Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Não sei que vos diga. Há sinais contraditórios. É verdade que a crise pandémica como situação assimétrica vai ultrapassando, pelo menos aparentemente, a sua expressão mais dramática. Mas a primeira lição que poderemos tirar, é que deixamos de poder estar descansados. A cada passo pode surgir um qualquer morcego e com ele um vírus traiçoeiro e tudo pode começar de novo, mesmo sem falar das hipóteses de segundas e terceiras vagas. Há dias, lendo o testemunho de um médico atingido pela Covid-19, verifiquei duas coisas: a primeira é que qualquer atraso pode ter consequências fatais (como aconteceu em Itália e Espanha), a segunda é que ninguém está imune à fatalidade. O vírus ataca todos, ainda que, democraticamente, escolha aleatoriamente uns mais do que outros. Tanto podemos ter os assintomáticos (que alegremente transmitem a enfermidade), como os ligeiros e ainda os severos – que de um dia para o outro, mesmo fazendo-se fortes são prostrados com violência e vêem-se na iminência de passar para a eternidade. Se no auge da pandemia e do confinamento, havia vozes que prometiam tudo ir mudar – depressa percebemos que “de boas intenções, está o inferno bem cheio”… Agora, subitamente, depois do desconfinamento e perante uma aberturazinha, eis-nos diante da ideia imprudentíssima de que tudo já passou e de que temos um escudo protetor contra os vários perigos que nos imuniza. Puro engano! Os riscos mantêm-se, talvez atenuados, mas a redução do perigo só acontecerá se mantivermos as medidas protetoras – máscaras, distâncias, prevenção constante… E sobretudo prudência. Ninguém está imune, em nenhuma idade – a peste continua a pairar. Como li algures na imprensa italiana, pela boca de Walter Veltroni: “a nova fase significa trabalho. Significa reconstruir as condições de uma nova fase de desenvolvimento, fundada no ambiente, no saber, nas infraestruturas materiais e na digitalização. Significa que, acabada a emergência mais grave, os fundos que gastaremos não devem ser uma nova página de assistencialismo de massa, mas um fluxo de recursos guiado por uma visão estratégica e moderna de uma nova realidade que haverá de nascer desta crise”. Seria o melhor se assim fosse, mas temo que tudo fique na mesma… Senão vejam três ou quatro coisas: Deixámos de fazer o que era menos essencial, mas ninguém deu pela falta; fomos obrigados a encontrar solução para o que não podia deixar de ser feito; reduzimos o desperdício e a poluição – mas é verdade que houve coisas essenciais que ficaram por fazer. O quê? O serviço e o cuidado dos outros exigiam esforços adicionais, que ficaram aquém do desejável. E houve mortos. O medo ocupou excessivamente as nossas vidas. Muitas lições da peste ficaram por tirar. Por isso, Veltroni tem razão. As desigualdades agravaram-se e os mais fracos foram os mais prejudicados. Eis por que tem de haver aprendizagem e temos de encontrar novas formas de estar próximos do próximo, mesmo com a prudente distância. Não há aprendizagem sem proximidade. A distância é sempre um recurso excecional e transitório. Não resisto a citar um livrinho que escrevi há já bastantes anos e que tinha o título algo esotérico “Para o Estudo do Paradoxo de Zenão – Aquiles e a Tartaruga”: “Ora vejam bem a dificuldade que o mestre grego teve em explicar aos seus peripatéticos discípulos que logicamente nunca Aquiles poderia vencer a pobre tartaruga. Todos responderam em uníssono que só um passo de Aquiles permitiria ultrapassar a pachorrenta tartaruga e que, nem o povo se deixaria enganar por essa patranha, uma vez que a fábula de Fedro permitia que a Tartaruga vencesse a Lebre, porque esta se deixou dormir, tão segura estava de que iria vencer sem a mais breve das dificuldades. Distingamos assim as coisas: a tartaruga venceu a lebre realmente, porque esta mandriou, não podendo esquecer-se que só alcança em porfia. Também têm razão os alunos zombadores quando usam o senso comum para dizer que a passada de Aquiles é muito maior do que os movimentos da tartaruga. Mas agora vem o segredo maior. É que Zenão também tinha razão – porque a pergunta dele partia de um se. Se nós compararmos logicamente a caminhada da tartaruga e os passos de Aquiles para atingirem a meta, dividindo sucessivamente por dois o que falta para atingir o objetivo, nenhum dos dois vai atingir a meta, ou seja, nenhum vai vencer, por que as operações para os dois percursos são infinitas. E a verdade é que são mesmo. Tal passa-se também com a flecha que nunca chegará ao alvo se (e só se) nós formos sucessivamente dividindo por dois a distância que nos falta até ao destino. Tem razão Fedro, têm razão os meninos zombadores e tem razão o matemático. Não podem misturar-se as coisas. Afinal, a lógica reserva-nos grandes surpresas. Se a lógica da fábula prevalecer, se o senso comum dos jovens dominar ou se o problema de Zenão for compreendido tudo está certo. Alguém pode provar que existe o luzeiro que avista na noite limpa de Verão no firmamento? Não só não pode, como pode já não existir esse luzeiro há milhões de anos. O que há é uma ilusão ditada pela lentidão da velocidade da luz. E no entanto a luz vê-se, apesar de há muito estar apagada. O mesmo no confronto entre Aquiles e a tartaruga. Não estamos a perguntar se Aquiles vence, mas se algum dos dois pode atingir o destino se procedermos à operação lógica que Zenão nos propôs”. E eis-nos chegados ao meu ponto de agora. Nesta crise paradoxal, temos de compreender que nada vai ser como até aqui. Julgávamos que a penicilina e as vacinas conhecidas nos protegiam contra todas as ameaças. No entanto, regressámos aos tempos da Peste, porque um vírus migrou de um morcego para o bicho homem – o que não era suposto. Mas aconteceu. Tudo era mais simples se o vírus ficasse sossegado no morcego. Como tudo seria mais simples se Zenão nos estivesse a falar do senso comum e do que é normal. Mas o vírus fugiu do morcego e Zenão fez-nos analisar o confronto de Aquiles e da Tartaruga em duas operações da lógica abstrata… Na imagem que apresento Corto Maltese pensa no que pode vir a acontecer. Ninguém sabe. Eis-nos, pois, a pensar na incerteza e a tomar consciência de que até a natureza que nos rodeia pode ser destruída pela nossa estupidez…
Frei Henrique Pinto Rema, O.F.M., foi quem permitiu ao mundo conhecer melhor Santo António de Lisboa (c.1195-1231), proclamado Doutor da Igreja Universal, através da Carta Apostólica do Papa Pio XII - «Exulta Lusitania Felix». Na semana em que celebramos 789 anos da morte do Santo, recordamos o labor extraordinário do seu biógrafo.
DOUTOR DA IGREJA Não há palavras para agradecer o trabalho do Padre Pinto Rema. Sobre Santo António falamos da personalidade que levou mais longe a cultura portuguesa – ainda que, infelizmente, a sua obra seja pouco conhecida, apesar da sua riqueza. A cultura erudita ignorou a figura de Santo António de Lisboa durante muitos séculos, esquecendo a riqueza do seu pensamento e o papel fundamental que desempenhou no franciscanismo. O ano de 1946 e a proclamação do Santo de Lisboa e de Pádua como Doutor da Igreja foi um marco fundamental para lançar luz sobre a sua figura. Contudo, não foram portugueses os pioneiros na descoberta de tão importante figura da cultura europeia. Foram Cantini, Scaramuzzi e Heerinkx que começaram a dar uma especial atenção à obra deste português que se tornou elemento crucial na organização da Ordem dos Frades Menores, por indicação expressa de S. Francisco de Assis. De facto, estamos perante o prenúncio do papel que irá ser desempenhado na história da Ordem dos Frades Menores por S. Boaventura – o grande teólogo. De facto, muitos dos temas aprofundados mais tarde são indicados muito cedo nos Sermões do português. Falando ainda de Santo António, anote-se que a primeira impressão dos Sermões coube ao labor de Iadoco Badio Ascensio, em 1520. Há, no entanto um contraste entre a grande popularidade do taumaturgo, pela enorme fama granjeada em Itália, em Portugal e por toda a Europa, e o conhecimento da sua obra e da sua importância. Aliás, só em 1970 surgiu em português a primeira tradução integral da sua obra, graças à iniciativa e à persistência do Padre Henrique Pinto Rema, O.F.M.. Apesar de tardiamente, encontramos entre os portugueses, alguma atenção relativamente recente – João Ameal, Padre Domingos Maurício, S.J., Joaquim de Carvalho, Sousa Monteiro, mas sobretudo Francisco da Gama Caeiro e Maria Cândida Monteiro Pacheco (autora de «Santo António de Lisboa – A Águia e a Treva», INCM, 1986), além de Pinto Rema. Apesar de uma tão pouco compreensível desatenção, não há dúvidas de que Frei António é uma referência indiscutível na afirmação da cultura portuguesa desde muito cedo depois da Reconquista cristã e da criação do reino independente. Com razão, Jaime Cortesão refere o papel fundamental do franciscanismo na História da gesta portuguesa. Outros autores insistem nesse ponto, invocando expressamente o papel desempenhado por Frei António, como Agostinho da Silva e António Quadros.
DE AGOSTINHO A FRADE MENOR Fernando Martins, também conhecido como Fernando de Bulhões, nasceu em Lisboa, onde iniciou a sua formação com os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, no Convento de S. Vicente de Fora, no qual esteve dois anos incompletos, partindo depois para Santa Cruz de Coimbra, onde estudou na mesma Ordem durante cerca de oito a nove anos. Fazia-se sentir a decisiva influência do primeiro Prior, S. Teotónio, braço direito do nosso primeiro rei. O prestígio académico de Coimbra precedeu, assim, o funcionamento do Estudo Geral, podendo dizer-se que a qualidade reconhecida ao futuro santo português é a demonstração da grande pertinência do ensino ministrado. Nesta fase da formação, notamos um especial apego à Regra de Santo Agostinho, a partir de três princípios: obediência, humildade e caridade. Todavia, esta sólida e completa formação teológica não vai impedir que espiritualmente Fernando se vá aproximando da força inovadora das novas ordens mendicantes, através de uma mística centrada na pobreza, o que o levará de Santa Cruz até ao eremitério dos Olivais, ainda em Coimbra, sob a nítida influência do «Poverello» e da trágica memória dos mártires de Marrocos, apesar de adotar o exemplo de Santo Antão. E assim encontramos a vasta cultura agostiniana transmutada para o ideal franciscano, o que leva o agora frei António até Itália. Quando S. Francisco de Assis conhece o português e verifica qual é o seu carisma e a solidez dos seus conhecimentos, incumbe-o do ensino da Teologia aos frades menores – numa carta fundamental, que a moderna historiografia considera autêntica. Estamos perante uma ligação teológica da maior importância, centrada no agostinianismo, que articula intelectualismo e misticismo no entendimento da Teologia como ciência prática – acentuando o papel da vontade e a necessária articulação de uma sensibilidade claramente aberta ao mundo e à singularidade pessoal, num horizonte global. Nesta perspetiva, o pregador afirma-se com um indiscutível carisma, que S. Francisco considera ser fundamental para a afirmação e consolidação dos Frades Menores, usando o método da pregação em que os dominicanos se haviam celebrizado e diferenciado. Quando nos confrontamos com o magistério de Frei António, verificamos serem os «Sermões Dominicais e Festivos» aqueles que constituem o núcleo autêntico de uma notável produção.
O OLHAR DO CORAÇÃO… O que caracteriza a criação de Frei António? Textos impregnados de citações bíblicas, pressupondo um conhecimento exaustivo das Escrituras e uma memória prodigiosa e invulgar, capaz de garantir a sua articulação no sentido de uma pregação motivadora. E os autores citados confirmam e reforçam a solidez da fundamentação: Santo Agostinho, S. Bernardo, S. Hugo, Ricardo de S. Vítor, além de Orígenes e Gregório de Nissa. O naturalismo e o humanismo encontram-se numa «síntese dinâmica» entre a influência do autor de «Confissões» e a vocação do cultor de uma fraternidade assente na pobreza e na ligação à Natureza. É a edificação das Almas que está em causa. De entre os temas místicos, destacam-se o sentido da humildade, a discrição, a sublevação e a alienação, bem como os das asas, do voo da alma, a transmutação dos sentidos espirituais, o significado do «oculus cordis» (o olhar do coração), do «intuitus», e sobretudo a articulação mística da nuvem, da treva e da noite, num sentido que aproxima Santo António da mística peninsular de Santa Teresa de Jesus e de S. João da Cruz. Diz-nos o franciscano: «o ferreiro, assim chamado por fazer ferro, é o pregador da Santa Igreja, que fabrica armas espirituais. Tem de sentar-se junto da bigorna, que é o estudo e o exercício da Sagrada Escritura, a fim de se exercitar naquilo que prega… Também os pregadores devem primeiro exercitar-se no ar da contemplação com o desejo da felicidade celeste, para depois mais avidamente serem capazes de alimentar-se a si e aos outros com o pão da palavra de Deus». Nesta passagem, é o método de Frei António que surge definido, tendo suscitado o completo apoio de Francisco de Assis. E a ideia surge reforçada e clarificada: «Que alegria maior pode existir no espírito do homem do que estar diante dEle, pelo qual e no qual tudo o que existe verdadeiramente existe, sem o qual tudo o que parece existir nada é, e tudo o que abunda é pobreza?». Aqui encontramos a chave da originalidade franciscana – na procura da dignidade pessoal, no sentido da fraternidade, na troca de dons, na vivência espiritual da pobreza, na compreensão do outro, na procura de tudo o que a irmã Natureza tem para nos dar e nós para lhe atribuir… Mas os Sermões de Santo António, longe da abstração, contêm um voz severa e crítica contra os falsos profetas, os hipócritas, os padres avarentos, os prepotentes, os ladrões, os luxuriosos, os bispos indignos, os monges que fazem do deserto um palácio, do claustro um castelo, da solidão uma corte real – e ainda os leigos presos de todos os vícios… Sem eufemismos, Frei António põe cada um perante as suas responsabilidades, exigindo aos cristãos que saibam dar o exemplo… Frei Henrique Pinto Rema revelou-nos esta preciosidade! Bem haja!
por meio da minha varinha mágica uno uma réstia de sol a um fio de chuva
Tentando manter o aspeto que Claudel pretendeu para a disposição dos seus versos em francês, traduzo em português uma das Cent Phrases pour Éventails, omitindo "apenas" a caligrafia dos kanjique o próprio poeta fez questão em traçar para exprimir vernaculamente o íntimo sentido do curto poema. É pois este um dos 100 (na realidade 172) reunidos naquela antologia, cujo autor tão bem assim prefacia:
É impossível para um poeta ter vivido algum tempo na China e no Japão sem considerar como estimulante o arsenal que ali acompanha a expressão do pensamento: o pau de tinta da China, primeiro, tão negro como a nossa noite interior; esfregamo-lo, borrifado de água, numa placa de ardósia e numa tacinha recolhemos o sumo mágico. Depois, basta nele molhar o pintor da ideia, esse pincel leve, quase etéreo, que, ao longo das nossas falanges do fundo de nós comunica a deflagração do poema. Alguns traços deliberados, tão firmes como os do inseto que, como longa broca, pela casca da árvore paralisa a presa invisível. Cuidemos apenas com levantar bem a nossa manga e precaver qualquer imprudente exalar da nossa narina que pudesse chocar com o sopro do espírito - e eis-nos em poucas palavras libertos do arnez da sintaxe e composta, sobre a brancura, somente pela simultaneidade, uma frase feita de relações! Escrita, digo eu, mas sobre quê? sobre o bojo, dessa olaria que, para nós, foi agora mesmo tirada do forno? - ou, melhor ainda, sobre essa asa que o leque é, pronta a propagar o sopro? Acolhe tu, na escuta do teu coração, essa palavra muda despachada por um hálito saído da mão!
[Fica-nos pensarsentir como o poema é uma respiração do corpo e da alma, a obra que só a união ontológica do corpo e da cabeça consegue produzir, e traduzir por um gesto natural e inconsciente da consciência. Gesto sempre mágico, pois apenas controlado pela sua própria secreta intimidade.]
O Cent Phrases pour Éventails é a coletânea que hoje, pela primeira vez ao fim de dezasseis anos, faço desses poemas, prontos para levantar voo neste nosso céu de França, depois de ter atrevidamente procurado misturá-los ao ritual dos enxames de haikai para que, no Japão, encontrassem a sua sombra. Quem me teria permitido - por certo não este pincel já vibrante no mais lasso das minhas falanges, nem este papel que se oferece, tão estaladiço como seda, tão tenso como corda no arco posta, tão fofo como o nevoeiro - resistir à tentação, ali tão ambiente em toda a parte, da caligrafia? Não sou, eu também, um especialista da letra? E a letra ocidental que, tal como pensada, se integra em palavras e em letras, não será ela, no gesto que a liga às suas vizinhas, algo tão animado e perentório como a sigla chinesa?
Não prolongarei aqui a tradução deste passo de Claudel, que poderá ser lido na íntegra no original publicado pela Gallimard em 1967 (Bibliothèque de la Pléiade: Paul Claudel - Oeuvre Poétique - pág. 697). Deixo todavia a sugestão de uma leitura atenta e reflexiva de um texto breve mas prenhe de inspirações essenciais a qualquer achega mais íntima desse real absoluto que Novalis descobriu na poesia.
Esta é fulcral na cultura clássica chinesa e na japonesa, em cuja literatura encontrou pistas e pausas novas de expressão e desenvolvimento. Tal qualidade da alma de uma cultura nem sempre é bem abrangida por tradutores, historiadores, críticos ou, simplesmente, gente de letras de outras origens. Sobretudo por aqueles que pouco resistem à tentação do recurso a nomenclaturas e ferramentas de análise próprias a culturas mais próximas das suas. Em Portugal, por exemplo, onde todas as obras editadas - de tradução, história, análise e "imitação" de haiku - não se alimentam de originais japoneses, mas vão beber a outras versões estrangeiras, quase sempre, aliás, com parca ou nenhuma informação sobre as fontes utilizadas e respetivas circunstâncias... Mas volto ao Claudel, para lhe pedir ajuda na abordagem pretendida, já que ele procurou até uma aproximação quase física - a prática da arte caligráfica - à escrita poética sínica e nipónica. Recorrerei agora a outro exemplo, o de um livrito de poemas editados em 1945, mas escritos por volta de 1936, creio que para uma conferência dada pelo autor, em Paris, sobre La Poésie Française et l´Extrême Orient, e então publicados, não sei se integralmente, na Revue de Paris: os Dodoitsu que, na edição em volume pela Gallimard, eram ilustrados a cores pelo pintor japonês Ricadu Harada. De acordo com Georges Bonneau, então professor no Institut Franco-Japonais no Japão, dodoitsu é um poema de vinte e seis sílabas (três heptassílabos e um pentassílabo final), modo natural de expressão da poesia camponesa japonesa: mas, testemunho humano de inaudita riqueza, fica a meio caminho entre a canção e o poema em ritmo fruste, curto de respiração, simplista na composição, demasiado fácil tecnicamente. Ao que se sabe, foram precisamente estas facetas populares que seduziram Claudel. Traduzo um trecho do brevíssimo prefácio que o próprio poeta escreveu em Março de 1944, para a edição em livro dos seus dodoitsu:
Estranha asa do poema! quando a canção ganhou voo, abandonado já o solo natal, quem dirá que feições, que reflexos ela será chamada a despertar em inesperados espelhos, que inspiração trará ao eco, que variações irá propor, numa qualquer riba distante, ao ouvido atento do pássaro trocista? Assim além, no Sol Nascente, sob os pés do camponês atrelado ao seu rodízio, do marinheiro içando a vela, ou no batimento rítmico do pesado malho que descasca o arroz, ou no embalo sonhador da jovem mãe (de pé calçado em curta peúga branca, ah!, mais do que o berço, é o bater do coração do seu menino que lhe transmite a sua pulsação!) nasce uma melopeia a que se vêm afeiçoar, como vindas delas mesmo, humílimas palavras. Do zumbido ingénuo, nativo, nasceu o dodoitzu, irmão rústico - mas a meu ver bem mais saboroso - do sapiente uta. Poucas linhas, alguns versos à medida de uma gorja de pássaro ou de elitro de cigarra. Um amador autóctone ouviu-os e transcreveu-os, da música nativa já só resta o resíduo verbal. Por sua vez, um estrangeiro, neste caso Georges Bonneau, professor no Instituto Franco-Japonês de Kyoto, interessou-se por eles, traduziu-os e fez uma antologia. E este acervo vem parar debaixo dos olhos de um velho poeta com longas estadias por lá, pelo país da Serenidade Matinal. [Abro aqui este parêntese, só para dizer que, nos anos em que estive acreditado no Japão e na Coreia do Sul, nunca vi tal designação ser referida ao primeiro, mas apenas, e tradicionalmente, à península da Coreia].
Vem-me à memória Michel Giacometti, corso e francês, que levou anos de vida a percorrer o Portugal rural que amava e a recolher tantos dodoitsu das nossas regiões. Graças a ele, conservamos o som e o sentido de muitas vozes que iam, em trabalhos, lazeres, festas e amores dos campos, exprimindo a alma das gentes que mais próximas viviam da relação à terra de Portugal... Quantas, tantas, dessas expressões já se calaram! Outras ficaram, algumas já de antes de Giacometti, como a do canto da mulher da Beira Baixa, cujo pisar faz rodar o rodízio da água de rega: temos o som e as imagens gravadas pelo corso, como a memória de uma canção de Coimbra que lhe reproduz a lírica e, na voz já morta de Edmundo Bettencourt, fiel, rezava assim:
Era ainda pequenina, acabada de nascer, inda mal abria os olhos, já era para te ver!
Quando um dia eu for velhinha, acabada de morrer, olha bem para os meus olhos, sem vida inda sei te ver!
Mas lembrado daquele dito de ser o Japão o país em que o contrário também é verdadeiro, deixo - em francês para não escamotear intenções, nem sequer rimas - estes dois dodoitsu compostos por Claudel sobre as respetivas transcrições já feitas por Bonneau:
L´eau s’en va de la rizière L´eau s´en retourne à la rivière Hélas! c´est comme l´amour! On ne peut pas s´aimer toujours!
Sous la neige qui commence La montagne a fait silence Mais sensible à l´eau qui court Le moulin tourne toujours!
Os sopros e aromas dos ares que respiramos, o murmúrio das águas, o sussurro das árvores, os silêncios e segredos da natureza nossa mãe, e a voz íntima do espírito em cada um de nós, tudo nos ensina, na serenidade do nosso acolhimento, bem mais do que uma ciência que não saiba a diferença entre ter e ser... Vou chamando cultura - muito heterodoxamente para a intelectualidade reinante - ao conjunto de referências que vão constituindo a nossa ecologia mental e espiritual... Não sei o que é essa "cultura" de que por aí tanto se fala, quer no sentido de qualquer arte que nos deva merecer atribuição de subsídios, quer no do que possa ser uma qualquer aprendizagem da primazia ou fundamentalismo de conceitos, estilos ou autores "indispensáveis ou insubstituíveis", espécie de indispensável erudição.
A cultura será então, em meu entender, tão somente, o exercício de diálogo do meu espírito crítico com outros. Cada um formado a seu modo e em seu tempo, é certo, mas sempre independente, não necessariamente das suas heranças e memórias, mas do confinamento (como está na moda dizer-se) aos seus próprios limites. Porque suficientemente forte e generoso para entrar nas liças que o desafiam. A cultura é um convívio, uma forma serena, construtiva, de confrontação. A capacidade laboriosa de aprendermos uns com os outros.
E já que falávamos de Claudel, tem aqui cabimento recordar o que o mesmo, então embaixador de França em Tokyo, disse no discurso proferido por ocasião da inauguração, em 14 de Dezembro de 1924, da Casa ou Instituto Franco-Japonês na própria capital do Sol Nascente, acentuando a ideia inspiradora daquela instituição e a de "conhecimento", palavra esta ali bem sublinhada pela sua carga claudeliana de "nascimento com" (co-naissance):
É muito importante conhecer os povos estrangeiros, mas sem esquecer que esse conhecimento não se adquire nos livros, nem, uma vez por todas, que os povos vivem, se modificam e desenvolvem, de modo que é impossível conhecê-los sem um íntimo e contínuo contacto com eles.
Voltarei a referir Claudel diplomata, quando escrever sobre os contactos desenvolvidos entre potências europeias (com relevo para a Alemanha, o Reino Unido e a França) e o Japão das eras Meiji e Taisho, anteriores à era Showa (imperador conhecido por Hirohito), período em que se afirmaram as forças militares e industriais nacionalistas que levariam o Império do Sol Nascente à catástrofe da guerra. Aproveitarei a oportunidade para incluir a figura coeva de um Portugal apagado. Por agora, e para não deixar a poesia, traduzo um Haikai, escrito em francês e inserido numa coletânea de poemas (todos em japonês) de poetas nipónicos, publicada em Dezembro de 1923, em memória do terrível terramoto de 1 de Setembro desse ano. O então embaixador de França foi o único estrangeiro convidado a participar. Recorda a sua própria experiência dessa noite em que se deslocava a caminho de Yokohama, para encontrar a filha de que estava sem notícias. Tal poesia ilustra, sem pretensiosismos, como é possível aculturar a expressão de emoções e sentimentos. Acrescento a lembrança de que Paul Claudel (ou Kuralodero, na fonética do apelido escrito em katakana, aqui reproduzida em romaji) deu a um tratado constitutivo do seu Art Poétique o título de Traité de la Co-naissance au monde et de soi-même. Passo ao haikai:
À minha direita e à minha esquerda uma cidade arde a lua entre as nuvens é como sete mulheres brancas. Com a cabeça em cima de um carril o meu corpo mistura-se ao corpo da terra fremente ouço a última cigarra. Sobre o mar sete sílabas de luz uma só gota de leite.
O recente falecimento, aos 81 anos, de Maria Velho da Costa (1938-2020), já foi devidamente referido pelo Centro Nacional de Cultura, tendo Guilherme d’Oliveira Martins assinalado a sua vasta obra e a colaboração que durante tantos anos prestou ao CNC. No texto então publicado, são aliás frequentes as referências não só a essas colaborações como designadamente à vasta obra criacional da autora e aos prémios e destaques que ao longo da vida lhe foram concedidos e amplamente justificados.
Nesse aspeto, deve salientar-se o Prémio Camões (2002) e o Prémio Vida Literária (2013). Mas independentemente destas consagrações/celebrações institucionais, o que sobretudo se destaca é a vasta e variada obra em si, e também o reconhecimento da qualidade literária e criacional ao nível das variadas expressões.
E reconhece-se a dimensão implícita de espetáculo da sua dramaturgia. Entre textos originais e adaptações e dramatizações, podemos agora citar designadamente uma curiosa teatralização de personagens “clássicos” da literatura portuguesa e brasileira, devidamente “cruzados”.
Referimo-nos à peça, “Madame”, datada de 1999, e resultante do cruzamento dramático de duas personagens consagradas das literaturas em língua portuguesa. Trata-se então da Maria Eduarda de “Os Maias” de Eça e de Capitu de “Dom Casmurro” de Machado de Assis.
E vale a pena referir designadamente que o potencial de teatralização de “Os Maias” chegou a inspirar o próprio Eça no sentido de uma adaptação à cena que acabou por não produzir. E também podemos acrescentar que a única expressão dramatúrgica concretizada de Eça é a tradução da peça “Philidor” (1863) de Joseph Bauchardez.
Em qualquer caso, é interessante evocar agora as reservas que Machado de Assis formulou à criação literária de Eça de Queiroz. O que não obstou a que, por ocasião da morte de Eça, a “Gazeta de Notícias” do Rio de Janeiro tivesse publicado, em 24 de agosto de 1900, uma evocação de Assis: “para os romancistas, é como se perdêssemos o melhor da família, o mais esbelto e o mais válido”, nada menos!...
Mas voltando à evocação de Maria Velho da Costa, há que salientar mais textos dramáticos que escreveu: citamos designadamente “Um Filho” e “A Vingança ou Boda Deslumbrante”. E ainda se referem sessões de textos dramáticos ou para-dramáticos.
Porque, no seu conjunto, a obra de Maria Velho da Costa exige uma continuidade de estudos e de pesquisa que irão sendo efetuados.
54. UTOPIA TECNOLÓGICA E ÉTICA NA NOVA CULTURA DA MÁQUINA
Basta uma avaria no computador ou no telemóvel, para percebermos como estamos literalmente dependentes das máquinas.
Por maioria de razão em tempo de pandemia e isolamento.
É como nos cuidados intensivos, sem essa união naufragamos.
A capacidade de resistência à frustração diminui, desfalecemos.
Indicia-se que a cultura do humanismo, em que a pessoa humana é o centro de tudo, está em decadência.
Emergiu e emerge um novo agente transformador: a máquina.
Emergiu e sobressai uma nova categoria de máquinas, que combinam regras, algoritmos, componentes aleatórias, cada vez mais autónomas e com vida própria, e não meras ferramentas controladas por nós.
Da robótica à inteligência artificial, dos bebés-robô aos drones, do telemóvel ao computador, há máquinas que avaliam a situação e tomam a decisão mais adequada. Muitas delas, inteligentemente criativas, como as impressoras 3D, criando e inventando coisas, solucionando problemas, associadas a uma mega capacidade inventiva.
Vão deixando de ser apenas funcionais e úteis, vivendo cada vez mais em simbiose connosco, escasseando a nossa autonomia e aumentando a nossa dependência.
Somos cada vez mais pessoas-máquinas.
Se é legítimo que somemos ao biológico o que há de melhor no artificial, numa espécie de fusão entre o natural e o que é produzido por mão humana, é imperioso que haja uma ética que imponha limites, quando já se prevê que a inteligência artificial venha a ler o pensamento humano.
A ser assim, qual a diferença entre a esfera pública e a privada?
Entre o disponível e o indisponível?
Entre o intimismo mais profundo, o que nunca partilhamos com o outo, nem queremos partilhar, e o que aceitamos comunicar com os outros em geral?
Ninguém sabe tudo, nem tem que saber, da mundividência sigilosa de cada um de nós, do nosso pessoal e intransmissível.
Onde fica o nosso segredo, o nosso refúgio particular?
Temos direito ao nosso mistério.
Faz parte da natureza humana.
Sob pena de ficarmos perante o desconhecido.
Estamos perante uma cultura nova que ainda não se afirmou em pleno, que tem de se expressar de modo a não colocar em causa as nossas liberdades mais essenciais e existenciais.
Com a transição da oralidade para a escrita, do virtual para o digital, evoluímos em termos civilizacionais, o que não significa que esse progresso seja sempre em linha reta, linear, sabendo-se da queda e fragmentação de muitas civilizações após o seu auge.
Uma caneta, um lápis, o saber escrever à mão, um livro, são coisas cada vez mais dispensáveis, para muitos, mas permanecem indispensáveis como património comum da humanidade, por analogia com uma cama, uma cadeira, uma mesa, que sempre existiram.
Evoluem com a evolução, ficando de arquivo da memória passada, mas também como reserva subsidiária e alternativa do presente e futuro.
Também aqui a ética e as humanidades têm de interligar-se e relacionar-se com toda a ciência para frear tal utopia.
Celebra-se hoje, na liturgia católica, a festa do Pentecostes, o acontecimento inaugural da Igreja cristã, que irradia luz fulgurante também para os tempos que estamos a viver, tempos de penúria e de noite, penúria no sentido do verso famoso de Hölderlin: “Wozu Dichter in dürftiger Zeit?” (Para quê poetas em tempo de penúria, indigência mais funda e abrangente do que a meramente económica?).
O Pentecostes apenas alcança a sua compreensão adequada em contraposição com Babel, o acontecimento mítico tão conhecido, descrito no livro do Génesis. É um mito, mas o mito transporta consigo uma verdade fundamental, “dá que pensar”, como escreveu o grande filósofo do século XX, Paul Ricoeur.
Diz a Bíblia que Javé, ao ver a maldade grande dos homens sobre a Terra, maldade que não deixava de crescer, se arrependeu de ter criado o Homem e se sentiu magoado no seu coração. Por isso, mandou o dilúvio, mas Deus renovou a sua aliança com Noé e com a criação inteira, aliança figurada ainda hoje, ainda que de forma ingénua, no arco-íris, unindo o Céu e a Terra. Mas um dia, continua a narrativa do Génesis, os homens disseram: construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris — desmesura — que os gregos também condenavam, porque arrasta consigo a maldição e a catástrofe. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem e unirem, guerreiam-se e matam-se na barbárie. Aí está o sentido bíblico da confusão das línguas.
Babel e a sua Torre é um mito de uma actualidade dramática. Note-se que em capítulos anteriores à narrativa da Torre de Babel o livro do Génesis fala do plano de Deus que quer que a Humanidade cresça e se multiplique em “povos que se dispersaram por países e línguas, por famílias e nações”. Assim, o que está em causa neste mito não é de modo nenhum a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas, que constitui uma riqueza. O mito põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de uns sobre os outros, na incapacidade do descentramento (desconfinamento, diríamos em linguagem actual) de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é uma advertência eloquente contra o desígnio de dominação.
Precisamente em contraponto, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no dia do Pentecostes, que hoje se celebra. “De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.” Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, “pois cada um os ouvia falar na sua própria língua”. Atónitos e maravilhados diziam: “Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!”
No dia de Pentecostes, que deve ser todos os dias, na sua intenção mais profunda — e cada vez mais tomamos consciência disso —, quando se percebeu que o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se... No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.
Na actual situação do mundo globalizado e terrivelmente ameaçado, em que a globalização tem sido sobretudo tecnológica e económico-financeira no quadro do neoliberalismo, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte — na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global, a pandemia acabou por agudizar a tensão e a rivalidade entre a China e os Estados Unidos — e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.
Dada a presente crise global, dramática, não se pode pensar em voltar à normalidade como se se tratasse apenas de, após um interregno, voltar à continuação da situação em que a deixámos. Não. Penso que já se percebeu que se impõe um novo macroparadigma de desenvolvimento e também nas relações entre os povos, incluindo a sua relação com a natureza — felizmente, a União Europeia está no bom caminho. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade.
São Paulo escreveu na Carta aos Gálatas: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos sujeiteis outra vez ao jugo da escravidão. Foi para a liberdade que fostes chamados.” Esta liberdade está fundada na filiação divina: “Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: ‘Abbá! – Pai!’ Deste modo já não és escravo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro, por graça de Deus.” “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher”. Agora, todos são livres. Assenta aqui a igualdade radical de todos os seres humanos – homens e mulheres. E o Espírito da liberdade é o Espírito do amor. Jesus disse aos discípulos: “Já não vos chamo servos, mas amigos.” E a razão é que não há amizade sem confidência e ele confiou-lhes o segredo mais íntimo de Deus: “Deus é amor incondicional”.
A Humanidade precisa de um novo Pentecostes, com a chegada do Espírito Santo, com os seus dons. Entre os dons do Espírito – eu fui ao catecismo à procura dos dons e dos frutos do Espírito Santo e também dos pecados contra o Espírito — encontram-se os dons da sabedoria, do entendimento e da ciência: o sábio tem o conhecimento profundo de Deus e julga todas as coisas na sua luz – também na Igreja, é necessário fazer mais apelo à sabedoria e à inteligência.
Quem vive no Espírito Santo, que é o Espírito do nosso espírito, recebeu também o dom do conselho: a luz do alto e do mais íntimo para as grandes decisões; o dom da fortaleza: a firmeza no caminho do bem; o dom da piedade: a ternura na relação com Deus e com os irmãos; o dom do temor de Deus: não é medo nem inquietação, mas princípio da sabedoria e sentido da responsabilidade.
O Espírito Santo e os seus dons produzem frutos. São Paulo escreveu: “Este é o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio. Contra tais coisas não há lei. Se vivemos no Espírito, sigamos também o Espírito. Não nos tornemos vaidosos, a provocar-nos uns aos outros, a ser invejosos uns dos outros. Se porventura alguém for apanhado nalguma falta, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão; e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado. Carregai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo”.
O fruto mais excelente do Espírito é o amor unido à benignidade, à bondade, à fidelidade e à mansidão — “na tarde da vida seremos julgados pelo amor”, escreveu São João da Cruz. Com o amor vem a alegria – vejo hoje demasiada tristeza. A paz é a tranquilidade na ordem: há paz quando há justiça e tudo vai bem dentro de nós, com os outros, com Deus e a criação. A paz interior dá força à paciência, que não é resignação. O autodomínio mantém a pessoa íntegra para si e na sua entrega aos outros.
Afinal, de que Espírito somos? Uma forma eficaz de responder é responder a outra pergunta, talvez mais concreta: cometemos pecados contra o Espírito Santo? Entre esses pecados — pecar é coisificar a pessoa —, contam-se: “ter inveja das mercês que Deus faz a outrem”, “contradizer a verdade conhecida como tal”, “obstinação no pecado”, “desesperação de salvação”. Temo o perigo da escravização própria e alheia — escravização pelo ter, pelo hedonismo, pelo espectáculo (não era na sociedade-espectáculo que estávamos a viver?) —, perigo do afundamento no lamaçal da mentira, contradizendo a verdade conhecida como tal, da inveja, da obstinação no pecado e, em tempos de niilismo, da vertigem da desesperação.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 31 MAI 2020
Esta foi uma crónica escrita num tempo em que se podia ir ao cinema. E em que se podia ir aos bares. Um tempo em que havia uma boémia descomandada, desregrada. Trago esta crónica de volta, amarrada, quase amordaçada, no dia em que me dizem que já se vai poder ir ao cinema. Talvez a um bar. Desde que não se vá, como faziam Francis Bacon e Lucian Freud, a cavalo.
Hoje não vou ao cinema. Iria, se me prometessem que lá estavam Francis Bacon e Lucian Freud. Digo-vos quem são. São dois tipos que se revoltaram contra o futuro. Haverá quem diga que são ou eram dois pintores e eu, com a arrogância dos ignorantes, insisto: eram dois tipos sentados pantagruelicamente no presente. Comiam o presente, embebedavam-no e fodiam-no como quem respira, desvairado. Jogavam nas corridas, andavam à porrada, mergulhavam em champagne e caía-lhes o corpo exausto nas cavalariças, ao lado dos cavalos que tanto amavam.
Se eram amantes? Se isso não meter sexo, eram. Bacon, descendente do filósofo homónimo e empirista, era homossexual dia e noite, com vincada preferência por homens mais velhos que lhe arriassem forte e feio. Freud, neto do seu psicanalítico avô, era mais novo treze anos e preferia afundar-se na primordial e perlada fonte feminina. Caroline Blackwood, mulher de Freud durante parte dos anos de vida louca com Bacon, dizia: “Jantei quase todas as noites do meu casamento com Bacon. Ah, e também almocei.”
Sim, gostavam de jogar nos cavalos, de se atirar sem rede para os bares do Soho e frequentar vigaristas, ladrões, putas, chulos e mais gente prendada, mas o cimento dessa vida gelatinosa era a paixão pela pintura figurativa que cultivaram como flor de preço.
Ora lembrem-se: aquele tempo era um tempo que prometia arte abstracta para toda a santa e imóvel eternidade. E Bacon, primeiro, e Freud com ele, sentaram-se no presente, com o passado entre as pernas, pintando retratos de pessoas, nus com chapéu, papas aos gritos, meninas com cão branco, a carcaça de um boi no talho. Tenho de dizer: estilhaçaram o raio do futuro. Ainda há dias, seis anos, que interessa, o “Três Estudos de Lucian Freud”, em que Bacon pintou o amigo num delicado equilíbrio de luz e ouro, atingiu o francamente estúpido recorde de 120 milhões de euros, o que, a meu ver, já é mesmo gozar e humilhar o futuro.
Na arte e nas noites do Soho, e ai de quem veja alguma diferença entre uma coisa e outra, o que os uniu foi um paradoxal optimismo niilista. Tinham os músculos carregados de energia, de uma força nietzschiana, amoralíssima. Queriam, por junto, luxo e luxúria: pintavam, comiam, bebiam, esmurravam e eram esmurrados como quem faz amor. E eu, hoje, afinal, já nem preciso de ir ao cinema.
Maria Velho da Costa, designadamente em “Casas Pardas” (1977) e “Myra” (2008), é uma das escritoras da segunda metade do século XX que melhor contribuiu decisivamente para a renovação da língua e da literatura portuguesa pela valorização da palavra.
UM MODO ESPECIAL DE ESCREVER Se eu escrevesse de escrever não escreveria para ser entendida. Há para isso correios, telégrafos, até falar” – é Maria Velho da Costa quem o afirma no início de Cravo (1976)… De facto, se há escritora contemporânea que pretende escrever mais do que simplesmente escrever é a autora de Missa in Albis (1988). E escrever de falar é, no fundo, cuidar da palavra no sentido de ser entendida. Por isso, Maria Velho da Costa era apaixonada pelo falar comum, como daquele homem em Santa Apolónia que explicou de onde e como chegava o próximo comboio. A língua é essencial para a afirmação das identidades, mas também para enriquecer, pelo diálogo, as culturas e civilizações. É verdade que os povos primitivos criaram diferentes línguas para poderem preservar os seus segredos, mas sem novos vocábulos e novas experiências as línguas esmorecem. Germano Almeida diz-nos que tem duas línguas, sendo a primeira o crioulo. “Nós em Cabo Verde devemos estar preocupados com o uso da língua portuguesa. É isto que tento transmitir. Temos de dominá-la bem, porque nos põe em contacto com o mundo. A língua cria proximidades. Eu quero transmitir a cultura cabo-verdiana, a vivência cabo-verdiana em português. Posso dizer que é uma língua estranha. Utilizo-a como uma ponte entre culturas”. Segundo Ivo de Castro, “a história da língua portuguesa pode ser resumida numa frase: falamos uma língua que nasceu fora do nosso território e cujo futuro será em larga medida decidido fora das nossas mãos. A língua portuguesa, numa visão temporal ampla, acha-se de passagem por Portugal”. Quando falamos da língua portuguesa, consideramos uma longa história a partir do galaico-português, referimos uma língua antiga, que cedo alcançou uma assinalável maturidade, certamente em virtude do rei D. Dinis, na linha de seu avô Afonso X, o Sábio, tê-la tornado cedo língua dos tabeliães em lugar do latim, o que favoreceu a afirmação do idioma como modo de comunicar do povo e dos letrados. E é importante deixar claro que, de facto, o português ou o espanhol nunca foi dialeto um do outro, sem prejuízo de um encontro entre ambos por volta de 1400, no momento do ofuscante esplendor da cultura vizinha. A partir da matriz galega, temos uma diversidade de influências, como dos moçárabes, principal veículo transmissor de um grande número de vocábulos árabes para o nosso léxico pela parte bilingue da população, além dos caracteres próprios adquiridos com a cultura quinhentista. Quando hoje relemos os “Cantares Gallegos” de Rosalia de Castro (1863) depressa nos apercebemos de onde vimos como língua. “Minha terra, minha terra / Terra donde m’eu criei, / Hortinha que quero tanto, / Figueirinhas que prantei. // Prados, rios, arvoredos, / Pinares que move ó vento, / Passarinhos piadores, / Casinha do meu contento…”.
LÍNGUA DE VÁRIAS CULTURAS Como disse Rui Knopfli, a língua tenderá a ser um denominador comum de vários espaços africanos, asiáticos, brasileiros, europeus numa espécie de “pátria coincidente”. E para compreender, basta lermos a literatura da língua portuguesa contemporânea. Cultura de várias línguas. Língua antiga, língua moderna sempre em movimento. Lemos Camões na lírica e é nosso contemporâneo: “Descalça vai para a fonte, Leonor pela verdura / vai formosa e não segura…”. Ouvimos Vieira, e está ao nosso lado: “Arranca o Estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe…”. Encontramos Manuel Bandeira: «A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil»… O Dia Mundial da Língua Portuguesa, este ano comemorado pela primeira vez a 5 de maio, é uma responsabilidade de todos. O Embaixador António Sampaio da Nóvoa salientou-o melhor que ninguém no seio da UNESCO. E se falamos de uma língua viajante com presença em todos os continentes, temos de lembrar Eduardo Lourenço a dizer: “mais importante que o destino é a viagem”…
O CENTRO DA PALAVRA… Há dias, deixou-nos Maria Velho da Costa. É uma das grandes escritoras contemporâneas (sobretudo quando fala em desescrever). Maria Velho da Costa trouxe-nos na sua obra algo que nos permite compreender o mundo à nossa volta com gente de carne e osso, demonstrando, como fez em Myra (2008) “que há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja”… Se falamos da língua portuguesa, temos de afirmar que para a autora de Maina Mendes (1969) e de Casas Pardas (1977) antes da literatura está a força da palavra. Quando a lemos, entendemos bem como uma língua viva se centra na força e na vitalidade da expressão. Por isso, em sua homenagem, citamos o testemunho da sua amizade com Sophia de Mello Breyner. “Falávamos de noite, no alpendre quase morno, sem tom nem som. Nenhuma das duas era desesperadamente musical. Não havia música nem nos fazia preciso. Falávamos mais de todos do que de tudo; de tudo eram a arte e a poesia – nem política, nem mundos a mudar. Não era a prudência de pertencermos a fações políticas diferentes. Era a força da indiferenciação da noite, quando as mulheres falam. Falávamos de amores, de filhos. De amigos e desamigados. Desse mundo ginecêntrico e caótico, onde tínhamos ambas de manter aparências. Brilhávamos na meia obscuridade como as estrelas que se viam no céu limpo, mortais e imortais, pese a solenidade. Porque não eramos solenes (…) As estrelas reuniam-nos e aplacavam-nos debaixo do alpendre de heras, onde ressuscitavam as osgas do torpor do inverno”… Maria Velho da Costa representa uma relação única com a criação literária, preocupada com o modo de comunicar a vida, mais do que cuidar do tratamento formal. O seu inconformismo e as aproximações a Agustina e Nuno Bragança estão bem presentes na obra romanesca e ensaística. E assim procura ligar pessoas e acontecimentos a uma reflexão emancipadora. Estamos perante uma escritora que desde cedo se foi revelando como uma extraordinária cultora da renovação da língua – desde logo na tradução, sendo exemplar o modo como tratou a riqueza espiritual de Simone Weil… Tem, pois, razão Luísa Costa Gomes quando insiste no facto de estar bem viva a escritora, sendo a melhor homenagem a fazer-lhe a sua leitura.