CRÓNICAS PLURICULTURAIS
58. UMA TEORIA DA CULPA
A pé e meditando em silêncio, em passeios salubres de época de pandemia, acautelado em regras sanitárias e de distanciamento, recolhendo vitamina solar e tentando alguma imunidade, certifico-me que uma percentagem significativa de veículos estacionados e em circulação, tantas vezes maioritária, é de origem e marca germânica.
A proporção aumenta ou é mais notória se maiores os sinais exteriores de riqueza da urbanização onde imobilizados ou em andamento, mas verifico ser quase sempre mais alta, no geral, por confronto com viaturas mais acessíveis.
A que acresce a maioria da frota automóvel governamental, elites e cidadãos que fazem o culto do automóvel de modelo alemão.
Embora a mentalidade portuguesa seja imperial e de rico, pelo seu passado histórico e colonial ao longo dos séculos, sempre me impressionou esta apetência automobilística pelo que vem da Alemanha, onde se incluem viaturas tidas como duráveis, de grande qualidade e cilindrada, como se a restante oferta mundial não fosse adequada para a nossa circulação no dia a dia, quer em carros de topo, mais populares e baratos.
O que é agudizado pelo desejo, tantas vezes obsessivo ou ostensivo, de querer esta ou aquela marca germânica em particular, para toda a vida, proclamam alguns, mesmo que mais cara e à revelia do ambiente.
Este pensar de ricos pobres, num país em que faltam recursos e competitividade, confirma que não são os modelos e veículos mais populares e alcançáveis em dinheiro, os que grande parte dos portugueses preferem.
Antes sim os mais dispendiosos e chamativos, comprando mais caro e a crédito, se necessário, endividando-se e produzindo maior dívida, em benefício de outros.
O que não deixa de ser sintomático de uma ausência de sentido crítico de quem se endivida e compra produtos mais onerosos, não monopólio de um ou dois produtores, em proveito de quem nos censura por colocarmos “o carro à frente dos bois”.
Recordo-me de, em 2012, em plena crise das dívidas soberanas, dirigentes alemães darem como mau exemplo de despesismo e consumo inútil de verbas europeias a construção de bonitas autoestradas e belos túneis na ilha da Madeira, causando impacto e admiração, mas que não aumentavam a competitividade, como deveriam, demonstrando o desastroso uso de dinheiro e o porquê de estarmos endividados.
Portugueses houve que interpretaram tal exemplo como um aviso, por via indireta, de nos culpabilizar pelo nosso défice e dívida excessiva, do fundamento para a então imperiosa necessidade de intervenção da troika e consequente punição, com as adequadas adaptações extensivas a outros países, nomeadamente do sul da Europa.
E quem salientasse que era de reprovar que a censura e punição não fosse adequadamente extensiva a todos os países credores, incluindo a Alemanha, que vendem desproporcionalmente caro veículos (e outros bens) a crédito vendido por bancos germânicos (mas não só) a países endividados, como Portugal, circulando por autoestradas e túneis não competitivos da União Europeia, em locais mais tidos como da família da cigarra que da formiga, com o devido respeito pela primeira, a quem nada devo, nem o inverso…
O despesismo de uns é o superavit de outros.
É caso para perguntar: e se dissermos a Berlim, com outros países em igualdade de circunstâncias, que como somos pobres e endividados, só podemos e devemos aprender a viver com marcas e modelos de veículos mais económicos? Aplicando, in casu, o princípio da adequação, da proporcionalidade e razoabilidade inerente à capacidade de riqueza produzida e de endividamento de cada país?
Ninguém nos obriga a comprar este ou aquele produto, é certo, mas se aos olhos de quem nos quer vender a crédito prevaricamos tanto, de quem é a culpa?
Essencialmente do devedor, do credor ou de ambos?
03.07.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício