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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

LIX - VIAGENS, VIAJANTES E O FATOR LÍNGUA (I)

 

D. Dinis, em plena Idade Média, ao mandar plantar o pinhal de Leiria, queria matéria prima para uma marinha forte e eficaz, nomeando almirante mor do reino o genovês Manuel Pessanha, ato tido pelos historiadores como um dos seus feitos fundamentais, daí saindo madeira para as futuras viagens marítimas. Fernando Pessoa chamou-lhe “plantador de naus”. Um estratega, que para além da fundação da universidade portuguesa, decretou o uso do português nos documentos públicos, mandando traduzir obras valiosas do hebraico, árabe e outros idiomas. Nas viagens por mar não iam só os seus protagonistas, viajando consigo outros viageiros que os ultrapassavam em longevidade, como a língua, a cultura e a religião, sendo dos três o mais relevante a língua, na sua qualidade de companheira e intérprete constante dos outros dois.

 

A língua “era a companheira do Império”, na opinião de António de Nebrija, atribuindo tal função ao castelhano, ao publicar, em 1492, a sua “Grammatica Castellana”, o que pode ser extensivo à língua que os navegadores portugueses transportavam, neste caso a portuguesa.

 

No mesmo sentido se pronunciou o primeiro gramático português Fernão de Oliveira, na sua “Gramática da Linguagem Portuguesa”, em 1536, mantendo-se seguidor da linha imperialista de Nebrija, ao defender que os portugueses deviam atuar como os gregos e os romanos, que tinham assegurado a coesão do Império devido à difusão obrigatória das suas línguas. Duarte Nunes de Leão, na obra “Ortografia e Origem da Língua Portuguesa” (1576), na última quarta parte do século XVI, associando às navegações, descobrimentos e conquistas dos portugueses a difusão e utilização língua portuguesa, escrevia que ela “tão puramente se fala em muitas cidades de África que ao nosso jugo estão sujeitas, como no mesmo Portugal, e em muitas províncias da Etiópia, da Pérsia e da Índia, onde temos cidades e colónias, nos Sionitas, nos Malaios, nos Maluqueses, Léqueos, e nos Brasis, e nas muitas e grandes ilhas do Mar Oceano e tantas outras partes”. Também as gramáticas de Pero de Magalhães Gândavo (1574), Amaro Roboredo (1619) e de P. Bento Pereira (1666), desempenharam um papel crucial na fixação do nosso idioma.

 

Com a língua chegou às antigas colónias portuguesas da América, África e Ásia, toda uma matriz de cultura lusa, que iria, ao longo dos séculos, em contacto e mistura com o elemento local, criar culturas variadas e individualizadas, sem prejuízo dos seus traços de origem, que se desdobrariam posteriormente em afetos, afinidades, cooperação, permutas e conflitos.

 

Para além do poderio militar e naval dos portugueses na era de quinhentos, conhecedores, inclusive, de armas de fogo, inicialmente desconhecidas para os povos que inicialmente descobriram, colonizaram e dominaram, também o português contribuiu decisivamente como língua de conhecimento, comunicação, afirmação e unidade desses mesmos povos, com especial incidência em África e na América.

 

Numa análise dos elementos substantivos da cultura africana e indígena do Brasil, conclui-se, desde logo, serem compostas por elementos folclóricos (danças, canções e os trajes de cada região), em conjugação com uma visão peculiar do homem e da natureza, em que o plano do humano e do natural se articulam numa harmonia animista de índole ecológica.

 

Atento a natureza oral de tais culturas, pode-se dizer que o seu ponto fraco e perigo de não resistência residia predominantemente nessa mesma oralidade, operando as línguas pela palavra falada, instantânea e momentaneamente dita, ao invés da que era falada e escrita, fixa em livros, que influencia quem a fala e lê, com natural tendência para ser imitada e divulgada como uma linguagem organizada.

 

31.07.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

Quem testemunhara as primícias da doença?

 

Só se sabia que alguém ao aproximar-se sentira a iminência do vigor da morte.

 

Sabe-se também que uniu as letras e dali fugiu, então, a correr, num passo aflitivo sem ideia de o parar.

 

Ante o que vira, estranhava agora, o fato de estar vivo, e ainda que de rosto no chão, a desfalecer, sabia que não tinha sido infetado, assim lhe diziam as seguras palavras antigas do conhecimento: era imune.

 

Os novos vírus enfurecidos abraçavam primeiro as cidades, antes de correrem aldeias e mundo em abraços de nó cego.

 

A área da epidemiologia esclareceu, que eles, os novos vírus, não se deixavam aprisionar e que as criaturas, nunca se moveriam mais rápidas do que eles, ou, elas mesmas, não fossem as portadoras-ninho, onde eles, de vontade, se aninhavam.

 

Intrigante achado este, o de saber que as criaturas eram em si os vírus, apesar de amáveis e muitas vezes afáveis até em extremos.

 

Deste modo, todos eram testemunhas em causa própria das primícias da doença. Todos temiam o inevitável contato consigo mesmos.

 

Machos ou fêmeas, afinal malditos cães e cadelas, uivavam, quem afinal cuidará de mim? Escravos, eunucos, quem cumprirá as nossas ordens? E assim bradavam contra vivos e mortos que se negavam a servi-los, enquanto, nos vírus deles próprios, um furor letal.

 

Às vezes, soube-se, as criaturas paravam e olhavam-se, de olhos revirados, soltos, sem noção verdadeira da extensão da catástrofe, e iniciavam uma marcha em todas as direções, ignorantes de que tinham a doença no abraço de si, e, que deles próprios, não saberiam o como do início de uma debandada.

 

Amontoavam-se os cadáveres insepultos. O pânico impunha as condições. O caos era senhor.

 

Algumas criaturas voaram nos seus próprios aviões numa fuga que incandescia de imediato e desaparecia sugada pelos buracos negros, enquanto outros ponderavam rezar, fazer quarentenas, peregrinar, e a coberto do caos, negociar a vida.

 

Esta era a doença na sua primeira erupção.

 

Foi quando se começaram a declarar casos isolados de criaturas de grau de infecciosidade mais baixo, que, enfim, se descobriu o imune, de rosto no chão, quase arrebatado de entre os mortos, e era o tal que unira as letras.

 

Inexplicável facto, este, de entre todos, imune. De entre todos, a esperança. E nunca a sua responsabilidade fora maior: assim pensou, ainda de rastos a ler no chão.

 

Mas qual o matiz da diferença? Qual o motor que nele não ignorou o dever de resistência e de interpretação? Seria esta uma desigualdade natural? Sem pertencer a grupo, e era imune?

 

E fora, afinal, o estado de conhecimento que o fizera unir as letras em completude.

 

Esta a chave do inexplicável primordial: a vacina nas cores de Sandro Botticelli, testemunhas, e afinal primícia do grande segredo que pode jorrar da humanidade. 

 

Teresa Bracinha Vieira

PAZ ENTRE AS RELIGIÕES, PAZ ENTRE AS NAÇÕES


1. A Basílica de Santa Sofia, em Constantinopla/Istambul, inaugurada pelo imperador Justiniano no século VI e dedicada a Cristo, Sabedoria de Deus, foi durante quase mil anos o maior templo cristão, impondo-se pela sua beleza e majestade. Muitos que lá entraram e contemplaram a cúpula, com 55 metros de altura e 30 de diâmetro, e o Cristo Pantocrator a olhar do alto disseram ter feito uma experiência do Céu.

A sua história tem sido atribulada. Foi realmente durante quase um milénio (537-1453) o santuário mais significativo da cristandade; a seguir ao Grande Cisma (1054), tornou-se a igreja mais importante dos cristãos ortodoxos, que os católicos, no tempo das cruzadas, conquistaram e dominaram (1204-1261); depois, durante quase 500 anos (1453-1931), tornou-se, com a conquista de Constantinopla, a mesquita “imperial” mais importante do islão, tendo Constantinopla passado a chamar-se Istambul, pois era tal o esplendor e a força de Constantinopla que não se dizia “ir a Constantinopla” mas “ir à cidade” (em grego: eis tên polín). Em 1931, depois da dissolução do império otomano,  Mustafá Kemal Atatürk, fundador da Turquia moderna, como sinal da laicidade do Estado, dessacralizou-a e transformou-a num “museu oferecido à Humanidade”, aberto ao público em 1935 já com os vitrais e os ícones cristãos, que tinham sido cobertos com gesso, porque o islão proíbe as imagens, e, em 1985, declarado património mundial da Humanidade pela Unesco. O actual presidente da Turquia, Recep Erdogan, decretou, no passado dia 10, que voltasse a mesquita, recomeçando a ser lugar de oração a partir de ontem, dia 24. Entretanto, o Governo turco assegurou que terá os mosaicos com imagens cristãs tapados durante as orações e que continuará aberta ao turismo, nacional e estrangeiro, com entrada gratuita (até agora, as visitas rendiam 50 milhões de euros anuais).

 

2. As reacções à reconversão em mesquita por Erdogan choveram de todo o lado. A Grécia, a Unesco, a Rússia, os Estados Unidos manifestaram inquietação. O governo grego foi dos primeiros a reagir, qualificando a decisão de “provocação ao mundo civilizado”. O Papa Francisco, logo no dia 12, na oração do Angelus, disse: “O meu pensamento vai para Istambul, penso em Santa Sofia e sinto muita dor”. É natural que os cristãos ortodoxos se exprimam de modo mais contundente, pois Santa Sofia é simbolicamente para a Igreja ortodoxa o que São Pedro é para os católicos. Assim, a Igreja da Grécia, antes ainda da reconversão, lembrou que Santa Sofia é uma “obra-prima, mundialmente reconhecida como um dos monumentos eminentes da civilização cristã. Toda a mudança provocará um vivo protesto e a frustração entre os cristãos de todo o mundo, e prejudicará a própria Turquia.” Sua Beatitude Jerónimo II, arcebispo de Atenas, qualificou a decisão de “insulto à ortodoxia, ao cristianismo em geral e a toda a pessoa sensata”, instrumentalizando a religião para conveniências partidárias, geopolíticas e geoestratégicas. A Igreja ortodoxa russa antevê que possa ter “graves consequências para toda a civilização humana”. O patriarca Cirilo de Moscovo declarou que “uma ameaça a Santa Sofia é uma ameaça ao conjunto da civilização cristã.” O Conselho Ecuménico das Igrejas, que reúne 350 Igrejas cristãs no mundo, exprimiu o seu “pesar e consternação”; para o seu secretário-geral, I. Sauca, Santa Sofia era uma bela prova da “ligação da Turquia à laicidade”. A França “deplorou” a mudança, enquanto a Unesco poderá rever o seu estatuto, considerando “lamentável” a decisão tomada “sem diálogo nem notificação prévia”.

3. Sempre que se fala em religião/religiões vem inevitavelmente à mente a declaração célebre do teólogo Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, sem um ethos mundial.”

Condição essencial para a paz entre as religiões e  para que haja liberdade religiosa é a laicidade do Estado, a não confundir evidentemente com laicismo. O Estado não pode ser confessional, não pode ter nenhuma religião, precisamente para garantir a liberdade religiosa de todos. Erdogan, porque está a perder poder, quer apoiar-se nos sectores mais islamistas e ultranacionalistas. De facto, como disse o turco Ohran Pamuk, Nobel da Literatura, “esta reconversão é dizer ao resto do mundo que, infelizmente, não somos um Estado laico”. Deste modo, acabou por dar um duro golpe no diálogo inter-religioso, que tem a sua prova de verdade no combate comum pela paz, pela justiça, por aquele ethos que Hans Küng refere e que está presente no documento histórico, a que aqui me referi amplamente, “A Fraternidade Humana”, assinado em Abu Dhabi pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã da Universidade Al-Azhar, no Cairo. Não há dúvida de que, transformando Santa Sofia em mesquita e aliando religião e nacionalismo, Erdogan “pode criar um terreno fértil para a intolerância religiosa e a violência”, alertou a Conferência de Igrejas Europeias.

Erdogan foi perigosamente muito longe, ao celebrar, no discurso oficial em árabe —a referência não é mencionada nem na versão em turco nem em inglês —, esta reconversão como um primeiro passo de um “renascimento” islâmico, que deve ir de Bucara, no Uzbequistão, a Al Andalus, Espanha: ele “é o símbolo do regresso do sol nascente da nossa civilização islâmica”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 JUL 2020

O CHINÊS SOLITÁRIO

 

Donde saiu o chinês? Filas deles balançam carris e constroem as grandes linhas férreas que hão-de ligar Leste e Oeste. O chinês é uma multidão no cinema americano, longa fila apeada que antecede o primeiro comboio.

 

E não é! O chinês no cinema foi o “homem amarelo” de Griffith. David Wark Griffith, pai fundador do cinema, inventou o chinês no cinema, como já tinha inventado o homem negro, que pintou vicioso e insurgente em “The Birth of a Nation”.

 

Em 1919, no lírico “Broken Blossoms” que em português foi um “Lírio Quebrado”, o chinês era a corola opiácea a fechar os braços para proteger de abusos vitorianos a menina branca. A menina era Lilian Gish e Griffith desenhou-a a traços pré-rafaelitas.

 

É numa China a sépia que começa “Broken Blossoms”, uma China idílica, de chás e fumos, China contemplativa e mística. Desse fundo ronronante sai o yellow man que se arroga a missão de levar a mensagem de bondade budista aos bárbaros anglo-saxónicos.

 

Anos mais tarde, ainda não vimos Lilian Gish, reencontramo-lo num bairro sórdido de Londres, encolhido de frio à porta da sua encantada loja dos trezentos. A nuvem de ópio que o cerca ajudará, mas a verdade é que conserva a mesma gentileza nirvânica nesse rosto que Griffith pintou mais amarelo por ser o de Richard Barthelmess, actor branco que era tudo menos chinês.

 

Passaram 18 minutos de filme e da névoa azulada do rio surge Gish. O cinema mudo também tinha paciência de chinês e hão-de passar outros 18 até vermos que o homem amarelo viu Lilian Gish, a menina que não é capaz de sorrir. Ela tem uma boca de pena, uns olhos de medo. Sorri como quem chora e tem razão para isso: o pai é pugilista, bêbedo, mulherengo, e faz dela o saco de socos das suas frustrações.

 

Um dia, quase morta de pancada, foge. O corpo cansado leva-a para a loja do chinês. Nesse primeiro verdadeiro encontro deles há um bailado de olhares que se querem e se recusam. Mil preconceitos na loja dos trezentos.

 

O chinês cobre-a de sedas azuis e amarelas, lírios para os cabelos tristes de Gish. E a mão dela, sozinha, mais tolerante do que a sua tão bela cabeça de teias vitorianas, acaricia a face do homem amarelo. “What makes you so good to me, Chinky?” é o que bem vemos Gish dizer ao seu salvador. E vemos os olhos de Barthelmess, actor branco, a semicerrarem-se para serem mais chineses e gozarem a glória de estar o Oriente a abrir, em Gish, uma pequenina porta de Ocidente.

 

Mas nas ruas dessa deprimida Londres há punhos de rancor e vingança prontos a esmurrar qualquer pretensão de final feliz. “Broken Blossoms”, filme da entrada do Oriente pelas portas do Ocidente, termina em fúria e fria morte: um chinês solitário atravessa o nevoeiro ocidental com um inútil cadáver ao colo. Talvez Griffith fosse um profeta.

 

Manuel S. Fonseca

A VIDA DOS LIVROS

De 27 de julho a 2 de agosto de 2020

 

A Guerra e Paz publica de Bernard-Henry Lévy “Este Vírus que nos Enlouquece” (2020), que constitui uma oportuna reflexão sobre um tema atual e profundamente perturbador, que deve ser refletido, para além dos lugares comuns.


QUE CONFINAMENTO?
Muito se tem dito sobre o “confinamento” e sobre as medidas excecionais de preservação da saúde pública perante a estranha pandemia que nos assalta. Hoje sabemos, que além das mortes ditadas pelo vírus, houve muitos outros efeitos que sacrificaram vidas humanas, como a solidão, a violência doméstica, o isolamento e o medo – e, infelizmente ainda iremos ter no futuro mais ou menos próximo outros efeitos negativos. Veja-se o tema da escola e da educação, e compreenda-se que a distância é exatamente o contrário do que se pretende na aprendizagem. Teremos, afinal, de regressar rapidamente à socialização educativa. Como há pouco disse: «Se queremos melhor democracia, temos de dar tempo ao tempo, para que a reflexão não seja substituída pela manipulação. É verdade que o ensino, no seu conjunto, pode sair da pandemia mais preparado para aproveitar as tecnologias e as novas correntes de aprendizagem, mas temos de cuidar dos que não podem ser abandonados, favorecendo a criatividade e a cooperação pessoal. No dilema saúde / economia, o valor fundamental é o da vida, da existência, da liberdade, da igualdade e da fraternidade… O capital social e a confiança obrigam ao que Adela Cortina designa como “amizade cívica” (El Pais, 16.5.2020). Só com esta estaremos mais preparados para afrontar próximas epidemias e ameaças de destruição da humanidade…». No livro de BHL todos os alertas são dados. O ambiente de confinamento é malsão e não pode ser aceite de forma passiva ou indiferente. Não esqueçamos que o “confinamento” italiano foi uma palavra mussoliniana. Confinavam-se as vozes críticas e a oposição para criar bolhas autossuficientes em ilhas ou lugares escolhidos para evitar que as ideias perigosas se espalhassem. Eis por que o filósofo considera indispensável não tornar esse um método normal. Mas há o risco para a vida das pessoas em virtude da presença do vírus. É verdade. Importa adotar soluções inteligentes que nos permitam lidar com o perigo e controlar o medo. Temos de formar crianças conscientes de que não irão viver num mundo assético. Têm de estar preparadas. Temos de regressar à lealdade do aperto de mão como sinal de confiança mútua. Não se esqueça que esse hábito nasceu para dizer que não há armas e que podemos estar seguros uns com os outros. E assim as pessoas mais lúcidas têm de falar, dando confiança e delineando caminhos que preservem a autonomia e a responsabilidade, a segurança e a amizade. Importa dizer: a pandemia não terminou, mas está a ser controlada. Visa-se reduzir efetivamente uma segunda vaga, havendo para tal capacidade médica e hospitalar. Importa, pois, substituir o discurso do medo, pela racionalidade e pela criação de condições para que as máscaras, a higiene das mãos e as distâncias prudentes reduzam a transmissão da doença. Dar sinais de que não há epidemia é criminoso, como é absurdo criar um ambiente de culpa e eleger bodes expiatórios. Se há quem diga que estamos numa boa ocasião para o combate da globalização e do capitalismo, estamos a assumir a mesma atitude medieval contra as grandes epidemias, como se uma qualquer providência estivesse por trás de uma maldição.

 

UM CAMINHO PARA DIANTE…
Se o ritmo da descoberta dos tratamentos e das vacinas pode ser mais rápido e resultar da cooperação internacional, tal deve-se à globalização, não tenhamos dúvidas… Aproveitar a morte e o drama humano para defender uma agenda ideológica é inaceitável. Temos de romper com a tentação de tirar partido de um desastre. Qual a atitude inteligente? Importa viver com mais sobriedade, como nos ensinou a última crise financeira, devemos consumir menos, racionalizar o uso dos transportes, no entanto a frugalidade e a proteção do meio ambiente organizam-se, não se decretam. O experimentalismo social e um novo malthusianismo limitam a cidadania e a liberdade. Não há contradição entre a saúde e a economia. Temos de evitar que a vida destrua a vida. Se pararmos a economia e se não definirmos uma estratégia de melhor utilização dos recursos, teremos mais desemprego, mais fome, mais desigualdade e menos desenvolvimento. Os cientistas não são os novos oráculos de Delfos, são importantes agentes na estratégia humana, mas caminham, como nós, no nevoeiro. Importa mobilizar a sociedade toda. Urge haver partilha de responsabilidades. Importa evitar o abuso de autoridade, onde quer que ele se manifeste. E o certo é que a manipulação do medo leva a pôr em causa a autonomia e a liberdade. O trabalho a distância pode ser bom se houver melhor conciliação familiar, melhor utilização do tempo na vida das pessoas, mas é negativo se favorecer a solidão, o tédio e se levar à incompreensão das fronteiras entre o público e o privado ou à espionagem eletrónica dos empregados pelos patrões.

 

UMA METÁFORA PERIGOSA
Diga-se ainda que a metáfora da guerra é perigosa. Há um vírus, há uma doença, não há uma guerra. Ao contrário do combate do tráfico da droga ou da existência de um inimigo externo, o vírus não tem uma intenção, nem uma vontade. É verdade que há medo. Temos, assim, de saber lidar com ele. Não podemos deixar que os poderes do Estado e da economia ocupem o espaço da cidadania e dos direitos humanos. Não devemos deixar que o medo se torne pânico, limitando a inteligência e a vida humana. Nesse sentido, BHL faz nesta obra um discurso contra a servidão voluntária. A cidadania e a democracia têm, deste modo, de se aliar contra a tomada dos espaços públicos pelos Estados e pelas grandes redes como Google, Amazon, Facebook e Apple… O “Big Brother watching us” tem de ser prevenido. A proteção dos dados pessoais não pode tornar-se uma burocracia inútil e opressiva. Como se mede a liberdade? Na medida em que protegermos a vida privada ou o segredo de que somos detentores. Haverá outras epidemias depois desta, e não poderemos deixar que segmentos da democracia se percam. Por exemplo, espiritualidade e higienismo não podem confundir-se… O distanciamento social preventivo não deve ser sinónimo de fragmentação social. O distanciamento que gere indiferença e torne as pessoas abstrações põe em causa a organização da sociedade e a vida democrática, conquistada ao longo de décadas. Eis o que está em causa… Martha Nussbaum tem, aliás, analisado este tema na perspetiva do “cosmopolitismo”, considerando este como “um nobre e imperfeito ideal”, pela necessidade de ligar o interesse geral e interesse próprio nacional. E o certo é que o empenhamento de cada um no seu país precisa da consideração da proximidade e a compreensão do interesse geral assumido como defesa da dignidade de todos em qualquer parte do mundo…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL


Iniciaremos a 1 de agosto o folhetim de Verão que intitulámos “30 Boas Razões para Portugal”. Mas, ao delinear a escrita, verificámos que há muito mais do que 30 boas razões para uma Lusitana Paixão. Contudo, porque os dias com que vamos contar são 30, mais coisa menos coisa, vamos fazer uma ginástica especial, para encontrarmos trinta motivos fundamentais que signifiquem boas razões… E o leitor dileto perguntará se só vemos boas razões. Não. Mas o motivo fundamental deste folhetim são as razões que nos levam a ter saudades de Portugal quando estamos longe, e a procurarmos o que nos liga a uma identidade tão especial, que morre e estiola quando se fecha e que tem tanto a ver com a abertura e o cosmopolitismo. E a língua que falamos expandiu-se mundo afora. De facto, temos mil defeitos, cultivamos o escárnio e o maldizer, temos a tendência para a boa anedota e o picaresco, mas temos características que conhecer, para podermos ser melhores. Eduardo Lourenço, num tom sério, fala de “maravilhosa imperfeição”, António Tabucchi elegeu, um dia, para escândalo de alguns, Maria Parda como símbolo bem português, e ainda Mestre Gil dá-nos em Todo o Mundo e Ninguém no Auto da Lusitânia, o retrato bem português do nosso carácter complexo (Almada desenhou-os como gémeos), Diogo do Couto, no “Soldado Prático”, lembrou o mau administrador lusitano como aquele que na ânsia de pôr a impressão digital na história, nada constrói, e Rafael Bordalo Pinheiro tornou-nos Zé Povinho e Maria Paciência. Todos têm razão. A imperfeição é uma marca de responsabilidade. E este sentido crítico é fundamental, até porque, muitos se admiram quando os nossos compatriotas dão cartas nas suas andanças pelo mundo. Fizemos coisas extraordinárias, não em nome do improviso, mas com base no trabalho e na persistência. Somos um país de nove séculos porque persistimos e não pelo que desistimos. Mas não somos um povo eleito, apesar de termos razões para nos gostarmos. Não somos nem melhores nem piores que outros. Temos muito para fazer, para construir. Veja-se, quando encontramos, em toda a parte, um português, viajante do mundo. E percebemos logo que tem a ver connosco, mesmo que seja muito diferente de nós. Alexandre O’Neill bem disse que somos tanto melhores se não nos levarmos a sério. Mas somos remorso de todos nós. Os nossos melhores exemplos têm a ver com essa capacidade de ser exigentes e críticos. Almada Negreiros nos painéis da Rocha do Conde de Óbidos descreveu-nos magistralmente, na elegância das varinas, na criatividade dos saltimbancos e no humor dos Robertos. Será possível entendermo-nos sem colocar lado a lado os painéis de Nuno Gonçalves e os de Almada Negreiros? D. Fuas Roupinho completa o Infante D. Henrique, a “Nau Catrineta” prepara-nos para não sermos traídos pela falsa glória das promessas demoníacas. Fernão Mendes Pinto da “Peregrinação” é a personificação do português do mundo andarilho, enquanto o nosso vizinho D. Quixote vive o drama de querer deixar de ser um mito, para ser apenas Alonso Quijano, que Sancho recusa. De facto, somos contraditórios por definição. Alternamos entre julgarmo-nos melhores e ser piores, entre ser “heróis do mar” e herdeiros do milagre de Ourique e cair nas ruas da amargura. Jorge Dias fala-nos do Português como misto de sonhador e de homem da ação, combinação de muitos elementos. E encontra quatro pilares no génio criador português: Os Lusíadas, os Jerónimos, o políptico de Nuno Gonçalves e os Tentos na criação musical de Manuel Coelho… Outras referências poderiam ser feitas, nos diversos domínios. Importa, porém, entender “um povo paradoxal e difícil de governar. Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a égide do momento”.   

AINDA O CENTENÁRIO DE BERNARDO SANTARENO

 

Na semana passada referimos os 100 anos do nascimento de António Martinho do Rosário (1920-1980), desde logo enfatizando o muito que o teatro português ficou a dever a este notável dramaturgo: e é oportuno então lembrar que a obra literária foi divulgada a partir do pseudónimo de Bernardo Santareno. Pois a verdade é que esta tendência para “esquecer” os valores indiscutíveis da nossa cultura, e (talvez) sobretudo no que respeita ao teatro, tendem a ser eles próprios esquecidos: quem se lembra de assinalar a relevância da dramaturgia de Santareno, cumpridos os exatos 100 anos do seu nacimento? 

 

Em qualquer caso, parece-nos então oportuno referir que Carlos Porto, no seu relevante estudo intitulado “O TEP e o Teatro em Portugal – Histórias e Imagens” publicado pela Fundação Eng. António de Almeida dedica a Santareno uma sucessão relevante de citações que, no conjunto, representam uma análise interessante desta dramaturgia. Note-se que a sigla TEP significa precisamente Tetro Experimental do Porto.

 

Ora, independentemente da relevância dramatúrgica de Santareno em si mesma considerada e da sucessão de peças que diversas companhias puseram em cena, para já não falar nas editoras e nos escritores e críticos que o evocam, tem interesse recordar, a partir pois da análise de Carlos Porto, que Santareno estreou-se como dramaturgo “profissional”, digamos assim, em 23 de novembro de 1957, com “A Promessa” pelo Teatro Experimental do Porto – TEP, no Teatro Sá da Bandeira numa encenação de António Pedro.     

 

Aliás, tal como referimos no artigo anterior, o livro de Carlos Porto dá sobretudo destaque, no que se refere a Santareno, a duas estreias: “A Promessa” (1957) e “O Crime da Aldeia Velha” (1959). Passaram entretanto mais de 60 anos: e no entanto, os elencos referidos no livro de Carlos Porto documentam, ainda hoje, a qualidade artística: nomes como Rui Furtado, Dalila Rocha,  João Guedes, Cândida Lacerda, Alda Rodrigues, Vasco de Lima Couto, Baptista Fernandes, Fernanda de Sousa, Cecília Guimarães, Cândida Maria, Nita Mercedes, Fernanda Gonçalves, Alda Rodrigues, Madalena Braga, José Silva, José Pina, Sinde Filipe, tantos anos decorridos, muitos deles ainda dizem muito sobre a arte de representar.

 

E, repita-se, passaram entretanto mais de 60 anos!...

 

Ora bem:

100 anos decorridos sobre o nascimento de António Martinho do Rosário, o que nada nos diz, mas mais de 60 anos decorridos sobre a estreia de Bernardo Santareno (“A Promessa” – 1957); face ao reconhecimento da qualidade das peças de Bernardo Santareno, “um dos mais pujantes dramaturgos de todos os tempos” como escreveu Luís Francisco Rebello; face à extensão, qualidade e complementaridade da bibliografia; face à circunstância de terem sido representados pelo TEP algo como 37 dramaturgos portugueses; face à qualidade da pesquisa e da escrita; face a tudo isto e tudo o mais, penso que o livro de Carlos Porto é realmente merecedor de consideração!

DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

LVIII - FERNANDO CRISTÓVÃO      

 

Fernando Cristóvão fala-nos em diferentes graus de união e de associação dos povos que formam a lusofonia, segundo três círculos concêntricos de intensidade.

 

O primeiro círculo integra os oito países que têm o Português como língua oficial: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Nele inclui regiões que integram outros países e culturas com os quais partilhámos ou partilhamos a língua e a história: Galiza (Espanha), Ano Bom e Ajudá (Benim), Casamansa (Senegal), Goa, Damão, Diu (União Indiana), Macau (China), lugares que falaram ou falam português, suas variantes ou crioulos. Como, por exemplo, os crioulos de Malaca, Sri Lanka, Bali, Java, Curaçau e Suriname, cuja memória cultural que transportaram vai permanecendo, mesmo quando enfraquecidos ou apagados.

 

É no interior deste círculo, ou núcleo duro dos oito países independentes, que se joga o futuro da língua portuguesa, da solidariedade dos seus falantes, e se desenvolve a ação externa dos lusófonos, a começar pelas organizações internacionais.

 

O segundo círculo, envolvendo o primeiro, engloba as outras línguas e culturas de cada um dos oito países e das regiões lusófonas, que se encontram em contacto entre si e com a língua comum.   

 

O terceiro círculo concêntrico, mais amplo e abrangente, é constituído por pessoas, grupos e instituições não pertencentes a países e regiões lusófonas, que mantêm com a língua comum, línguas e cultura dos países lusófonos um convívio e diálogo de amizade, afetos, curiosidade, erudição e outros interesses.

 

São pessoas, grupos e instituições de outras culturas e interesses não lusófonos que se interessam pelos lusófonos: alunos e professores em países não lusófonos, amigos, familiares e meros convivas não lusófonos de emigrantes lusófonos, eruditos e técnicos não lusófonos.

 

A teoria dos três círculos ascendentes e concêntricos de interdependência e solidariedade integrantes da lusofonia e propostos por Fernando Cristóvão, são inspirados e adaptados (no contexto específico lusófono) dos três círculos ascendentes de interdependência e solidariedade do ecumenismo de Hans Kung. 

 

Cristóvão fala num primeiro círculo ou núcleo duro dos oito países lusófonos que integram a CPLP, num segundo composto por outras línguas e culturas de cada um desses países e de um terceiro mais amplo integrando indivíduos, instituições, grupos e pessoas alheias a países e regiões lusófonas, mas que mantêm com a língua comum e as línguas e culturas dos oito países um diálogo de amizade, empatia, erudição, simpatia e interesses vários[1], por confronto com os círculos do ecumenismo universal do teólogo suíço: ecumenismo cristão (entre as diversas igrejas cristãs), religioso (entre as várias religiões) e humano ou universal (unidade de todos os homens)[2].

 

Não se esgotando a lusofonia no uso da língua comum e proporcionando a aproximação dos países em todas as áreas que os lusófonos entenderem (economia, ciência, política, etc.), reconhece Cristóvão que “por serem as aproximações e parcerias facilitadas pela língua, ela assume uma importância basilar e prévia a quaisquer entendimentos” (“Res-Publica, Revista Lusófona de Ciência Política e Relações Internacionais”, Ano I, n.º3/4, 2005, p. 26).   

 

24.07.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

 


[1] Cristóvão, Fernando, As Viagens e os Viajantes para os Portos da Lusofonia, revista Res-Publica, Ano I, n.º  ¾,  Edições Universitárias Lusófonas, 2005, p. 25.    
[2] Citados por Fernando dos Santos Neves, em entrevista na mesma revista, p. 10. 

CRÓNICA DA CULTURA

Um parágrafo na história da civilização

 

Vivemos há muito numa consentida pandemia entre egoísmo e desigualdades sociais.

 

O projeto de vida de cada um, que não englobou a capacidade de incluir o outro como nosso semelhante, fortaleceu sim, um projeto patológico, que amadureceu ao ponto das suas raízes medrarem no podre, criando mesmo resistências a uma mudança.

 

Tudo se foi fortalecendo nos caminhos dos carreiristas, dos astuciosos, dos que conhecem os avessos o suficiente, para estarem sempre no lugar certo à hora certa, e surgirem como os obviamente aptos para os cargos.

 

Deixar que o silêncio abafe as dificuldades alheias de quem enfim, vive ainda do crédito que deposita em quem é afinal o devedor, faz parte da engrenagem que confunde por obra e graça.

 

Dar uma sensação de confiança que não existe, é, igualmente tratar todos por um qualquer número de cama de enfermaria parda, distante q.b. de um quarto particular que não conhece o diálogo da carência.

 

O diagnóstico foi sempre o mesmo: falhou a solidariedade na luta contra as desigualdades, e falhou o orgulho por se conviver numa vida digna, tendo em conta as capacidades de cada qual.

 

Afinal, continua a ter êxito a competição que descartou o local asténico onde nenhum coração pode bater esperançoso, antes, o enorme umbigo confere ritmo às relações humanas, qual cruz sorteada a cada, depois de um canto de sereias determinar o a quem.

 

No entretanto, muito se presencia uma vida de coma assistido.

 

Continuamos juntos, sem um progresso em direção ao respeito pelo indivíduo. As fortes disparidades proliferam e multiplicam-se no egoísmo e suas consequências, a fim de que uns, se possam sentir por natureza, mais do que outros, por virulento, desprovido, bolorento e delinquente que seja esse mais.

 

De registar que a falta de investimento na cultura e na educação serão sempre pródigas no manter do statu quo.

 

Pergunta-se: como pode uma sociedade prosperar de forma equitativa se o plano do poder ignora o contrato social?

 

Creia-se que o continuar do cada um por si, é o definitivo naufrágio.

 

Já é um parágrafo na história da civilização.

 

Será pois a impossibilidade definitiva de um feliz deus tirar fotografias atras de fotografias.

 

Teresa Bracinha Vieira

DESCONFINAR A IGREJA. 4

 

1. Também se aplica à Igreja, e compreende-se que de modo particular à Igreja, tantas são as expectativas em relação a ela: dá-se eco, sobretudo nos média, ao que é negativo, aos erros, crimes, escândalos... Quem pode negar tudo isso? Mas o que a Igreja fez e faz de positivo é mais: promoção das pessoas, combates pela sua dignificação, infindáveis iniciativas de caridade e cultura... Também agora, nesta calamidade pandémica. Quantos políticos portugueses, se quiserem ser honestos, terão de estar de acordo com as palavras do alcaide de Madrid, José Luis Martínez Almeida: “A acção da Igreja foi fundamental, como o é na vida quotidiana.”

 

Neste contexto, perdoe-se esta nota: quando a ecologia tem de ser um elemento essencial na viragem, o Vaticano dá o exemplo: instalou no edifício da Aula Paulo VI painéis solares, promove o uso de veículos eléctricos, eliminou o uso de pesticidas tóxicos nos jardins...

 

Mas a dívida maior para com a Igreja, apesar da e no meio da sua história de miséria, é que através dela o Evangelho foi sendo anunciado, e o Evangelho está na base da tomada de consciência da dignidade inviolável da pessoa e foi fermento que levou à proclamação dos Direitos Humanos.

 

2. A ameaça maior da Igreja é o poder e os conluios com os poderes. Uma demonstração simples deste perigo está em que, desgraçadamente, quando se fala da Igreja, no que se pensa é no Papa, nos cardeais, nos bispos, nos padres, nos monsenhores..., tudo aquilo em que nem Jesus nem os primeiros discípulos pensariam.

 

O núcleo do cristianismo é a mensagem de Jesus, o Evangelho: Deus é Pai-Mãe de todos e quer a alegria e a salvação de todos. A Igreja mundial é a comunidade de comunidades cristãs espalhadas pelo mundo e congregadas por essa mensagem, na fé, na esperança e praticando o amor, a justiça, a paz.  Evidentemente, é necessário um mínimo de organização, mas a pergunta é: essa organização tem de ser piramidal, hierárquica, machista, gerontocrática, centralizadora?

 

Francisco sabe que este é um combate decisivo para o futuro da Igreja. Ele é cristão, franciscano, mas é também jesuíta, não é anarquista, e sabe que alguma organização se impõe. Daí, o seu combate permanente, sem tréguas, contra o clericalismo, o carreirismo, a corte, que são “a peste da Igreja”, e o esforço para que se perceba que o poder só vale enquanto serviço, e a sua abertura a uma Igreja verdadeiramente sinodal, isto é, uma Igreja na qual todos caminham juntos, uns com os outros e todos com Jesus, ao serviço da Humanidade. O que ele peleja para que acabem os bispos-príncipes e para renovar a Cúria e o Banco do Vaticano! Sem desânimo, apesar de saber que, como disse num dos discursos à Cúria, “é mais difícil reformar a Cúria do que limpar a esfinge do Egipto com uma escova de dentes.”

 

3. Na “nova normalidade”, a Igreja necessita, em primeiro lugar, de que todos os seus membros renovem o essencial: a fé. Neste sentido, significativamente, apareceu agora uma nova versão do “Directório para a catequese”, e a mensagem essencial é que o centro não está nas doutrinas, mas na pessoa de Jesus, e, por isso, o decisivo é que “cada pessoa descubra que vale a pena acreditar” e conheça o amor cristão. Isso impõe, certamente, estar atento também à utilização das novas tecnologias e ser uma presença evangelizadora no continente digital.

 

A linguagem tem de adaptar-se. Por exemplo, não se pode continuar a falar do pecado original, como se fazia, e é preciso perguntar: que significa hoje “ressurreição da carne”, “desceu aos infernos”, “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”? Não se pode ficar imóvel nos rituais, com gestos e sinais que já nada significam, o que implica que urge a adaptação da liturgia e de toda a linguagem da fé às diferentes culturas, com o que se chama Inculturação do Evangelho. E a simplicidade tem de ser lei: pense-se, por exemplo, naquele ritual do tira e põe do solidéu, o mesmo acontecendo com a mitra. Sobre esta, falou Santo António, num sermão do Advento (devo a citação a Sofia Nunes): “Cairão os unicórnios, os imperadores e reis deste mundo e os touros, os bispos mitrados, que têm na cabeça dois cornos como se fossem touros.”

 

A Igreja tem de continuar a fomentar o ecumenismo — felizmente, o Vaticano põe a questão de revogar a excomunhão a Lutero — e o diálogo inter-religioso.

 

Com que fundamentos justificar a imposição do celibato obrigatório ou a discriminação das mulheres? E não precisam de revisão os ministérios na Igreja?

 

Sobre a Igreja sinodal, que é o tema do próximo Sínodo em Outubro de 2022, o sociólogo J. Elzo tem uma figuração apelativa: “Uma Igreja em rede, à maneira de um gigantesco arquipélago que cubra a face da Terra, com diferentes nós em diferentes partes do mundo, inter-relacionados e todos religados a um nó central, que não centralizador, que, na actualidade, está no Vaticano. Aí ou noutras partes do planeta, todos os anos se reuniria uma representação universal de bispos, padres, religiosas e religiosos, leigos (homens e mulheres), sob a presidência do Papa, para debater a situação da Igreja no mundo e adoptar as decisões pertinentes”, também no que se refere aos problemas da Humanidade.

 

P.S. Como anunciou o Presidente turco, R. Erdogan, Santa Sofia, em Istambul, passa a mesquita. O Papa Francisco comentou: “O meu pensamento dirige-se para Istambul. Penso em Santa Sofia e sinto muita dor”. Ao acontecimento e à sua problemática dedicarei a próxima crónica.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 JUL 2020

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