história de amor proibido.
O filme, que uma porta abre e outra porta fecha, é “The Searchers”. Sendo o mais belo dos mais belos dos filmes de Ford, é o mais falso western que já vi. Os cavalos, os índios, até a épica passagem das estações, o cíclico galope de destruição e vingança, mal disfarçam o vendaval de amor proibido, que assombra as personagens, todo o filme.
Disse-se que o sombrio cavaleiro é um Ulisses e “The Searchers” a Odisseia do homérico Ford. Mas o cão que da varanda ladra ao fantomático Ethan (John Wayne) não é Argos. E muito menos é Penélope esta mulher que, farta de esperar, casou e teve filhos. Nem os braços do irmão se abrem a Ethan com o afecto de Eumeu ou Telémaco.
Esqueçamos Homero, pensemos em Sófocles. Longe de Ítaca, no Texas de 1868, Ethan não regressou para descansar de prodigiosas aventuras. É a morte, a morte cansada, que chega a cavalo. O que depois sucede, a via crucis de ataques, incêndios, violações, escalpes, é a emanação do conflito que dilacera Ethan, o arrasador reflexo do raivoso desejo dele pela mulher do irmão. E pode também ser a coisa larvar que na mulher foi o incumprido amor ao marido por tanto lhe amar o irmão.
Os olhos maus de Ethan são piores do que os olhos cegos de Édipo e a boca dele beija duas vezes a mulher que não pode amar. Beija-a, púdico, na fronte, mas são beijos que rasgam como bacantes. E vemos a mulher, sozinha no quarto, acariciar o capote dele, num plano que vai buscar a luz a uma janela de Vermeer. É um capote militar, de devastação e crime, que os dedos clandestinos dela afagam na final e inconsumada despedida.
Filme que com João Bénard vi pela primeira vez, último filme que vi sentado ao lado do Cintra, gostava de dizer aos dois que “The Searchers” não é um western, nem um épico. Pura tragédia grega, cavalgada de ressentimento, vingança e morte, só a porta que se fecha lhe consegue pôr fim.
“MRAR – Movimento de Renovação da Arte Religiosa – Os Anos de Ouro da Arquitetura Religiosa em Portugal no Século XX” de João Alves da Cunha (Universidade Católica Editora, 2015), põe-nos perante um movimento que contribuiu decisivamente para a necessidade de pôr a Arte Religiosa ao ritmo do nosso tempo. Publicamos esta nota em homenagem ao Arquiteto João de Almeida (1927-2020), que nos deixou há dias.
UM MOVIMENTO NECESSÁRIO O arquiteto João de Almeida afirma, no prefácio do livro, que na sua génese a iniciativa foi designada propositadamente como movimento, em nome de uma dinâmica que era necessário pôr em prática. “O Movimento surgiu na sequência duma exposição organizada por um grupo de jovens arquitetos, artistas e estudantes, muitos destes ligados à Juventude Universitária Católica. Teve lugar em Lisboa em 1953, na Igreja de S. Nicolau, e seguidamente no Porto. Foi uma exposição didática e documental, fotográfica, em que mostrávamos o que era então a prática da arte e da arquitetura sacra na Europa Central em contraste com o que por cá se fazia”. Se o Cardeal Cerejeira tinha apoiado conceção e a realização da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa (1938), do arquiteto Pardal Monteiro, com a participação de artistas modernos como Almada Negreiros, o certo é que houve depois um claro retrocesso nessa tendência que os jovens puseram em causa. Ainda segundo o aludido prefácio: “Para a realização da exposição (de 1953) contribuiu em larga medida o material” recolhido por João de Almeida “na Alemanha, em França e sobretudo na Suíça, onde durante mais de dois anos estagiara com Hermann Baur, consagrado profissional na área da arquitetura sacra”. O jovem arquiteto, que tinha formação teológica, viveu em Trier, onde estabeleceu contacto com o Instituto Litúrgico Alemão, então “na vanguarda da renovação das práticas rituais do catolicismo”. Por outro lado, conheceu bem a experiência dos padres dominicanos que dirigiam em Paris a prestigiada revista L’Art Sacré, “na vanguarda e na defesa intransigente duma modernidade sem cedências a estéticas passadistas”. A essa tendência deveu-se o projeto da célebre Igreja de Ronchamp de Le Corbusier e a encomenda da fachada da Igreja de Assy de Fernand Léger. Os autores da Exposição, com apoio da Igreja oficial, em especial do assistente da JUC, Padre Dr. António dos Reis Rodrigues, constituíram em 1952 o MRAR, Movimento de Renovação da Arte Religiosa, desde o início dirigido por Nuno Teotónio Pereira e “agregando numerosos membros e simpatizantes de diverso âmbito profissional: arquitetos, artistas, teólogos, museólogos, escritores (Vitorino Nemésio, inesquecível…)”.
A IDEIA DE RENOVAÇÃO Para os fundadores, a designação de «movimento» exprimia o desígnio de “preparar e estruturar a mudança, criando as bases para uma renovação coerente e bem fundamentada da arquitetura e da arte sacras”. O método usado era o de uma criatividade partilhada, refletida e discutida, “sem que a criatividade e as características de cada um fosse prejudicada. (…) Se alguma coisa distinguiu o MRAR ao longo da sua existência, foi a recusa de vedetismos e a partilha das ideias e das soluções”. E assim o movimento deixou como herança o Secretariado das Novas Igrejas do Patriarcado de Lisboa, desde o início dirigido por Diogo Lino Pimentel. Constituíram o MRAR arquitetos recém-licenciados pela Escola de Belas Artes de Lisboa, mas também artistas plásticos e historiadores como Nuno Portas, Erich Corsépius, Luíz Cunha, António Freitas Leal, Manuel Cargaleiro, José Escada, Flórido de Vasconcelos, Madalena Cabral e Maria José de Mendonça, além dos referidos João de Almeida, Nuno Teotónio Pereira e Diogo Lino Pimentel. Outras exposições se seguiram, como as de Arte Sacra Moderna, ou de Paramentaria Moderna. Também foi criado um Boletim, publicado entre 1957 e 1967, e no estrangeiro houve repercussões do movimento português. Em 1964, a Fundação Calouste Gulbenkian, organizou a exposição “Novas Igrejas na Alemanha”, na Sociedade Nacional de Belas Artes, que tornou possível ao público português contactar com algumas das obras de referência que mais diretamente influenciaram e inspiraram as novas igrejas propostas pelos membros do MRAR. Infelizmente, a obra feita ficou aquém do que se esperaria quer por resistências culturais, quer por dificuldades económicas.
BELOS EXEMPLOS Podemos referir os belos exemplos da Igreja de Santo António de Moscavide (1956, por João de Almeida e António Freitas Leal, com obras de Lagoa Henriques, José Escada e Manuel Cargaleiro), da Igreja Paroquial de Águas (1957, por Nuno Teotónio Pereira, com intervenção de Frederico George e obras de António Lino, António Luís Paiva e Euclides Vaz), da capela do Picote (1958, por Manuel Nunes de Almeida, com escultura de Barata Feyo) e da Igreja da Sagrada Família de Paço d’Arcos (1969, por João de Almeida). A obra maior do MRAR é a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa (1970, por Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas), fruto de um concurso e debate público com resultados claramente positivos. O Concílio Vaticano II veio confirmar os objetivos e a dinâmica do MRAR, mas o impacto renovador do movimento foi-se reduzindo. No dizer de João Alves da Cunha: “Num tempo de forte secularização, o MRAR afirmou em Portugal um programa artístico, pastoral e circunstancialmente político que se constituiu como o melhor exemplo de intervenção religiosa e cultural de uma elite que operou uma efetiva renovação dos edifícios religiosos, bem como uma valorização das dimensões sociológica e antropológica dos espaços litúrgicos”. Infelizmente, o debate, o compromisso estético e teológico, bem como o método de diálogo e de partilha na arte e arquitetura religiosas preconizado pelo MRAR ao longo de cerca de duas décadas não tem tido continuidade nas novas gerações. Diogo Lino Pimentel tem razão ao dizer que “neste nosso tempo (passados mais de 50 anos) o ambiente tornou-se indigente, por um lado, e luxuosamente corrosivo, por outro. No meio persiste alguma anemia e tanto basta para justificar o insistente apelo do Papa Bento XVI em Lisboa ao convocar um encontro com a cultura e os artistas. (…) A cultura da ostentação e do espetacular não é certamente compatível com a igreja pobre e servidora..”.
... como numa pautademúsicaem quecada acção seinscrevenuma linha diferente... diz-nos Paul Claudel ao descrever como imagina a cenografia do seu balé L’Homme et son désir, onde no degrau mais alto desfilariam, todas negras e toucadas de ouro, as Horas da noite. Logo abaixo, a Lua, guiada através do céu por uma nuvem, aia precedendo uma grande dama.E mesmo em baixo, nas águas do velho pântano primitivo, o Reflexo da Lua e da sua Aia seguem a marcha regular desse par celeste. O drama propriamente dito passa-se sobre a plataforma mediana entre o céu e a água... (La Danse, 1921).
Este guião de uma coreografiaem friso animado - conta Michel Wasserman (D´Or et de Neige: Paul Claudel et le Japon, Gallimard, Paris, 2018) - informou igualmente a partição de Milhaud, que repartiu os seus executantes em quatro quartetos (três instrumentais e um vocal mas sem palavras articuladas) que, distribuídos por três níveis, serviam de estojo da ação, mas conservando sempre cada um deles a sua individualidade musical relativamente aos outros grupos: «No terceiro piso, de um lado, um quarteto vocal, do outro, o oboé, a trombeta, a harpa, o contrabaixo. No segundo piso, de cada lado, os instrumentos de percussão. No primeiro piso, de um lado, as flautas e clarinetes, do outro, um quarteto de cordas. Quis manter uma total independência melódica, tonal e rítmica para cada um desses grupos» (Darius Milhaud, Notes sans musique, Julliard, Paris, 1949). Ao que parece, o compositor Darius Milhaud pretenderia sublinhar o cariz encantatório e obsessivo da obra, evocando os invisíveis habitantes da selva brasileira, «esses milhares de bichinhos que, logo após o pôr do sol, como que impelidos por invisível toque, animavam a floresta com variadíssimos ruídos, cuja intensidade rapidamente atingia o paroxismo»... E o poeta embaixador percebia tal intenção, ambos tinham partilhado ao mesmo tempo uma certa comunhão com a cultura brasileira, durante a sua estadia nesse país. Por isso se entende a recusa de Claudel retirar a partitura de Milhaud da versão japonesa de L’Homme et son désir, optando então por escrever outro, novo, guião para o balé: La Femme et son ombre. Só este será levado à cena nipónica, mas como ambos os textos já tinham sido vertidos para japonês, neste idioma também foram publicados. Valerá a pena traduzir aqui a narrativa das circunstâncias e razões da realização de La Femme et son ombre, tal como conta o nosso Wasserman. É longa a citação, mas inclui, porém, palavras do próprio Claudel sobre a sua ideia dessa obra e sua encenação:
Yamanouchi fora contactado através duma das vedetas do kabuki de então, o jovem Nakamura Fukusuke V, que fundara um grupo de investigadores para reexame do repertório clássico de danças de kabuki e constituição de novo acervo. Seguindo o modelo que propunham, no Ocidente, as companhias de Diaghilev e de Maré, Fukusuke rodeara-se de dramaturgos, músicos e artistas plásticos estranhos ao mundo codificado do kabuki, e foi assim que o compositor pressentido para a adaptação de L´Homme et son désir, Yamada Kosaku, criara em 1914, com a Orquestra Filarmónica de Tokyo, os primeiros concertos sinfónicos regulares, e fundara em 1920 uma associação de arte lírica em que dirigira em estreia a audição japonesa de extratos do Tannhäuser e do Enfant Prodigue de Debussy. Assim que Claudel foi posto ao corrente, por Yamanouchi da proposta que lhe era feita, disse logo que não poderia de modo algum aceitar renunciar à música de Milhaud e que como, por outro lado, o palco do Teatro Imperial, prioritariamente concebido para o kabuki, com cena desmesuradamente aberta, mas de baixa altura, tornava impossível a reprodução da cenografia vertical original, propôs escrever um argumento completamente novo, adaptado às condições da cena japonesa. Os seus interlocutores responderam-lhe então que nada lhes agradaria mais, pelo que Claudel meteu mãos à obra e, em menos duma semana, isto é, em Setembro de 1922 entrega o seu manuscrito a Yamanouchi, para tradução, especificando que desejava que a ação japonesa fosse interpretada do modo mais vernáculo possível, começando por uma achega musical tradicional...
... A ação de La Femme et son Ombre situa-se «na fronteira entre dois mundos». O fantasma da mulher morta aparece ao amante, que assim é unido nesse lugar «selvagem e solitário» pela nova concubina. Esta, para provar que os receios por ele manifestados não têm sentido, pois que a ilusão cria ilusões, projeta na parede de nevoeiro os ramos de pessegueiro e as borboletas que as palavras dela evocam. Todavia, quando ela toca alaúde, ou "shamisen", e quando canta, a música e o canto continuam mesmo depois dela se ter calado. Enquanto a sombra da morta reaparece, a mulher viva surge diante dela. Como a Sombra imita os gestos da mulher, o homem corta com um golpe de sabre o invisível laço que as une. A mulher cai. O homem dá um golpe de sabre na direção da Sombra. Ao retirar a arma, vê que está coberta de sangue. A mulher morre.
Este enredo justifica que, proximamente, venha falar do teatro Nô. Por agora, contudo, volto aos relatos da metamorfose de L’Homme et son désir em La Femme et son Ombre... chamando desde já a atenção para o facto de, no primeiro título, désir aparecer iniciado por minúscula, enquanto que Ombre surge com maiúscula no segundo, talvez por se tratar de uma personagem da peça, tal como Femme. Diz Claudel, no seu diário (16/02/1923), que escutou a música de La Femme et son Ombre em casa do compositor Kineya Sakichi IV: Música cheia de animação e poesia. E Michel Wasserman conta-nos que o mesmo compositor japonês retomara a Milhaud a ideia de distribuição por grupos instrumentais (o mundo dos mortos, o dos vivos, o guerreiro, a lua e a água, na partitura, são cada um deles, dotados de um clima musical e de uma instrumentação específica, partilhando, à vez, o papel principal e o de acompanhamento) vindo assim a prever um enorme efetivo: cinquenta e oito músicos tradicionais, entre os quais cinco flautas (shakuhachi), sete traversos (fue), uns vinte shamisens ( vários dos quais, do tamanho de violoncelos e destinados a almofadar o registo dos baixos, foram fabricados especialmentesegundo instruções desse grande renovador da fatura instrumental), um violoncelo de origem chinesa (kokyu), muitas percussões de madeira e metálicas e três cantores. Como o Teatro Imperial dispunha de um fosso para orquestra, aí se dispõe o conjunto, coisa inaudita no kabuki, em que o efetivo instrumental e vocal das cenas dançadas está sempre à vista, em degraus por detrás dos atores. Mas Claudel precisa, no seu guião, que «o fundo da cena é feito de um vasto painel de papel que representa o nevoeiro... ...sobre ele surgindo uma vaga sombra que se vai tornando progressivamente mais precisa, até se fazer a sombra de uma mulher»...
As representações realizaram-se, no Teatro Imperial de Tokyo. de 26 a 31 de março de 1923, ano em que se viria a dar o grande terramoto de Kanto.
No artigo anterior, referimos os 150 anos da publicação da “História do Teatro Português” de Teófilo Braga, numa evocação do livro, datado exatamente de 1870.
Aí se refere designadamente a sua sistemática abordagem da evolução global da literatura dramática portuguesa, sem pôr em causa nem os estudos que o antecederam nem a globalidade da obra do autor.
Será aliás oportuno referir que o tema – “História do Teatro Português” e história do teatro em Portugal - mereceu ao longo deste período, uma convergência de pesquisas e análises que, de certo modo, a “História” de Teófilo, independentemente dos méritos maiores ou menores, amplamente justifica, na linha da vasta obra de estudos literários do autor. E é de salientar o mérito iniciático de muitos desses estudos.
Em qualquer caso porém, e sem pôr obviamente em causa os méritos da individualidade e da vida e obra do autor, há que reconhecer a menor relevância de Teófilo como dramaturgo, numa fase em que a História da nossa dramaturgia alcançava um relevo de qualidade assinalável.
E no entanto, Teófilo dedicou ao teatro-dramaturgia uma considerável criatividade, em diversos textos dramáticos, que incluem até o libreto de uma ópera iniciática de Rui Coelho – “O Serão da Infanta”, cantada no Teatro de São Carlos em 1915.
Precisamente, no que respeita a esta ópera, vale a pena citar o que a propósito da colaboração regista João de Freitas Branco na sua “História da Música Portuguesa”.
Escrevendo sobre Rui Coelho, atribui ao compositor “um portuguesismo de outra época, de arrogo patriótico: auto sugestão de uma mentalidade que se mira como expoente musical do «génio da raça» ideia que considera expressamente «tão cara a um Teófilo Braga»”...
E mais diz que “ao longo da sua extensa obra, Rui Coelho tem tentado superar influências estrangeiras de forma a produzir música iniludivelmente portuguesa e da sua marca. (...) Por certo conseguiu, porquanto a sua música não pode confundir-se com qualquer outra. O mais nítido paralelo é porventura o cinema português”, assim mesmo!
E acrescentamos nós agora um comentário sobre a dramaturgia de Teófilo Braga, desde já referindo que não se trata, na nossa opinião, de uma obra que, no seu conjunto, se destaque na longa e interessante bibliografia de Teófilo.
Citamos então um conjunto das suas peças, hoje na verdade esquecidas: “Poeta por Desgraça”, “Um Auto por Desafronta”, “O Lobo da Madragoa”, “Gomes Freire” e o libreto da ópera de Rui Coelho “O Serão da Infanta”.
E terminamos remetendo novamente para a “História do Teatro Português” de Teófilo que, repita-se, descrevemos no artigo anterior, a propósito dos 150 anos da sua publicação.
Pois tanto vale, e tanto interessa retomar a leitura desse livro de Teófilo Braga!
Há valores essenciais que permanecem sempre os mesmos. Sejam éticos, morais, consuetudinários ou jurídicos, permanecem semelhantes no decorrer dos séculos. São exemplos o não matar, não roubar, não agredir, não violar, não causar sofrimento. Consoante a época e o seu contexto, assumem hierarquias diferentes, significados sociais variáveis e novas prioridades. Desde o teocentrismo ao antropocentrismo, do século das luzes aos tempos hedonistas e utilitaristas, incluindo a era atual, dominada pela felicidade e pelos direitos subjetivos, tais valores subsistiram continuamente, fazendo parte do sistema e sendo aceites como politicamente e socialmente corretos. Mesmo que as normas vigentes sejam minimais, plebiscitadas e não sacrificiais, e não maximalistas e sacralizadas, estamos longe de um hipotético grau zero de valores e de uma total libertação da teoria da culpa. Houve e há sempre um núcleo estável e seguro de valores geralmente aceites, a que podemos adicionar a honestidade, a proibição da crueldade e da violência em geral. São parte integrante da nossa vida em segurança, da seguridade na nossa vida. Integrando o sistema como maioritariamente aceites, não há alternativa. Ganhou o sistema, o politicamente e socialmente correto nas nossas vidas. Menos na arte. Porque a arte é um espaço onde tudo é possível em liberdade. Nela podemos colocar o melhor e o pior de nós. É a arte pela arte em liberdade pela liberdade. Mesmo quando não se ganha ao sistema, ao status quo, ganha-se em espaço de liberdade, de criatividade, inventividade e no ir mais além. Mesmo se impactante e chocante, isso não significa que quem a quer usufruir não a racionalize e interprete com sentido crítico, sabendo distinguir entre a ficção e a realidade, entre a fantasia ou ilusão do onde tudo vale e é possível e o tido como correto e em segurança no dia a dia das nossas vidas.
Os limites da linguagem são os limites do mundo de cada um?
A linguagem não se exprime para lá dos constrangimentos do intelecto.
A linguagem e o seu domínio constituem uma vivência dentro do mundo de cada um, e o conhecimento que dele se acolhe, comunica-se numa linguagem-sinal de afinidade ao que vamos interpretando.
Mas haverá uma linguagem somente resultado da compreensão que se faz nossa, ou, existe uma relação perante o que cada um, mesmo sem consciencializar os limites da sua experiência, sensibiliza?
O desafio dos limites da linguagem, nos vários tipos de linguagem, constitui parte integrante da hermenêutica ou fundo de uma teoria da interpretação, da semiótica, enquanto estudo do significado da linguagem, e da filosofia da linguagem, na busca pela natureza do significado.
O desafio que se refere, é muito autêntico, se pensarmos que existem linguagens mais “cercadas” pela realidade que visam: refiro-me à linguagem da oração; à linguagem do amor; à linguagem do destino histórico; à linguagem do desespero, da sobrevivência, todas implicando uma gramática da razão incorporada de vocabulários precisos.
De pensarmos também no quanto as línguas que hoje falamos, são línguas algo barulhentas, e muitas vezes assombradas pela impossibilidade de se acreditarem em linguagem, ou não fossem prenhes de dúvidas que, acabam por gerar o seu próprio provisório em qualquer comunicação.
Expõe-se então, não raro, um silêncio.
Um silêncio como única opção, um silêncio que faz falhar no futuro, as próprias palavras, na possibilidade de dizerem que afinal estão disponíveis para nós.
Contudo, também é pertinente afirmar-se que a linguagem da ausência pode querer significar que foi grande o nosso fracasso às palavras, e que o limite nos pertence.
E quem na pós-humanidade tem capacidade de reparação da linguagem?
Quem?, recebeu a herança e nela incorporou o seu legado, aquele mesmo que acarreta uma tarefa dificílima:
ler a vida por entre as palavras todas e com elas voltarmos como aprendizes a uma pegada útil.
A Universidade de Viena investigou a relação da religiosidade com a pandemia. Os resultados mostraram que as pessoas mais religiosas utilizam estratégias mais activas para dominar a crise. Enquanto as pessoas menos religiosas tendem a reprimi-la ou a negá-la, as mais religiosas procuram apoio social e lidam com ela de modo mais forte, mais optimista e com mais serenidade.
São dados significativos. Não houve, creio, nenhum estudo sobre o outro lado, mas estou convencido de que dele resultaria que muitos, esmagados pela pandemia, pelo sofrimento, se perguntaram: Onde está Deus?
A História é um autêntico calvário. Hegel referiu-se-lhe como um Schlachtbank: um açougue, um matadouro. E lá está o famoso dilema de Epicuro: Deus tem de ser todo-poderoso e infinitamente bom. Ou Deus pôde evitar o mal e não quis, e não é bom; ou quis e não pôde, e não é omnipotente. Ou quis e pôde; então, donde vem o mal?
Mesmo teólogos de renome sentiram-se atenazados pelo dilema, de tal modo que alguns, como J. Moltmann, falaram de um Deus impotente, que sofre connosco; outros, como R. Guardini, chegaram a exclamar que “pediriam contas” a Deus pelo sofrimento dos inocentes, Karl Rahner disse que, “num tribunal humano, não sairia absolvido”, Karl Barth afirmou que, no Jardim das Oliveiras, quando Jesus rezava, suando sangue, Deus “se portou como Judas”, e Urs von Balthasar disse que “se deve falar de uma descarga de ira de Deus sobre aquele que lutava no Jardim das Oliveiras.” Nestas posições, a pergunta ergue-se talvez ainda mais veemente: acreditar como e para quê num Deus irado ou impotente?
A Filosofia e a Teologia ficarão historicamente devedoras ao filósofo-teólogo Andrés Torres Queiruga por ter desfeito o preconceito em que assenta o dilema (ver a sua obra marcante: Repensar o mal). De facto, como escreveu, “enquanto permanecer o preconceito de que Deus poderia acabar com todo o mal do mundo, se quisesse, ninguém pode crer na bondade de Deus, sem se ver obrigado a negar o seu poder; ninguém acreditaria na bondade de um cientista insigne que, podendo acabar hoje com os estragos do coronavírus, não quisesse fazê-lo, por altos e ocultos que fossem os seus motivos.”
O crente, nomeadamente o crente cristão, acredita no Deus Pai-Mãe, infinitamente poderoso e bondade infinita, que ama os seus filhos e filhas e só quer o seu maior bem. Donde vem o mal? Do mundo, que é finito e no qual há inevitavelmente mal. Não é possível um mundo finito, em evolução, perfeito e sem mal, porque isso é uma contradição; como se não pode reivindicar a autonomia criatural da liberdade humana finita e a perfeição. “Afirmar hoje que Deus não é bom ou omnipotente, porque não cria um mundo perfeito, é o mesmo que argumentar que não o é, porque não quer criar círculos-quadrados ou não pode fazer ferros-de-madeira.” A primeira coisa que é, portanto, preciso clarificar é que o mundo produz mal, o finito não pode ser perfeito, tem falhas, carências, nele haverá choques, becos sem saída...
Desfeito o equívoco de um mundo finito perfeito e sem mal, avança-se para uma ponerologia (do grego, ponerós, mau): tratar do mal, antes de qualquer referência a Deus. De facto, o mal atinge a todos, crentes e não crentes, todos sofrem ao nascer, todos passam pela dor, todos morrem. E devemos todos estar unidos solidariamente na defesa da vida e na procura do real alívio do sofrimento de todos. A pergunta, agora, é outra: se o mal é inevitável, porque é que Deus criou o mundo? “Não posso responder ao ateu que diz que o mundo é absurdo, que não vale a pena. Eu não sou pessimista: creio que vale a pena e que há um referendo na Humanidade: todos, no fundo, sabemos que vale a pena. Por isso, continuamos a trazer filhos ao mundo.”
Aqui, começa a pisteodiceia (de pistis e dikê, justificação da fé). Há diferentes pisteodiceias, pois todos, ateus, agnósticos, crentes, têm de enfrentar-se com o mal e cada um tem, dentro de uma cosmovisão, a sua resposta para o problema, a sua fé. O crente religioso crê e pensa que é razoável crer em Deus e até pode perguntar, com o famoso teólogo Hans Küng: “O ateísmo explica melhor o mundo? A sua grandeza e a sua miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite no sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!” E crê que Deus não teria criado o mundo, se não fosse possível libertar-nos do mal. O que se passa é que o que não é possível num dado momento pode sê-lo mais tarde. A mãe sabe matemática, mas não pode ensinar matemática ao seu bebé enquanto bebé; fá-lo-á mais tarde. Alguém pode conceber-se a aparecer já adulto no mundo? A realidade é processual, e o crente em Deus como Amor e Anti-mal espera a salvação definitiva e plena para lá da morte.
Aqui, ergue-se outra objecção: depois da morte, não continuamos finitos? Os crentes confiam em Deus e podem mostrar, com razões, que a salvação eterna não é contraditória, pelo contrário. Sim, a pessoa é finita, mas com uma abertura infinita. Este é o mistério do Homem. Nunca estamos acabados, nenhum ser humano morre definitivamente feito. Não há nada finito que possa preencher a abertura humana, não há nada finito que possa realizar a nossa capacidade de conhecer e amar. Esta é a possibilidade que se abre ao crente a partir da fé: já para lá dos limites do espaço e do tempo, Deus mesmo entrega-se-nos nesta abertura infinita e finalmente seremos nós com Ele e nEle.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 20 JUN 2020
Esta pandemia trouxe-nos um novo tipo de pessoas que invadem o espaço público, a que poderemos chamar de “especialistas”. Que fazem esses temíveis palradores? Invadem-nos a casa, através dos meios de comunicação, em especial a televisão, e dão-nos explicações e palpites, sobre tudo o possível e imaginário. Julgam saber de tudo, desde as origens fisiológicas das transformações operadas pelo dramático Covid-19 até aos efeitos psicológicos do confinamento. Têm sempre algo a dizer-nos. São fisiologistas, psicólogos, candidatos a psiquiatras, biólogos, educadores, cientistas – tudo. Fazem-me lembrar o simpático Gaston Lagaffe, aqui representado (que quando chegou a Portugal, no início dos anos sessenta, se chamava Zacarias, e pontificava com as suas desventuras). Também ele era especialista de tudo, mas tudo em que se metia dava desastre… Em qualquer posto de comunicação ouvimos esses especialistas que peroram sobre as máscaras, sobre as viseiras, sobre os perdigotos, sobre os desabafos intestinais, sobre as estatísticas, sobre os ventiladores, sobre os medicamentos, sobre morcegos e ratos, sobre vacinas e testes serológicos, sobre a peste negra e bubónica ou sobre a gripe espanhola, vulgo pneumónica… Eu sei lá? No entanto, tirei-me de cuidados e conversei com um cientista sério e a sério. E que me disse ele? Que ninguém sabe nada, verdadeiramente. Até a respeitada revista “Lancet” teve de reconhecer a dificuldade em dizer algo de relevante, dando o dito por não dito. Talvez daqui a algum tempo possa haver alguma coisa de relevante. Mas para já, apenas podemos proteger-nos. Prevenir é a única palavra de ordem. É que o vírus não é um bicho. Não é um ser vivo. Em latim, vírus significa veneno ou toxina. É um agente infeccioso com 20-300 nanómetros de diâmetro, apesar de existirem vírus ɡiɡantes de (0.6–1.5 µm), sendo constituído por uma ou várias moléculas de acido nucleico. Disse esse meu amigo e eu anotei religiosamente (mas mal percebi) que os ácidos nucleicos dos vírus apresentam-se geralmente revestidos por um envoltório proteico formado por uma ou várias proteínas, que pode ainda ser revestido por uma espécie de envelope formado por uma dupla camada lipídica… Não me peçam para explicar. O que sei é que fora do ambiente intracelular os vírus são inertes… Qual o perigo? Nas superfícies não duram muito tempo, e no ar mantêm-se tempo suficiente para se transmitir pelas vias superiores respiratórias. Mas, uma vez dentro das células, a capacidade de replicação dos vírus é surpreendente: um único vírus é capaz de multiplicar, em poucas horas, milhares de novos vírus. E os vírus são capazes de infetar seres vivos de todos os domínios, inclusive bactérias. Daí todas as dificuldades. Eis por que razão tenho o maior cuidado com a minha máscara e com o lavar das mãos… De facto, os vírus representam a maior diversidade biológica do planeta, sendo mais diversos que bactérias, plantas, fungos e animais juntos. Quase 200 mil tipos diferentes de vírus se espalham nos oceanos do mundo. Por exemplo, a última contagem é 12 vezes maior do que o censo anterior de vírus marinhos registado em 2016. Esse meu amigo, que, como diria o saudoso Bocage, não era um doutor das dúzias, fez-me compreender como esses especialistas falam barato do que não sabem e peroram sobre o que não existe. Assim se entende que o Senhor Donaldo Trump se aventure num campo difícil e minado, como se fosse um verdadeiro especialista – falando de desinfetantes e aconselhando práticas mortíferas para os mais incautos. Alguns que o seguiram foram levados a perigosas lavagens ao estomago. O mesmo se diga do Senhor Bolsonaro e de tantos outros, que na Idade Média teriam emprego certo como bobos ou como charlatães… Percebe-se assim que estes especialistas que nos invadiram têm onde se inspirar. E percebem-se as cautelas postas pelos verdadeiros infeciologistas, que são os primeiros a dizer que muito pouco se sabe ainda sobre este tema. Todo o cuidado é pouco. Andamos todos às apalpadelas – que o diga este momento de grande incerteza. De facto, ainda a procissão vai no adro. E não podemos facilitar. Ninguém se julgue imune. A ciência sabe muito pouco. Por isso os falsos especialistas são como esse Gaston, que um dia se lembrou de organizar um arquivo com o mais estranho dos instrumentos – uma ventoinha… O resultado dessa operação é exatamente a que suspeitam..… Está tudo dito… É assim também com estes doutores da mula ruça. Quando virem e ouvirem um destes especialistas ilusórios ponham-se de sobreaviso.
“Uma Voz na Revolução – Testemunhos e Causas” de Francisco de Sousa Tavares, com seleção de textos e introdução de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor, 2014) permite-nos recordar uma referência fundamental na democracia portuguesa e do Centro Nacional de Cultura.
UM CENTENÁRIO A LEMBRAR Assinalamos o centenário de Francisco de Sousa Tavares, nascido a 12 de junho de 1920, e na sua pessoa lembramos uma componente fundamental da democracia que continuamos a construir no dia-a-dia - a independência de espírito. Fora de qualquer unanimismo, a sua atitude foi sempre autónoma, livre e própria. Desde muito cedo, acompanhei o seu percurso cívico e político, cultural e humano, e olhando para trás não esqueço como o seu pensamento e a sua coerência tiveram em mim influência significativa. Sendo meu avô monárquico e anglófilo, dois fatores que o levavam a recordar na história da nossa família, a marca indelével do constitucionalismo desde 1820, foi-me possível acompanhar através dos debates da época, muitas intervenções desassombradas de Sousa Tavares, contra as lógicas transpersonalista e totalitária, em nome da dignidade da pessoa humana. Recordo o que deixou escrito na I Semana de Estudos Doutrinários (Coimbra, 1960) ou o que se encontra evidenciado no livro do mesmo ano Combate Desigual (apreendido pela Censura logo na tipografia) de “uma luta ardente e incansável pela democratização do ideal monárquico”, mas também os documentos que subscreveu, em 1959, sobre as relações entre a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos e sobre os serviços de repressão do regime, bem como de outubro de 1965 – o célebre documento dos 101 católicos, em prol da democratização.
«DE MÃOS DADAS COM OS PERIGOS» Como afirma o meu amigo Miguel Sousa Tavares: “Ele não nasceu politicamente em 25 de abril de 1974 e não morreu intelectualmente no dia seguinte. Estava antes e continuou depois – coisa que tantos oportunistas do 26 de abril jamais lhe perdoaram. A sua formação e o seu pensamento político não advinham nem de modas nem de adesão a movimentos coletivos e instantâneos de bem pensar – e, por isso, com inteira sinceridade e até inadvertida cautela, foi capaz de deixar escapar esta frase admirável: ‘Sempre me horrorizaram os que se servem da fé dos outros para negociarem o mundo’”. De facto, era um homem sem medo e com uma coerência, que tantas vezes parecia paradoxal. E o seu filho pergunta-se se essa ausência de medo não seria inconsciência. E lembra o belo poema de Sophia, que constitui o maior elogio a essa coragem determinada: “porque os outros vão à sombra dos abrigos e tu vais de mãos dadas com os perigos”. Não, não era inconsciência. Sabemos como fervia em pouca água. Mas também sabemos que acreditava no íntimo de si na força de ser livre e de crer na humanidade. Ele, no golpe da Sé (1959), fardado de oficial de Cavalaria para assaltar o regimento de Caçadores 5. E, no momento decisivo, empoleirado na guarita do Largo do Carmo em 25 de abril. Foi o único civil, “às horas ainda incertas da Revolução”, ao lado dos militares revoltosos da coluna de Salgueiro Maia. E quase se perdeu o que disse em poucas palavras com aquele megafone histórico. Pois bem, o que Francisco de Sousa Tavares afirmou naquela tarde de primavera, foi que ali acontecia o dia mais importante desde o Primeiro de Dezembro de 1640 e que caberia ao povo defender as promessas autênticas de liberdade e de cidadania. Mas, não podemos lembrar Francisco sem o Centro Nacional de Cultura, “palco privilegiado”, onde se bateu contra a resistência integralista, que durante anos, impediu o seu acesso a presidente. Mas, o Centro, “desde que consegui ganhar a eleição para presidente (1957), ocupou-me imenso tempo e abria as portas a grande parte da intelectualidade de Lisboa, sem que o núcleo inicial de fundadores deixasse jamais o seu rumo à deriva”. “Foi assim que consegui que na mesma sala se reunissem e discutissem personalidades tão frontalmente opostas como desde Henrique Martins de Carvalho – que como presidente da assembleia geral era um seguro de vida do Centro – a José Gomes Ferreira, a Fernando Namora, de Álvaro Ribeiro e António Quadros – que desapareceu há poucos dias (1993), deixando um rasto de saudade, pela sua doçura e urbanidade convivente – até à mocidade de então, que hoje são homens na pujança da vida, como Alexandre Bettencourt e Luís Coimbra, a Vasco Pulido Valente ou João Bénard da Costa”. Quando lemos os seus textos, primeiro reunidos por Maria Andresen Sousa Tavares e revistos por Miguel Lobo Antunes em dois volumes preciosos (Escritos Políticos) e depois antologiados em Uma Voz na Revolução – Testemunhos e Causas (2014) por Miguel Sousa Tavares, descobrimos a força dos ideais que o animavam. “A esquerda, a verdadeira esquerda, não aceita receitas; inventa, descobre, luta e vive. Senão é um cadáver” (1976).
UMA VONTADE VIÁVEL E importava acreditar num Portugal de vontade e viável: “Para que Portugal seja viável é necessário que exista um futuro para os portugueses na terra que lhes cabe” (1977). Como disse em relação ao seu amigo Jorge de Sena: “odiava o dogmatismo, as seitas, os ‘conluios da mediocridade’, que denunciava com um vigor contundente” (1978). E deste modo afirmava, com determinação: “Eu, por mim, sustento há muitos anos que a mentira, a manobra, o oportunismo não são virtudes políticas e acabam por ter um preço muito caro. E que, como alguém disse, a política é, quer queiram quer não, um capítulo da moral, Desde Aristóteles” (1979). Todos quantos o conheceram sabem que nenhuma destas palavras era para si vã. O seu patriotismo prospetivo, em vários momentos afirmado e repetido com especial veemência, pressupunha que “Governar não é gerir o passado, nem remediar o presente, é construir e moldar uma conceção imaginativa do futuro. Essa conceção é a força e a alma de um Governo” (1980). Mas a Administração Pública continuava a sofrer dos males fundamentais como “a burocracia, a irresponsabilidade e a centralização do poder de decisão”, a que se somavam a quebra da dignidade da carreira pública e a instabilidade das funções (1982)… Mas, no essencial, “a primeira obrigação do Estado” deveria ser a “defesa e a realização da liberdade. Não a liberdade de uma ideia, de um partido ou de um esquema de poder. Mas a liberdade de cada homem e de todos os homens, o total respeito pelas ideias, pelas crenças e pela dignidade da pessoas humana em face do Estado” (1983)… Se lermos com atenção os seus textos, fácil é descobrir não apenas a atualidade e pertinência, mas sobretudo a preocupação de assegurar que a democracia, aceitando a imperfeição, teria sempre de se comprometer no sentido de ser melhor, de representar os cidadãos e de defender o bem comum.
Como afirmou António Barreto no prefácio ao segundo volume dos Escritos Políticos: “Diletante, como, com desgosto, se afirmava (dizia que era o seu principal defeito), mas um grande diletante, frequentemente exaltado, tinha a nostalgia dos cavalos e da vela, que praticara na juventude. Jogava bridge com pertinácia, interessava-se pela cultura em geral, viajava por desfastio, procurava o mar e o sol, estudava com curiosidade, lia com afinco e sem constancia, conspirava, advogava sem método, fazia jornalismo sem cartão profissional (…) e tinha uma verdadeira paixão, a política”. Muito mais do que diletante, porém, era um apaixonado da vida. Sem a sua determinação, o Centro Nacional de Cultura, por exemplo, não se teria tornado o lugar marcante que pôde ser!...
Há 150 anos, Teófilo Braga publica uma “História do Teatro Português”, assim exatamente designada e que merece destaque, quer pela personalidade e carreira literária e política do autor, quer pela qualidade dos textos então reunidos e que de certo modo constituem uma das primeiras abordagens sistemáticas da evolução global da literatura dramática portuguesa. Isto, sem pôr em dúvida obviamente nem os textos e estudos que historicamente o antecederam, nem a globalidade sempre assinalável da obra do autor.
Vale pois a pena assinalar e transcrever, quando adequado, passagens desse estudo, no que se refere designadamente, mas não só, à época iniciática da nossa dramaturgia. E desde logo na iniciação histórica.
E pois desde logo, no que respeita ao chamado arremedilho, termo que surge num documento promulgado por D. Sancho I em 1193, autorizando uma doação a dois jograis, de seus nomes Bonamis e Acompaniado, documento esse recolhido por Santa Rosa de Viterbo e citado por Teófilo.
Segundo o documento, os jograis formulam como que uma quitação:
“Nós, mimos acima referidos, devemos ao Senhor nosso Rei um arremedilho para efeito de compensação”.
A esse respeito, Teófilo coloca uma questão:
“Começaria o teatro português pelas pantominas rudes, e não conheceria o nosso povo outra forma, por isso que a única designação dramática inventada por ele foi a palavra bonifrate (nome puramente português dos espetáculos a que os espanhóis chamaram títeres e os franceses marionettes)”.
Mas avancemos no tempo e na História do Teatro.
Em 1543 Teófilo situa a “Prática de Oito Figuras” de António Ribeiro Chiado, falecido em 1591, e que, designadamente nesta peça, aborda uma situação geopolítica bem própria da época, numa dupla perspetiva de expansão colonial e de reforço da política europeia.
Trata-se então agora de uma frustrada tentativa de ocupação da Argélia por Carlos V, e à negociação com D. João III para o casamento do filho do Imperador com a Infanta Dona Maria, filha do Rei de Portugal.
Mas mais interessante, no ponto de vista histórico, será então o “Auto das Regateiras”, este escrito também por Chiado agora em 1459, e que, como escreveu Teófilo considera nada menos do que “precioso para a reconstituição da sociedade portuguesa no século XVI; a ação é frouxa, um simples casamento, tratado pelos pais dos noivos, celebrado com palavras de presente, mas os tipos é que são acentuadamente característicos e os ditos graciosíssimos expressos por modismos e locuções de viva poesia”, nada menos!
E assinalam-se ainda, na mesma época, dois dramaturgos de destaque.
Jorge Ferreira de Vasconcellos (1515-1585) escreveu três comédias: “Eufrósina” (1555) e “Ulissipo” e “Aulegrafia” cujas datas são questionáveis. Em qualquer caso, como escreveu Maria Odete Dias Alves, na tese de licenciatura da Faculdade de Letras de Coimbra (1971) “povoa o palco de figuras portuguesas e da sua época: é o ambiente de Quinhentos que vive nas suas páginas”.
E cite-se ainda António Prestes, que a partir de 1565 escreve uma série de peças compiladas em 1587, e que mereceram de D. Francisco Manoel de Melo, no “Hospital das Letras”, um rasgado elogio: “Gil Vicente, o primeiro cortesão e o mais engraçado cómico que nasceu dos Pirenéus para cá. A quem se seguiu, e não sei se avantajou, António Prestes”!...
Voltaremos a este temário. Mas apraz-nos desde já lembrar que Luís Francisco Rebello cita a “História do Teatro Português” de Teófilo Braga como a primeira editada em Portugal (1870-1871).