CRÓNICAS PLURICULTURAIS
54. UTOPIA TECNOLÓGICA E ÉTICA NA NOVA CULTURA DA MÁQUINA
Basta uma avaria no computador ou no telemóvel, para percebermos como estamos literalmente dependentes das máquinas.
Por maioria de razão em tempo de pandemia e isolamento.
É como nos cuidados intensivos, sem essa união naufragamos.
A capacidade de resistência à frustração diminui, desfalecemos.
Indicia-se que a cultura do humanismo, em que a pessoa humana é o centro de tudo, está em decadência.
Emergiu e emerge um novo agente transformador: a máquina.
Emergiu e sobressai uma nova categoria de máquinas, que combinam regras, algoritmos, componentes aleatórias, cada vez mais autónomas e com vida própria, e não meras ferramentas controladas por nós.
Da robótica à inteligência artificial, dos bebés-robô aos drones, do telemóvel ao computador, há máquinas que avaliam a situação e tomam a decisão mais adequada. Muitas delas, inteligentemente criativas, como as impressoras 3D, criando e inventando coisas, solucionando problemas, associadas a uma mega capacidade inventiva.
Vão deixando de ser apenas funcionais e úteis, vivendo cada vez mais em simbiose connosco, escasseando a nossa autonomia e aumentando a nossa dependência.
Somos cada vez mais pessoas-máquinas.
Se é legítimo que somemos ao biológico o que há de melhor no artificial, numa espécie de fusão entre o natural e o que é produzido por mão humana, é imperioso que haja uma ética que imponha limites, quando já se prevê que a inteligência artificial venha a ler o pensamento humano.
A ser assim, qual a diferença entre a esfera pública e a privada?
Entre o disponível e o indisponível?
Entre o intimismo mais profundo, o que nunca partilhamos com o outo, nem queremos partilhar, e o que aceitamos comunicar com os outros em geral?
Ninguém sabe tudo, nem tem que saber, da mundividência sigilosa de cada um de nós, do nosso pessoal e intransmissível.
Onde fica o nosso segredo, o nosso refúgio particular?
Temos direito ao nosso mistério.
Faz parte da natureza humana.
Sob pena de ficarmos perante o desconhecido.
Estamos perante uma cultura nova que ainda não se afirmou em pleno, que tem de se expressar de modo a não colocar em causa as nossas liberdades mais essenciais e existenciais.
Com a transição da oralidade para a escrita, do virtual para o digital, evoluímos em termos civilizacionais, o que não significa que esse progresso seja sempre em linha reta, linear, sabendo-se da queda e fragmentação de muitas civilizações após o seu auge.
Uma caneta, um lápis, o saber escrever à mão, um livro, são coisas cada vez mais dispensáveis, para muitos, mas permanecem indispensáveis como património comum da humanidade, por analogia com uma cama, uma cadeira, uma mesa, que sempre existiram.
Evoluem com a evolução, ficando de arquivo da memória passada, mas também como reserva subsidiária e alternativa do presente e futuro.
Também aqui a ética e as humanidades têm de interligar-se e relacionar-se com toda a ciência para frear tal utopia.
05.06.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício