Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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56. “FOREVER YOUNG” “ETERNAMENTE JOVEM” OU “JOVEM PARA SEMPRE”
Um hino à primavera solar que aparenta fazer de nós imortais.
Um ícone à juventude que ficciona fazer de nós jovens para sempre.
“Forever Young”, da banda teutónica Alphaville, é uma exaltação e louvação de quem era jovem, na década de 80, do século XX.
Este original e interpretação de 1984, é um grito épico e nostálgico de um tempo que presencialmente se vive e está a acabar, se viveu e perdeu, como que em busca de um tempo perdido, com interrogações e súplicas para que se reencontre ou permaneça imutável e imortal.
A vida é curta, a juventude uma breve viagem dentro de outra rápida jornada que é a nossa peregrinação.
Há que usar, fruir e gozar bem aquilo que temos, sabendo que a juventude dura pouco, o que aprendemos com a idade e maturidade, mesmo que tarde para ser proveitosa.
Em plena época da guerra fria, eis que surge uma canção angustiante, solar e sombria, desobediente, inconformista e insubmissa.
Uma canção ciente de que todos os jovens “sooner or later they will be gone”, desaparecendo e desfolhando-se na agonia lenta da sua juvenilidade, da sua passageira e precária imortalidade.
Proclamando acaloradamente, de modo agudo e doloroso, a injustiça de não sermos eternamente jovens.
Canto sofredor, ávido de glória e revolta, num clamor lancinante que se quer ouvido, guardado e temido.
“Let us die young or let us live forever” (Deixem-nos morrer jovens ou deixem-nos viver eternamente), lançando a bomba ou não, desejando o melhor e esperando o pior (“hoping for the best, but expecting the worst”).
É o querermos ser eternamente jovens para sempre, diamantes eternos ao sol, numa entoação e grito coletivo de “forever young”, onde por confronto nos interrogamos se queremos mesmo viver para sempre (“Do you really want to live forever?”).
Existem outras versões cantadas e musicadas sobre o mesmo tema, uma de Bob Dylan (de 1973, igualmente bela e sugestiva), muito popularizada pela voz cristalina, melodiosa e potente de Joan Baez, mas é a dos Alphaville que, em minha opinião, glosa e agarra mais de perto a mensagem, retratando melhor a energia e irreverência juvenil, a começar pela idade dos autores.
Este desejo humano e finito de desafiar o infinito, esta ânsia de defrontar a imortalidade sempre existiu, assim como hoje há gente poderosa de Silicon Valley, por vezes fanática, de uma fé cega, científica e tecnológica, ingerindo no dia a dia pílulas para nunca morrer e praticando a criogenia para reviver.
Porque nos penhoramos e hipotecamos tanto em sobreviver, procurando obsessivamente a dieta imortal, desejando ser eternos, à nossa maneira, e não nos deixamos morrer naturalmente?
Nos nossos limites humanos tentamos uma utopia que recrie o tempo que passou, passa e passará, o epílogo dos tempos, querendo ser imortais, eternos, jovens para sempre, sendo mortais, viajantes de passagem e transitórios, mesmo que mentalmente nos imaginemos eternamente e preferencialmente jovens, quando nem sequer temos uma evidência palpável da nossa vivência além-túmulo.
Há uma revolta e luta entre a natureza e o homem, em que este quer ser o Homo Deus, mas não é, como o exemplifica a atual pandemia do coronavírus (da COVID19), em que se aguarda, a todo o tempo, que a ciência descubra a vacina redentora e que a medicina vá evitando demasiadas mortes.
Obrigado, Alphaville, pelas belas memórias e eterna canção, com aquela sinfonia final celebrando um esplendor na relva que não volta.
Com os meus calorosos prolfaças a alguém muito especial, em véspera de celebração, não de rebusca de um tempo ido, mas de um resplendor ainda presente.
Deixou-nos, presumivelmente, num fim-de-semana. Tinha 64 anos quando partiu. Vivia sozinho no Bairro Alto. Estava sozinho quando nos deixou. Uns dias depois foi encontrado sem vida na sua casa.
Como sublinhou a poeta e sua amiga Maria Quintans “Ele era um grande poeta, mas foi muito marginalizado porque não alinhava com o sistema”. Todavia “a sua incontornável e apaixonada estrada foi sempre a poesia”.
Dos poetas que fazem do azar uma espécie de sorte, dizia Manuel Cintra:
“Algumas pedras os escutam”.
Filho do linguista Luís Filipe Lindley Cintra viu a sua estreia como poeta na coleção da Editorial Presença por sugestão de Ruy Belo.
Viveu também o cinema como poucos. Foi programador da Cinemateca. Foi tradutor e jornalista e Actor.
“NÃO SEI NUNCA POR ONDE”
Livro a fazer-nos companhia e sempre como Manuel Cintra dizia:
“Sempre numa nova manobra. A evitar o acidente. Ou a vivê-lo a fundo”
A sua amiga Raquel Nobre Guerra lembra-o assim:
“Não era leve não era cool, não se observava na simpatia de todos, vendia poemas na rua (…) pedia dinheiros, tinha uma página de poesia, tinha o número de telefone na página de poesia, tinha gatos e cães falava deles como de amigos, lia poemas em toda a parte, incomodava, fazia tropelias, agia sobre os outros como quem via qualquer coisa. (…) Tinha sempre uma ponta de febre (…) Era quase tudo o que pomos de parte na vida real para depois nos refastelarmos com a ideia romântica disso.”
Parece-nos que cada vez mais, tudo o que se passa numa vida a inventariar e a compreender, está numa eflorescência passageira que só tem o sentido de permitir à humanidade desempenhar o seu papel, e, cada vez mais a decadência universal é uma desagregação definitiva, mas organizada por essa mesma humanidade que se julga a metade sã de tudo nesse mesmo papel. Não sei mesmo se nesta metade não está a autojustificação dos intelectuais que deste modo julgam afastar-se dos logros.
Mas eis
Eis
Um poema de Manuel Cintra
Nada me pertence, nada se afoga nesta terra deserta de cansaço Nada é culpa, nada é nascido, tudo cria embriões para que embriões possam nascer Eu sou nada e se acaso me afogo é porque não existo, como os meus amigos como a arte de imaginar E a natureza prende-me, se amo é por vir de um céu imenso onde forças estranhas me inventaram, e aos meus amigos, e a todo o tanto que não existe sobre a terra coberta de tudos. Mesmo deus que não existe me forjou para a natureza que não existe, a minha de ser minúsculo e gigante e não existir
Na crónica anterior, tentei reflectir sobre o desconfinamento. A crónica de hoje, que não põe de modo nenhum em causa a importância do uso da máscara no contexto da pandemia, tenta ser uma breve reflexão sobre outras máscaras e a necessidade do desmascaramento, outro desmascaramento. Não se dedica a um estudo aprofundado sobre a história e a riqueza cultural da máscara, desde as máscaras das divindades e dos guerreiros, passando pelo teatro, até aos bailes de máscaras e aos carnavais. Aqui, é aquela máscara que colocamos, umas vezes inconscientemente outras conscientemente, para parecermos o que realmente não somos, enganarmos os outros e enganarmo-nos a nós próprios. Temos medo e vergonha de nós, do que verdadeiramente somos? O desmascaramento é particularmente urgente numa sociedade como a nossa: sociedade do parecer, da pós-verdade, do espectáculo e, por isso, da mentira e da ilusão.
Quem esperava esta pandemia? Um vírus invisível chegou e invadiu o planeta e atingiu a Humanidade inteira. E foi preciso fazer uma pausa, e tudo o que parecia inadiável ficou parado, para depois, para quando for possível. Afinal, quais são as prioridades? Foi e é preciso colocar uma máscara, porque a covid-19 nos desmascarou quanto à nossa pretensa omnipotência. Afinal, não somos omnipotentes nem imortais. Fomos desmascarados. Como disse o filósofo Nicolas Grimaldi, “trata-se de um acontecimento natural como pode sê-lo um tremor de terra. Isso teria interessado a Pascal: como é que um infinitamente pequeno como um vírus pode produzir efeitos tão imensos? A Humanidade toma consciência da sua universalidade ao tomar consciência da sua mortalidade, da sua precariedade, em toda a parte no mundo, no mesmo momento. De repente, é-nos lembrado: é igual em toda a parte, porque vamos morrer.” E fomos obrigados, inevitavelmente, a pensar. Porque é a morte, o impensável, que obriga a pensar no essencial: o que é morrer?, o que é estar morto?, para onde vão os mortos?, “onde estarei quando deixar de existir?” (Tolstoi), “que morto serei para os que me sobreviverem?” (Paul Ricoeur), o que é existir autenticamente, porque é que há algo e não nada?, para quê tudo?, qual é o sentido último da minha vida?, o que sou?, quem sou?, o que é que quero verdadeiramente ser?, o que é que autenticamente vale?
E agora? Vai ser diferente para o futuro? Mudámos de forma duradoura? Contra tantos que dizem que sim, eu, mesmo fazendo figura de pessimista, temo que esteja na cabeça da grande maioria, e no mais profundo, o desejo de voltar ao antes, à vida como era. Como escreveu o filósofo Abdennour Bidar, que já várias vezes aqui citei, “passar-se-á da anormalidade extraordinária do confinamento imóvel à anormalidade ordinária do corre-corre febril. Dois confinamentos, um em casa, o outro ‘fora de si’, numa existência dispersa que nada tem a ver com o essencial.” Desejo de voltar às máscaras da aparência, do ter, do poder, da corrupção, da sociedade da produção-consumo, que assenta a sua lógica no tabu da morte. Disso pura e simplesmente não se fala, há pudor em falar dela.
A morte desmascara e obriga a tirar as máscaras do parecer, da hipocrisia, da mentira, do medo de dizer a verdade, da cobardia, da competição feroz, das vaidades do ter e do poder pelo poder... Face à morte, como tudo o que não é essencial se torna pequeno! Martin Heidegger foi o filósofo do século XX que levou mais fundo o pensamento sobre a morte. O Homem é o ser da possibilidade, o existente para quem no seu ser a questão é esse mesmo ser, isto é, a quem o seu ser é dado como tarefa, como poder ser. Ora, a morte é a sua possibilidade “mais própria”, pois é a que mais o caracteriza, “irreferível”, pois corta a relação com tudo o resto, remetendo-o para si próprio, “intranscendível”, pois, enquanto possibilidade da impossibilidade, é a possibilidade extrema, a que se não pode escapar. A tentação permanente é distrair-se e não assumir a morte como essa possibilidade mais própria, irreferível, intranscendível, escapando-lhe pelo palavreado tagarela, pelo fazer como toda a gente faz, pelo recurso ao “toda a gente morre”, mas não propriamente eu. O Homem cai então no esquecimento de si mesmo e perde-se numa existência inautêntica.
Nas nossas sociedades tecnocientíficas e citadinas, a morte tornou-se tabu, o último tabu. Mas, ao perder o sentido da morte, perde-se o sentido da vida e o sentido da filosofia e da religião — sem a morte e a consciência dela, haveria religião e filosofia? E perde-se também o sentido ético: de facto, sem a consciência do limite no tempo, não se ergueria a questão ética na sua urgência da liberdade na definitividade. É o pensamento sadio da morte que obriga a distinguir entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale, entre a superficialidade e o definitivo. E que dá o horizonte da fraternidade, como viu também o filósofo Herbert Marcuse, autor da obra célebre e marcante dos anos 1960, O Homemunidimensional, denunciando a redução do Humanum a uma só dimensão: a de consumidor entregue à cultura consumista, ao prazer e ao divertimento segundo padrões estandardizados. À beira de morrer, disse Marcuse ao amigo Jürgen Habermas: “Sabes, Jürgen? Agora, sei onde se fundamentam os nossos valores e juízos morais: na compaixão.”
Lídia Jorge, a grande escritora, marcada pela morte recente da mãe, de quem não se pôde despedir, tem razão: “Não somos nada enquanto não estivermos preparados para morrer.”
Este pensamento nada tem a ver com menosprezo pela vida e pela alegria de viver. Pelo contrário, ele remete-nos para a vida na sua exaltação exultante. Viver quando? Precisamente agora, intensamente. Que cada instante seja um hino à vida no seu esplendor, no milagre de ser e viver!... Na liberdade toda, na serenidade combativa, sem máscaras para nós nem diante de ninguém.
Poderá então erguer-se um outro pensamento, que vem de outro filósofo maior do século XX, Paul Ricoeur, que morreu há 15 anos, precisamente no dia 20 de Maio de 2005, com 92 anos. Poucas semanas antes de morrer, diz-nos Catherine Portevin, escreveu a uma amiga: “Do fundo da vida, surge um poder, um poder que diz que o ser é ser contra a morte. Acredite nisso comigo.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 14 JUN 2020
Ter-se-ão escrito cartas neste tempo de tantas apagadas solidões? E poderá haver amor num tempo de tanto medo? As perguntas faço-as eu. Gostava que as respostas, as desse Greta Garbo. Sei que está à minha espera. Num jardim.
A mulher muito bela pode ser uma lua cheia de solidão. Um dia, veio à América o verdadeiro casal real britânico, Vivien Leigh e Laurence Olivier. Hollywood queria que Leigh fosse a Scarlett de “E Tudo o Vento Levou”. No jantar de boas vindas estava também Greta Garbo, coisa rara para a reclusa que ela era. No fim, a sueca convidou Olivier para um passeio pelo jardim que se estendia frente à ampla vidraça do salão. Leigh ficou a vê-los caminhar e conversar. Torcia-se de ciúmes. Fez depois uma cena ao marido. Queria saber de que falavam. De jardins, disse-lhe Olivier, enraivecendo ainda mais a sua Vivien.
Mas era a pura verdade. Garbo tinha saudades dos jardins suecos e queria saber se também eram bonitos os jardins ingleses. “Oh, sim, jardins lindos,” terá respondido Olivier. E passaram quinze peripatéticos minutos a comparar jardins, se tinham árvores de frutos, se plantavam morangos. Olivier chegou a dizer-lhe que até plantavam couves, mas que isso já era mais uma horta do que um jardim e Garbo, disse ele a Vivien, percebeu a diferença.
Os olhos e ouvidos que testemunharam os factos foram os de Garson Kanin, realizador do excelente “My Favourite Wife” e argumentista de duas obras-primas, “A Double Life” e “Adam’s Rib”. A Garbo fez, por essa altura, um papel que a atirou para píncaros de popularidade. Em “Ninotchka”, Lubitsch converteu-a numa funcionária estalinista que vinha a Paris e acabava derretida num capitalista jardim de delícias. Lenda do cinema mudo, Garbo entrara no cinema sonoro a pedir um whisky, provando que sabia falar. Demonstrava agora, com Lubitsch, que sabia rir-se. E fazer rir.
Kanin queria filmar com ela. Numa das conversas, Kanin contou-lhe uma cena que vira numa peça de teatro em Paris. Uma amiga confessava à outra que recebera uma carta de amor. Essa mulher amada dizia à confidente que lera a missiva, voltara a lê-la duas, três vezes, apertara a amorosa folha de papel contra o peito, beijara-a com discreta doçura e, de repente, subindo num impulso as escadas, fechara-se no quarto, arrancando o vestido e esfregando, devagar e logo freneticamente, a carta em todo o corpo. A seguir, em êxtase, a mulher amada comera a carta.
Greta Garbo olhou para ele, espantada. Bateu palmas e, disfarçando uma antiquíssima sombra com um riso nervoso, deixou cair dos lábios a envergonhada confissão: “Em toda a minha vida não recebi uma carta de amor. Uma única.”
Milhões de homens dormiam com a imagem dela, amavam-na até no simulacro que eram as mulheres que tinham, tocavam-lhe a ferida e dolorosa divindade na sala escura, e nenhum lhe escreveu uma carta. Atrás do véu de cada filme, atrás de cada lancinante olhar em close-up, ainda hoje se ouve a rouca voz de Garbo: “I want to be alone.” Queria?
“Evocação de Sophia” de Alberto Vaz da Silva (Assírio e Alvim, 2009) é a última das obras deixada por uma das referências essenciais do Centro Nacional de Cultura. Referimos a obra, como homenagem a Sophia, ao seu autor e ainda a Maria Velho da Costa.
A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA Naquela noite de sábado, depois de comemorar, à distância, com Amesterdão, os sete anos de um neto, feliz numa celebração auspiciosa, veio a notícia, entre os alertas que as novas tecnologias trazem, da morte de Maria Velho da Costa. Era uma amiga de confiança, Margarida Gil, que dava a notícia inesperada. Nessa tarde, falara com o Eduardo Lourenço, para lhe dar um abraço pelas suas noventa e sete primaveras, e estava longe de pensar que à noite iria relembrar as palavras premonitórias do seu prefácio a Maina Mendes, onde a personagem feminina emblemática simbolizava na mudez, a mudez de uma sociedade e a exigência de libertação de constrangimentos arcaicos. E relembrei as palavras do ensaísta, a ligarem a mestria literária e o grito de alerta humano… “É na trama de uma escrita densa e plural, de um virtuosismo sem exemplo entre nós, que Maina Mendes se encontra escrita e dispersa em múltiplos perfis, ‘puzzle’ voluntário organizado do interior (ou do lado invisível da trama) pela pressão uniforme do mundo recusado, mundo masculino, onde ele é a voz silenciada, negada ou submersa que se recusa à afonia definitiva”… E o certo é que para o ensaísta ninguém dos contemporâneos “redistribui com tanto sucesso as experiências mais criadoras da prosa portuguesa, de Fernão Lopes a Guimarães Rosa, paisagens atravessadas e recriadas, a par de outras, com uma originalidade absoluta”. Fui encontrando Maria Velho da Costa em diversos momentos e de diversas maneiras: antes do mais, na minha adolescência de leitor a acompanhar a geração de “O Tempo e o Modo”. Não esqueço a tradução de Opressão e Liberdade de Simone Weil, por Maria Velho da Costa para o Círculo do Humanismo Cristão da Morais – como Maria de Fátima Sedas Nunes – num texto significativamente encimado por duas citações, de Espinosa e de Marco Aurélio. Do primeiro: “No que diz respeito ao homem, nem o riso, nem as lágrimas, nem a indignação, mas o entendimento”. Do Imperador romano: “O ser dotado de razão pode transformar todo o obstáculo em matéria de trabalho, e dele tirar partido”. E aí Simone Weil partilha uma experiência espiritual emancipadora. Depois fui lendo e acompanhando os lídimos combates pela liberdade de ideias e de escrita – ao lado de duas outras amigas Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta… No final dos anos setenta, encontrámo-nos numa singular experiência com Maria de Lourdes Pintasilgo, Teresa Santa Clara Gomes e Helder Macedo. Fomos tendo contacto e lendo com gosto e interesse a sua obra, num sentido seguro de maturidade. Casas Pardas (1977), Lúcia-lima (1983), Missa in Albis (1988), Dores (1994)… Quando estava no Ministério da Educação, tive a honra de poder contar com a sua colaboração no meu gabinete, num projeto, em que pus especial empenhamento, de escritores e artistas em contacto com as escolas. Nada melhor do que garantir uma aprendizagem viva, baseada no contacto dos estudantes com os nossos melhores no domínio da criação. A ideia nasceu uma noite no ateliê da Graça Morais na Costa do Castelo – e contou ainda com Lídia Jorge, João de Melo, Gastão Cruz, Paulo Teixeira. No projeto também se integraria Maria Velho da Costa, num tempo em que Maria Isabel Barreno representava o Ministério da Educação em Paris (no que foi uma colaboração muito profícua designadamente com Jack Lang). Nesse sábado, dia 23 de maio, em que a notícia infausta veio, dei-me a lembrar esse tempo e a nossa última conversa telefónica, em que Maria Velho da Costa me pediu desculpa por não poder corresponder a um convite para falar numa sessão pública, por se sentir muito cansada…
UM DIÁLOGO APAIXONANTE Devo recordar, ainda, graças ao meu querido e saudoso Alberto Vaz da Silva, a lembrança de Sophia de Mello Breyner, a propósito de duas luminosas conferências feitas por ele no Centro Nacional de Cultura, no Porto e em Lisboa, que a Assírio e Alvim publicou, com o título Evocação de Sophia (2009), tendo na capa uma inesquecível fotografia de Sophia no Templo de Diana em Évora, da coleção de Alberto Lacerda e Luís Amorim de Sousa. Maria Velho da Costa fez um extraordinário prefácio, onde Sophia nos é apresentada, tal como era, num diálogo tocante que tanto nos sensibiliza, sobretudo escrito num tom que faz a prova do que Eduardo Lourenço premonitoriamente referiu a propósito de Maina Mendes. “Falávamos de noite, no alpendre quase morno, sem tom nem som. Nenhuma das duas era desesperadamente musical. Não havia música nem nos fazia preciso. Falávamos mais de todos do que de tudo; do tudo eram a arte e a poesia – nem política, nem mundos a mudar. Não era a prudência de pertencermos a fações políticas diferentes. Era a força da indiferenciação da noite, quando as mulheres falam. Falávamos de amores, de filhos. De amigos e desamigados. Desse mundo ginecêutico e caótico, onde tínhamos ambas de manter aparências. Brilhávamos na meia obscuridade como as estrelas que se viam no céu limpo, mortais e imortais, passe a solenidade. Porque não éramos solenes. (…) As estrelas reuniam-nos e aplacavam-nos, debaixo do alpendre de heras onde ressuscitavam as osgas do torpor do inverno. – Eu chamo-lhes Olgas, Sophia. Comem mosquitos e limpam o ar de moléstias. – Ah, Maria, dar um nome a um bicho é cativá-lo. É perigoso. Não se pode nomear um vírus, uma bactéria, um micróbio. Um cancro. Ia e vinha e perguntava a cada coisa que nome tinha. Não é verdade, respondeu ela quando a citei. Não é verdade, a poesia não pode tudo, a poesia não pode nada. Não pode nomear o mal”…
Estamos a vê-las, conversando serenamente, na quietude de uma noite algarvia. A lembrarem a astrológica injunção: Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe. E a Menina do Mar a dizer, “A minha terra é o mar”. Mas também fica na nossa retina a imagem do percurso matinal, “nesses dias rosados de Primavera na casa da Meia Praia”: “Seguíamos, a praia estava a metros, por um carreiro de terra argilosa, ela à frente, naquele passinho andarilho, até estacar e deixar-me acudir. É que ao longe, ouvia-se o latir dos cães vadios ou soltos, a aproximar-se. Eu enxotava-os, sem pau, de manso, Vão, vão para casa, vão embora. Eles não iam, mas estacavam também, fitos, a ver-nos ir pesarosos. – A Maria parece a Diana, a dos romanos. Olha para os cães e eles ficam com cara de pessoas…”. O diálogo entre Sophia e Maria era a modos que uma projeção do Olimpo no nosso mundo. E isso torna-se evidente quando Maria recorda que um neto seu se assustou quando ela lhe recordou uma passagem belíssima de Sophia: Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto do mar”. A criança disse: “Que horror! Um fantasma na praia. - Não é. É o que disse a Menina do Mar, uns tempos que teve de viver cá fora. - Ah. Prontos. Está bem então, avó. - É um fantasma lindo que cabe na palma da mão. Pois é. Na mão do coração”. Maria Velho da Costa trouxe-nos na sua obra algo que nos permite compreender o mundo à nossa volta com gente de carne e osso, demonstrando, como fez em Myra (2008) “que há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja”…
Sinal do que estou dizendo pode mesmo ser a própria história dessa experiência de Kurodero (Claudel) - L´Oiseau Noir dans le Soleil Levant - na cultura musical e cénica do Japão. Curiosamente, o alter-ego nipónico do poeta francês nessa história foi um tal Yamanouchi Yoshio (1894-1973), universitário francófilo e francófono, que, depois da morte de Claudel, se tornou no fundador e primeiro presidente, em 1962, da Nihon Kuroderu Kyokai (Associação Claudel do Japão) e, três anos mais tarde, na data do centenário da conversão de Paul Claudel, também se converteu ao catolicismo, escolhendo, para nome de batismo, esse mesmo de Paulo. Mas agora seguirei o relato de Michel Wasserman (D´Or et de Neige: Paul Claudel et le Japon - Les Cahiers de la NRF, Gallimard, Paris, 2018):
Este universitário francês, professor na faculdade de relações internacionais da Universidade Ritsumeikan de Kyoto, depois de referir os antecedentes do poeta embaixador na colaboração com criadores e artistas das artes musicais e cénicas, tais como Milhaud, Honegger, Ida Rubinstein ou Jean-Louis Barrault, aproveitou a sua estadia nipónica para repetir a experiência, elaborando com reconhecidos artistas locais obras coletivas que, para além do seu próprio interesse, fomentassem a miscigenação de duas culturas. E escreve:
Chamo desde logo a atenção para o "mimodrama" La Femme et son Ombre, de que Claudel, no pós-guerra, aquando duma reposição com nova música de Alexandre Tcherepnine (Ballets de Roland Petit, Théatre Marigny, 1948) se recordará com divertida nostalgia de que o mesmo outrora lhe merecera «no mundo das gueixas e dos artistas, uma agradável popularidade».
... No Verão de 1922, Yamanouchi recebera, de meios ligados ao teatro kabuki, uma proposta de reposição, em Tokyo, de L´Homme et son Désir, com argumento de Claudel e música de Darius Milhaud que, no ano anterior, fora criado em Paris pelos Balés Suecos e obtivera um êxito de escândalo, tendo a música de Milhaud suscitado "alguns protestos", e a nudez audaciosa e "soberba" do protagonista, o coreógrafo Jean Borlin, alguma agitação. A gente do kabuki pensava retomar o argumento claudeliano, mas confiar a recomposição musical ao maestro Yamada Kosaku que fora, em Berlim, aluno de Max Bruch, e desempenhava, de regresso ao Japão, o papel de propulsor do arranque da música ocidental. Admire-se, a talho de fouce, a qualidade da informação sobre a atualidade artística ocidental, inclusive as suas manifestações vanguardistas, tal como a rapidez de reação dos meios do teatro tradicional japonês nesses longínquos anos vinte [Os tais anos ditos loucos, lembro eu].
Creio que Claudel descobriu Nijinsky em 1917/18, no Brasil, onde o bailarino russo dava uma série de espetáculos com os Balés Russos, e o poeta diplomata se encontrava então colocado como secretário de embaixada. E o que descobriu foi um bailarino que nostrazia o salto, isto é, a vitória da respiração sobre o peso... Fascinado também pelo encanto da música de L´Après-Midi d´un faune, de Debussy, e em companhia de Darius Milhaud, logo se deixou tentar pela ideia de escrever um guião para uma peça de balé, L´Homme et son désir, levada à cena, em Paris, no Théatre de Champs-Élysées, em junho de 1921, com direção musical de Inghelbrecht. O guião de Claudel põe em cena um homem adormecido a sonhar com o fantasma da «Mulher Morta», à luz da lua e seus reflexos. Apaga-se o fantasma, acorda o homem para dançar a paixão: «é a dança eterna da Nostalgia, do Desejo e do Exílio, bailado dos cativos e dos amantes abandonados, e que, durante noites a fio, leva a marcar passo, de uma a outra ponta da varanda, esses seres febris que a insónia atormenta, ou os animais encerrados que se atiram, uma vez mais e outra, às grades intransponíveis»... (cf. LA Danse, Junho de 1921).
Como terá o público japonês em seu coração recebido esta obra que, vinda de fora dele, por ele tão aplaudida foi? E por que meditações, hesitações e trabalhos, terão passado os artistas nipónicos que se dedicaram, com o autor francês, a lhe descobrir e encontrar uma expressão musical e cenográfica que a traduzisse? Mais do que tentação do modernismo, gosto da moda e emulação talvez os movesse - e comovesse - esse desejo inato de comunhão universal, de participação e partilha que, por vezes demais, infelizmente esquecemos. No caso presente, a criação desta obra de Claudel, em língua japonesa, num teatro japonês e para uma assistência japonesa, foi certamente um ato amoroso e de aturada procura de entendimentos e correspondências, como aliás deveria ser sempre até a simples tradução de um texto literário. Logo veremos o seu como e porquê. E nos surpreenderemos com a complexidade e atenção ao pormenor que exige qualquer encenação intencional, atenta e cuidada.
O centenário de Ruben Andresen Leitão – Ruben A. (1920-1975) deve ser assinalado num conjunto de abordagens que envolvam a pluralidade da sua obra como escritor, como professor e como investigador da história e da literatura portuguesa: e aí acrescentando referências e evocações da atividade como docente e como representante da cultura portuguesa, designadamente no King’s College de Londres. Luis Francisco Rebello recorda aliás que, no desempenho essas funções docentes, Ruben levou à cena textos relevantes da literatura dramática portuguesa, de Gil Vicente a Miguel Torga.
Rebello cita a influência do teatro inglês na obra dramatúrgica de Ruben, realçando porém o toque surrealista da sua dramaturgia. E sublinha a relevância que essa influência assume sobretudo na peça “Júlia” publicada em 1963.
Refere então designadamente Maria Lúcia Lepecki quando diz que nesta peça «um certo mistério envolve as personagens que permanecem num constante movimento de revelar-se e esconder-se». A mesma comentadora realça a influência do modernismo do teatro inglês em geral e designadamente de T.S. Eliot em particular.
No estudo, que adiante identificamos, Rebello cita o conjunto da dramaturgia de Ruben Andresen Leitão: “ O Fim de Orestes”, “Júlia”, “Triálogo” e “Relato 1453”, esta gravada diretamente em fita magnética, de improviso, no ano de 1965 (in “100 Anos de Teatro Português” Brasília Ed. 1984. Cfr. do mesmo autor “O Teatro Simbolista e Modernista 1890-1939” além de numerosa bibliografia sobre história do teatro português e do teatro texto e espetáculo em Portugal).
Mas aqui acrescentamos as referências críticas de Luciano Reis, para quem é notória a influência do surrealismo na obra global de Ruben A.
Segundo diz então Luciano Reis, a permanência de Ruben em Londres «como professor de cultura portuguesa no King’s College fez-lhe despertar o interesse para o teatro, pondo em cena textos de Gil Vicente e Miguel Torga no âmbito universitário.
Para além de um breve apontamento dramático, “O Fim de Orestes”, datado de 1963, publicou no mesmo ano a peça em 2 atos e 4 quadros “Júlia”, notando-se nessa obra influência do modernismo no teatro inglês em geral e de T. S. Eliot em particular, segundo a análise de Maria Lúcia Lepecki» Já acima referimos esta influência.
E mais acrescenta Luciano Reis os títulos de duas peças inéditas, segundo diz: “Triângulo” e “Relatos 1453”, nomes que carecem de confirmação quando cotejados com a informação de Luis Francisco Rebello também acima referida, confirmação essa a que iremos oportunamente proceder. (Luciano Reis in “O Grande Livro do Espetáculo” ed. Fonte da Palavra 2010).
Mas seja-nos ainda permitido acrescentar que a qualidade literária de Ruben A é reconhecida e assumida pelos autores mais diversos. A sua relação e integração é reconhecida e consagrada por escritores de qualidade e prestígio hoje indiscutível. E que desde sempre marcaram a perspetiva da modernidade deste grande autor.
Voltaremos ao tema, mas parece-nos então oportuno citar David Mourão Ferreira, que em 1966 não hesita em sublinhar a “desenvoltura narrativa”, assim mesmo, de Ruben A.!
A noção de Justiça, traduz o que é Justo, no sentido de um Bem Supremo, um Bem Maior, acima do Direito e da Lei, a medida e o fim último do Direito, a fonte ou ideia que o deve inspirar. A justiça, no seu todo, não pode ser apreendida a partir dos seus elementos isolados, não sendo a sua simples adição, sendo aqueles interdependentes, pois além das caraterísticas que os particularizam, apresentam propriedades comuns, porque submetidos às leis que caraterizam a totalidade. Somos todos iguais no que se refere à nossa natureza e dignidade comum, bem como quanto a todos os direitos e liberdades fundamentais, como o direito à vida e à integridade física. A que acresce, de modo recorrente e anual, o vírus igualitário da gripe, sem esquecer, na nossa vivência atual, o vírus da não-discriminação do coronavírus, propagando a epidemia do igualitarismo. Mas também somos todos diferentes. Somos desiguais quanto às nossas aptidões e capacidades físicas, sociais, profissionais, políticas, criativas, inventivas, intelectuais e tantas outras. Daí a justiça, por definição, não ser forçosamente igualitária. A justiça é também, na sua essência, discriminatória. Nem sempre é mau discriminar, sendo-o imperioso em certas situações. Impedir, para professor, um analfabeto, não é cometer uma injustiça. Não aceitar, para atleta de salto à vara, um paralítico, é injusto? A não-aceitação, como modelo, de uma pessoa atarracada, é iníquo? É injusto recusar um deficiente mental como acompanhante, cuidador ou tutor? Pratica-se a injustiça quando se distingue e discrimina o que é igual, mas não quando se diferencia o que é diferente, atribuindo a cada qual o que lhe compete, não só em função da sua dignidade como pessoa, mas também das suas caraterísticas pessoais quando associadas ao reconhecimento de uma específica função social. Somos todos iguais na nossa dignidade e unidade comum como seres humanos, mas todos diferentes na nossa diversidade. Há que dizer não à ditadura do igualitarismo e da mera discriminação arbitrária pela negativa.
- Como tem sido para a senhora e seu marido o suportar deste confinamento?
- Pois, para nós o confinamento não tem custado.
- Ah!, não? Tem-nos parecido que ninguém gosta.
- Bem, no início fomos na onda, digamos assim, do horror de ficar em casa, íamos ao supermercado uma vez por semana, e vínhamos logo para casa. Mas afinal não era mau.
- Não era mau? Deixaram de fazer a vossa vida normal, deixaram de usufruir da vossa liberdade, dos vossos costumes, dos vossos prazeres, já para não falar do medo da doença…?
- Pois o medo da doença tocou-nos fundo e toca-nos – e também nos toca o medo de outras doenças - mas quanto ao confinamento, chegámos à conclusão que já vivíamos confinados, e não nos tínhamos dado conta que a situação até já estava batizada por essa palavra.
- Como assim?
- Olhe, nós somos reformados. O meu marido é engenheiro, mas devido a um problema de coluna, teve de antecipar a reforma e ela é baixinha, e eu trabalhava em Alcoitão e já me reformei, também com pouco, face ao que auferia, que era pouco.
- Alcoitão?
- Sim, lá no local onde as impossibilidades se tornam, às vezes, desconfinamentos de futuros. Trabalhei muito lá, e acreditando sempre que se eu não desistisse dos meus doentes, eles teriam êxito. Era fisioterapeuta. Mas voltando ao confinamento. Sabe?, nós falámos aqui em casa - o meu marido e eu - e decidimos ir ao supermercado, mas todos os dias, durante e após a pandemia para fingirmos que vivemos mais desconfinados. Entende?
- Como assim?
- O que eu quero dizer é isto: como pode imaginar as reformas baixas não dão para almoçar fora, nós nunca almoçamos fora, também não dão para viajar, nós nunca viajamos, nem cá dentro. Também não dão para irmos ouvir concertos de que tanto gostamos. Ir ver montras, às vezes, sabe bem, mas não temos disponibilidades para adquirir algo só pelo gosto de ter esse bem connosco, e, fica-se um pouco triste. Também não saímos de metro, pois o meu marido fica com medo dos empurrões e pode ficar pior da coluna. Andar de táxi, é caro, só se temos de ir ao médico. A Caixa é longe daqui. Resumindo: íamos ao supermercado uma vez por semana para adquirir o essencial, e não nos tínhamos dado bem conta de que é precisamente o que fazemos agora com o confinamento.
- Ah! Daí a decisão de irem todos os dias ao supermercado, agora e depois da pandemia?
- Sim. Havia muito mais para dizer, mas é isso. Resumindo, é isso. Tudo isto foi um modo de concluirmos, mais exatamente, que a nossa liberdade já era confinada.
- Disseram-me que tinham filhos, eles não participam num jeito de vida melhor, para vós?
- Bem, é assim: os nossos filhos têm mais de trinta anos e se for preciso queixam-se de nós não os ajudarmos financeiramente, mas eles a nós, nem que seja para estarem connosco à beira-rio, não têm tempo. São bons filhos, mas é assim que pensam. Pensam neles. E nós atenuamos o impacto disto em nós, ou pintamos cor no que se vive agora dentro deles. Até os elogiamos quando falamos com outras pessoas. Dizemos que estão bem na vida e são inteligentes, etc., essas coisas. Nós nunca imaginámos que nos confinariam assim. Para eles, fazerem conversa connosco e companhia no estarmos juntos, é amputar muito tempo do seu mundo. Ou seja, para eles basta a mera regra a cumprir nas festividades. Eles desconfinam do grupo no Natal. Vêm aqui e não se demoram, e sempre levam algum…mas eles amam-nos, pode crer! Mas é assim.
- Então o confinamento nem sequer alterou o vosso estado psicológico? Nem o usar máscara vos incomodou?
- O meu marido, um dia, até me disse: ó Laura já ninguém nos ouvia antes e agora é mais difícil; as máscaras até são boas a clarificar certas coisas. Eu não transmito o vírus dos problemas ou da tristeza que incomode os outros; os outros, ou fingem que não têm problemas, no olá como estão, nós ótimos, ou, com a ajuda da máscara, escondem algum sorriso de felicidade, o que é bom para eles, não vá terem de dividir com alguém, um vírus positivo.
- Obrigada. Obrigada pela entrevista que me concedeu.
- Ah!, ó senhora jornalista, é verdade, escreva que estamos bem, não temos covid 19, ou julgamos não ter, não temos esperança nem medo, o que é fantástico face a tanta tragédia por aí.
Claro que precisamos da devida “distância social” e do confinamento apropriado e, evidentemente, também e sobretudo, da máscara. Para preservarmos a saúde, a nossa e a dos outros. Podemos contagiar-nos uns aos outros e somos responsáveis uns pelos outros. Quem é cristão tem uma razão suplementar para isso: segundo os Evangelhos, um dos interesses e preocupações maiores de Jesus foi a saúde das pessoas. Por isso, não entendo aquele debate à volta da comunhão na mão ou na boca, havendo quem invoque razões para a comunhão na boca. Sempre fui contra a comunhão na boca, pois só damos de comer na boca às crianças. Agora, ainda mais se impõe a comunhão na mão, por causa da preservação da saúde. Ah!, e para quem continua a propugnar a comunhão na boca: não é verdade que provavelmente há línguas mais sujas do que as mãos?
Mas não foi este tema que me motivou hoje. A questão é mais funda. O que provoca a minha reflexão de hoje são outros confinamentos e outras máscaras, ficando a crónica de hoje para os desconfinamentos e a da próxima semana para os desmascaramentos. Desconfinados e desmascarados.
1. Como a gente se sente mal no confinamento! Mas, ao contrário do que pensamos, andamos e somos demasiado confinados, no sentido de auto-centrados, e, por isso, pobres, se não paupérrimos. Afinal, na contradição de nós. Vejamos.
Uma vez, uma antiga aluna pediu-me para ir à escola onde agora lecciona, para fazer uma palestra sobre o umbigo, esperando ela que fosse falar sobre o egoísmo, o individualismo. Cheguei lá e fui mostrando aos jovens que é verdade que essa expressão de “voltado, voltada para o seu umbigo” é vulgarmente usada com esse sentido. Mas em contradição com o próprio umbigo. De facto, o umbigo é em nós a marca biológica de que não vimos de nós, vimos de uma relação, não somos a nossa origem.
Outra vez, uma outra estudante queria uma nota melhor. Para isso, até escreveu um trabalho sobre ética. Na defesa, perguntei-lhe: “Se houvesse uma única pessoa no mundo, como seria um tratado de ética?”. E ela: “Nem sequer se punha a questão ética, porque essa ‘pessoa’ não sabia que era ser humano.” E teve a boa nota que queria.
É isso: somos seres humanos com e entre seres humanos, fazemo-nos uns aos outros e uns com os outros. Quem não ouviu falar no menino-lobo, que viveu sempre com lobos e que se comportava como lobo, que não sabia falar? É isso: depois do nascimento, precisamos de um “segundo útero”, até, pelo menos, adquirirmos a posse da palavra, tornando-nos então verdadeiramente humanos. Talvez percebamos agora melhor, no meio do confinamento, a falta que fazem as creches para a socialização e crescer saudavelmente, e as escolas, não só para aprender as matérias de ensino, mas aprender, na presença física e na interacção, essa que é a nossa tarefa primeira: irmos sendo homens e mulheres, adultos, autênticos, livres. E o que se pôde observar com as pessoas de idade, confinadas, sem visitas, como se estivessem encerradas em autênticos “jazigos vivos”? Quem se fecha sobre si morre, melhor, já está morto. Porque a vida é comunicação, comunicação de todo o tipo: pelo olhar, pelo toque, pelo afecto, pela palavra, pelos silêncios, pela ressonância...
Sem tu, não há eu, constituindo um nós. A identidade pessoal é sempre atravessada pela alteridade. O outro, os outros, fazem parte da minha identidade: que seria eu sem eles? E, quando falo dos outros, estou a falar dos que conheço e de todos os que não conheci nem é possível conhecer: aí estão, do ponto de vista biológico, os bisavós, os trisavós, os tetravós... — até onde? e com todos os cruzamentos pelo caminho... Mas estão igualmente presentes todos aqueles e aquelas que me influenciaram, que eu, por exemplo, li..., e aí estão romances, obras de literatura, de filosofia, de teologia..., que fazem parte de mim, que sou eu, sem dar por isso. Somos sempre o resultado de uma herança genética e de histórias e encontros (e desencontros) culturais... De tal modo é assim que muitas vezes me pergunto: se tivesse encontrado outras pessoas, se tivesse frequentado outras escolas e universidades, se não tivesse tido as oportunidades que tive e algumas ousadias na descoberta do mundo..., seria eu? Sim eu, mas de outro modo. Como? Tantas possibilidades em aberto...
O paradoxo é este: é na abertura a tudo, ao Infinito, que o ser humano toma consciência de si como único, na intimidade mais íntima. Nisto, nos distinguimos dos outros seres, ascendendo. Uma pedra, por exemplo, tem relação com o que a rodeia, mas numa ligação pétrea, exterior. A árvore já lança raízes e a sua relação com o que a rodeia já é viva, a árvore tem a vida chamada vegetativa. Um cão rafeiro passeia-se por muitos lados e, portanto, o nexo de ligações é muito mais amplo, já tendo consciência de si, não consciência de que é consciente, evidentemente, mas alguma consciência, que o faz distinguir-se dos outros. O ser humano, esse, está em relação com tudo: com o que está perto e com o que está longe, com o real, mas também com o imaginário, com o possível e o impossível, com o que há e com o que não há, com o hipotético, está em ligação com todos o seres, com o Ser, com os mais próximos, com todos os que o precederam, na história do universo, e, recuando, atravessa o quando não havia vida e depois se passou ao vivo, e depois, na evolução constante, se avançou para o erectus e para o sapiens e o sapiens sapiens e vai até ao Big Bang e, aí chegado, ainda pergunta porque é que há algo e não nada, pergunta pelo Fundamento último e pelo Sentido último de tudo. É nesta abertura que, paradoxalmente, o ser humano vem a si, reflectindo sobre si mesmo como um eu único, consciente de que é consciente, numa unicidade indizível, até para si próprio. Cada um e cada uma podem e devem dizer a si mesmos, para bem e para mal: “Nunca houve nem haverá na História alguém como eu.” Este é o enigma e o mistério do ser humano, de tal modo que somos uma questão imensa, irresolúvel, para nós próprios, já que não é possível conhecermo-nos completamente a nós mesmos, porque não conseguimos objectivar-nos totalmente. Somos uma subjectividade que não é completamente acessível a si própria: não podemos ir à janela ver-nos a passar na rua... Quer dizer, por mais que objectivemos de nós, para nos conhecermos, nunca nos objectivamos plenamente, pois somos uma subjectividade que se retrai a uma total objectivação.
Não há dúvida. Somos constitutivamente relação. Não somos primeiro nós, que, num segundo momento, entramos em relação. Somos sempre em relação, de tal modo que ser e ser em relação se identificam. Relação com os outros, relação com a natureza, relação com a Transcendência, com Deus. É assim que, em tensão, vimos a nós como centros pessoais, cada um, cada uma em autoposse e liberdade, liberdades que se reconhecem mutuamente com igual dignidade.
P.S. Quando se trava um combate por vezes heróico contra a pandemia, querer voltar ao Parlamento com a eutanásia é, no mínimo, uma falta de pudor.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 7 JUN 2020