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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO IV

 

Como  
um  
tecelão

 

 

 

por meio  
da minha varinha

mágica uno
uma réstia de sol
a um fio
de
chuva

 

   

   Tentando manter o aspeto que Claudel pretendeu para a disposição dos seus versos em francês, traduzo em português uma das Cent Phrases pour Éventails, omitindo "apenasa caligrafia dos kanji que o próprio poeta fez questão em traçar para exprimir vernaculamente o íntimo sentido do curto poema. É pois este um dos 100 (na realidade 172) reunidos naquela antologia, cujo autor tão bem assim prefacia:

 

   É impossível para um poeta ter vivido algum tempo na China e no Japão sem considerar como estimulante o arsenal que ali acompanha a expressão do pensamento: o pau de tinta da China, primeiro, tão negro como a nossa noite interior; esfregamo-lo, borrifado de água, numa placa de ardósia e numa tacinha recolhemos o sumo mágico. Depois, basta nele molhar o  pintor da ideia, esse pincel leve, quase etéreo, que, ao longo das nossas falanges do fundo de nós comunica a deflagração do poema. Alguns traços deliberados, tão firmes como os do inseto que, como longa broca, pela casca da árvore paralisa a presa invisível. Cuidemos apenas com levantar bem a nossa manga e precaver qualquer imprudente exalar da nossa narina que pudesse chocar com o sopro do espírito  -  e eis-nos em poucas palavras libertos do arnez da sintaxe e composta, sobre a brancura, somente pela simultaneidade, uma frase feita de relações! Escrita, digo eu, mas sobre quê? sobre o bojo, dessa olaria que, para nós, foi agora mesmo tirada do forno?  -  ou, melhor ainda, sobre essa asa que o leque é, pronta a propagar o sopro? Acolhe tu, na escuta do teu coração, essa palavra muda despachada por um hálito saído da mão!

 

   [Fica-nos pensarsentir como o poema é uma respiração do corpo e da alma, a obra que só a união ontológica do corpo e da cabeça consegue produzir, e traduzir por um gesto natural e inconsciente da consciência. Gesto sempre mágico, pois apenas controlado pela sua própria secreta intimidade.]

 

   Cent Phrases pour Éventails é a coletânea que hoje, pela primeira vez ao fim de dezasseis anos, faço desses poemas, prontos para levantar voo neste nosso céu de França, depois de ter atrevidamente procurado misturá-los ao ritual dos enxames de haikai para que, no Japão, encontrassem a sua sombra. Quem me teria permitido  -  por certo não este pincel já vibrante no mais lasso das minhas falanges, nem este papel que se oferece, tão estaladiço como seda, tão tenso como corda no arco posta, tão fofo como o nevoeiro  -  resistir à tentação, ali tão ambiente em toda a parte, da caligrafia? Não sou, eu também, um especialista da letra? E a letra ocidental que, tal como pensada, se integra em palavras e em letras, não será ela, no gesto que a liga às suas vizinhas, algo tão animado e perentório como a sigla chinesa?

 

   Não prolongarei aqui a tradução deste passo de Claudel, que poderá ser lido na íntegra no original publicado pela Gallimard em 1967 (Bibliothèque de la Pléiade: Paul Claudel - Oeuvre Poétique - pág. 697). Deixo todavia a sugestão de uma leitura atenta e reflexiva de um texto breve mas prenhe de inspirações essenciais a qualquer achega mais íntima desse real absoluto que Novalis descobriu na poesia.

 

   Esta é fulcral na cultura clássica chinesa e na japonesa, em cuja literatura encontrou pistas e pausas novas de expressão e desenvolvimento. Tal qualidade da alma de uma cultura nem sempre é bem abrangida por tradutores, historiadores, críticos ou, simplesmente, gente de letras de outras origens. Sobretudo por aqueles que pouco resistem à tentação do recurso a nomenclaturas e ferramentas de análise próprias a culturas mais próximas das suas. Em Portugal, por exemplo, onde todas as obras editadas - de tradução, história, análise e "imitação" de haiku - não se alimentam de originais japoneses, mas vão beber a outras versões estrangeiras, quase sempre, aliás, com parca ou nenhuma informação sobre as fontes utilizadas e respetivas circunstâncias... Mas volto ao Claudel, para lhe pedir ajuda na abordagem pretendida, já que ele procurou até uma aproximação quase física  -  a prática da arte caligráfica - à escrita poética sínica e nipónica. Recorrerei agora a outro exemplo, o de um livrito de poemas editados em 1945, mas escritos por volta de 1936, creio que para uma conferência dada pelo autor, em Paris, sobre La Poésie Française et l´Extrême Orient, e então publicados, não sei se integralmente, na Revue de Paris: os Dodoitsu  que, na edição em volume pela Gallimard, eram ilustrados a cores pelo pintor japonês Ricadu Harada. De acordo com Georges Bonneau, então professor no Institut Franco-Japonais no Japão, dodoitsu é um poema de vinte e seis sílabas (três heptassílabos e um pentassílabo final), modo natural de expressão da poesia camponesa japonesa:  mas, testemunho humano de inaudita riqueza, fica a meio caminho entre a canção e o poema  em ritmo fruste, curto de respiração, simplista na composição, demasiado fácil tecnicamente. Ao que se sabe, foram precisamente estas facetas populares que seduziram Claudel. Traduzo um trecho do brevíssimo prefácio que o próprio poeta escreveu em Março de 1944, para a edição em livro dos seus dodoitsu:

 

   Estranha asa do poema! quando a canção ganhou voo, abandonado já o solo natal, quem dirá que feições, que reflexos ela será chamada a despertar em inesperados espelhos, que inspiração trará ao eco, que variações irá propor, numa qualquer riba distante, ao ouvido atento do pássaro trocista? Assim além, no Sol Nascente, sob os pés do camponês atrelado ao seu rodízio, do marinheiro içando a vela, ou no batimento rítmico do pesado malho que descasca o arroz, ou no embalo sonhador da jovem mãe (de pé calçado em curta peúga branca, ah!, mais do que o berço, é o bater do coração do seu menino que lhe transmite a sua pulsação!) nasce uma melopeia a que se vêm afeiçoar, como vindas delas mesmo, humílimas palavras. Do zumbido ingénuo, nativo, nasceu o dodoitzu, irmão rústico - mas a meu ver bem mais saboroso - do sapiente uta. Poucas linhas, alguns versos à medida de uma gorja de pássaro ou de elitro de cigarra. Um amador autóctone ouviu-os e transcreveu-os, da música nativa já só resta o resíduo verbal. Por sua vez, um estrangeiro, neste caso Georges Bonneau, professor no Instituto Franco-Japonês de Kyoto, interessou-se por eles, traduziu-os e fez uma antologia. E este acervo vem parar debaixo dos olhos de um velho poeta com longas estadias por lá, pelo país da Serenidade Matinal. [Abro aqui este parêntese, só para dizer que, nos anos em que estive acreditado no Japão e na Coreia do Sul, nunca vi tal designação ser referida ao primeiro, mas apenas, e tradicionalmente, à península da Coreia].

 

   Vem-me à memória Michel Giacometti, corso e francês, que levou anos de vida a percorrer o Portugal rural que amava e a recolher tantos dodoitsu das nossas regiões. Graças a ele, conservamos o som e o sentido de muitas vozes que iam, em trabalhos, lazeres, festas e amores dos campos, exprimindo a alma das gentes que mais próximas viviam da relação à terra de Portugal... Quantas, tantas, dessas expressões já se calaram! Outras ficaram, algumas já de antes de Giacometti, como a do canto da mulher da Beira Baixa, cujo pisar faz rodar o rodízio da água de rega: temos o som e as imagens gravadas pelo corso, como a memória de uma canção de Coimbra que lhe reproduz a lírica e, na voz já morta de Edmundo Bettencourt, fiel, rezava assim:

 

               Era ainda pequenina,
               acabada de nascer,
               inda mal abria os olhos,
               já era para te ver!

 

               Quando um dia eu for velhinha,
               acabada de morrer,
               olha bem para os meus olhos,
               sem vida inda sei te ver!

 

   Mas lembrado daquele dito de ser o Japão o país em que o contrário também é verdadeiro, deixo - em francês para não escamotear intenções, nem sequer rimas - estes dois dodoitsu compostos por Claudel sobre as respetivas transcrições já feitas por Bonneau:

 

               L´eau s’en va de la rizière
               L´eau s´en retourne à la rivière
               Hélas! c´est comme l´amour!
               On ne peut pas s´aimer toujours!

 

               Sous la neige qui commence
               La montagne a fait silence
               Mais sensible à l´eau qui court
               Le moulin tourne toujours!

 

   Os sopros e aromas dos ares que respiramos, o murmúrio das águas, o sussurro das árvores, os silêncios e segredos da natureza nossa mãe, e a voz íntima do espírito em cada um de nós, tudo nos ensina, na serenidade do nosso acolhimento, bem mais do que uma ciência que não saiba a diferença entre ter e ser... Vou chamando cultura  -  muito heterodoxamente para  a intelectualidade reinante - ao conjunto de referências que vão constituindo a nossa ecologia mental e espiritual... Não sei o que é essa "cultura" de que por aí tanto se fala, quer no sentido de qualquer arte que nos deva merecer atribuição de subsídios, quer no do que possa ser uma qualquer aprendizagem da primazia ou fundamentalismo de conceitos, estilos ou autores "indispensáveis ou insubstituíveis", espécie de indispensável erudição. 

 

   A cultura será então, em meu entender, tão somente, o exercício de diálogo do meu espírito crítico com outros. Cada um formado a seu modo e em seu tempo, é certo, mas sempre independente, não necessariamente das suas heranças e memórias, mas do confinamento (como está na moda dizer-se) aos seus próprios limites. Porque suficientemente forte e generoso para entrar nas liças que o desafiam. A cultura é um convívio, uma forma serena, construtiva, de confrontação. A capacidade laboriosa de aprendermos uns com os outros.

 

   E já que falávamos de Claudel, tem aqui cabimento recordar o que o mesmo, então embaixador de França em Tokyo, disse no discurso proferido por ocasião da inauguração, em 14 de Dezembro de 1924, da Casa ou Instituto Franco-Japonês na própria capital do Sol Nascente, acentuando a ideia inspiradora daquela instituição e a de "conhecimento", palavra esta ali bem sublinhada pela sua carga claudeliana de "nascimento com" (co-naissance):

 

   É muito importante conhecer os povos estrangeiros, mas sem esquecer que esse conhecimento não se adquire nos livros, nem, uma vez por todas, que os povos vivem, se modificam e desenvolvem, de modo que é impossível conhecê-los sem um íntimo e contínuo contacto com eles.

 

   Voltarei a referir Claudel diplomata, quando escrever sobre os contactos desenvolvidos entre potências europeias (com relevo para a Alemanha, o Reino Unido e a França) e o Japão das eras Meiji e Taisho, anteriores à era Showa (imperador conhecido por Hirohito), período em que se afirmaram as forças militares e industriais nacionalistas que levariam o Império do Sol Nascente à catástrofe da guerra. Aproveitarei a oportunidade para incluir a figura coeva de um Portugal apagado. Por agora, e para não deixar a poesia, traduzo um Haikaiescrito em francês e inserido numa coletânea de poemas (todos em japonês) de poetas nipónicos, publicada em Dezembro de 1923, em memória do terrível terramoto de 1 de Setembro desse ano. O então embaixador de França foi o único estrangeiro convidado a participar. Recorda a sua própria experiência dessa noite em que se deslocava a caminho de Yokohama, para encontrar a filha de que estava sem notícias. Tal poesia ilustra, sem pretensiosismos, como é possível aculturar a expressão de emoções e sentimentos. Acrescento a lembrança de que Paul Claudel (ou Kuralodero, na fonética do apelido escrito em katakana, aqui reproduzida em romaji) deu a um tratado constitutivo do seu Art Poétique o título de Traité de la Co-naissance au monde et de soi-même. Passo ao haikai:

 

   À minha direita e à minha esquerda uma cidade arde a lua entre as nuvens é como sete mulheres brancas.
   Com a cabeça em cima de um carril o meu corpo mistura-se ao corpo da terra fremente ouço a última cigarra.
   Sobre o mar sete sílabas de luz uma só gota de leite.

 

Camilo Martins de Oliveira