Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Chegamos ao fim do folhetim. Muitas coisas ficaram por dizer.
Finalizo, como comecei, com palavras de Garrett, a terminar “Viagens na Minha Terra”:
«Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra. Se assim o pensares, leitor benévolo, quem sabe? pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar. Nos caminhos-de-ferro dos barões é que eu juro não andar. Escusada é a jura porém. Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não. Mas de metal! Que tenha o Governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra»...
E completando o folhetim, imagino-me, beneficiando da hospitalidade do meu Amigo Pedro Canavarro, na sua casa de Santarém. Aí reencontrei diletos viajantes que me disseram ter sido tratados nesta viagem com excesso de simpatia. E quem foram eles? Garrett, naturalmente, maravilhado com os benefícios que a cidade escalabitana foi sofrendo. Herculano e o seu amigo dedicado Raimundo Bulhão Pato, agradados com o sucesso do seu azeite e dos seguidores do senhor Jerónimo Martins – e animados com a conversação afável de Manuel da Silva Passos, o extraordinário proprietário da casa, sobre a procura necessária destas boas razões para Portugal, em nome de uma boa instrução pública.
E calculem que descobri nessa cavaqueira de bons e aprazíveis companheiros, a paixão de Almeida Garrett pelas histórias de quadradinhos e pelo facto de, nas aventuras de Tintin, Oliveira da Figueira ser o símbolo do português. Garrett percebeu bem a importância da ilustração, Bulhão Pato também manifestou curiosidade e interesse – e até o velho Herculano, com algum ceticismo, manifestou atenção, sabedor que as suas lendas e narrativas têm sido boa matéria para todos os principais ilustradores. Com a ajuda de Pedro Canavarro lá explicámos quem era este Oliveira da Figueira que conheciam mal…
A sua primeira aparição foi em 1932, como personagem de «Os Charutos do Faraó», num episódio em que Tintin é atirado ao Mar Vermelho, por engano, num sarcófago egípcio. Salvo «in extremis», o jornalista encontrou-o na embarcação que milagrosamente o recolheu e Oliveira da Figueira pôs-se-lhe à inteira disposição: «se puder ajudá-lo, posso fornecer-lhe a preços competitivos qualquer artigo de que necessite». Começou então por um conjunto flamante de gravatas, às riscas, às bolas ou com figuras exóticas. Seguiu-se um lote de magníficos sabres, com lâminas de Toledo, mil outras bijuterias, além dos brindes: um despertador, escova de dentes etc… Tintin saiu literalmente carregado, com um balde, um regador, uma gaiola com papagaio, uns esquis, tacos de golfe, uma casota e uma coleira de cão, além do inevitável despertador – confessando: «Ainda bem que não me deixei levar pela conversa dele. A tipos como este acabamos sempre por comprar uma série de coisas inúteis». Na costa árabe, Oliveira da Figueira demonstrará a sua extraordinária arte de convencer. Chamam-lhe «o-branco-que-vende-tudo»… E diz orgulhoso: «Então que tal? Chama-se a isto eficiência! E o melhor é que os meus clientes voltarão». Apesar de tudo aparece alguém a protestar porque parece ter ingerido um naco de sabão, que lhe produz o óbvio mal-estar originado pelas bolas que o atormentam - «Antes da Lua Nova, o meu Senhor, o Xeque Patrash Pacha, ter-te-á castigado»…
Depois a rotunda personagem é encontrada no «País do Ouro Negro», obra iniciada em 1939, interrompida pela guerra e recomeçada em 1948. E ajuda Tintin a encontrar os segredos do temível Dr. Müller, descobrindo um sagaz subterfúgio. Mascarado de sobrinho do comerciante, sob o nome de Álvaro, quase invisual com uma estória de contornos mirabolantes. É extraordinária a capacidade fabulatória de Oliveira da Figueira. Inventa que o sobrinho é filho de um criador de caracóis, vítima de uma trama terrível que envolve uma mulher rica que morre de desgosto aos noventa e sete anos e a influência de duas imortais palavras, ditas em português, «Oh! Oh!», cujo sentido nunca chegamos a conhecer…
Depois, em «Carvão no Porão» («Coke en Stock», publicado no «Cavaleiro Andante», em 1959 e 1960, sob o título «Mercadores de Ébano»), Tintin e o Capitão Haddock, pedem apoio e hospitalidade em Wadesdah. Oliveira da Figueira recebe surpreendido e assustado a visita noturna de Tintin, com a cidade em estado de sítio, cheia de cartazes a pedir a sua captura. «Que faz aqui, desgraçado? Não sabe que tem a cabeça a prémio?». O português conta o que se passa. Há agitação e um conflito entre a Arabair e o Emir… Tintin diz que precisa absolutamente de ajudar o Emir e Oliveira da Figueira informa que teve de fugir para casa de Patrash Pacha. Tintin e Haddock treinam desesperadamente o equilíbrio das bilhas à cabeça, para que possam não dar nas vistas, mascarados de mulheres árabes com as suas burkas. O resultado do treino é desastroso. Os estragos são enormes e os cacos enchem o armazém do comerciante, que se vê na obrigação de dizer às clientes que as bilhas estão esgotadas. No momento da verdade, tudo parece salvo, mas eis escandalizada. O desastre anuncia-se, mas tudo se arranja, graças ao apoio providencial de Oliveira da Figueira.
A charla continuou e os convivas assinalaram temas que poderiam ter sido acrescentados aos célebres 30. Bulhão Pato foi o mais loquaz – falou da gastronomia que poderia ser acrescentada, elogiou o Mestre João da Matta, falou de Paulo Plantier, e assinalou as maravilhas do Queijo da Serra e do seu sucedâneo de Azeitão (com a ajuda de Periquita, boa pomada) e saudou o esclarecimento da confusão das ameijoas, que nunca ele cozinhou, mas com que se deleitou no Central… Garrett, atentíssimo ao espírito do tempo, falou, imaginem lá!, dos desportos e dos ídolos, e deu nota que lá no assento etéreo onde se encontra se apercebeu dos sucessos desde Eusébio a Cristiano. Uma cultura popular faz-se dessa ligação aos ídolos e aos efémeros sucessos. Herculano, circunspecto, preferiu chamar a atenção para a necessidade de uma visita ao Convento de Tomar, charola, janela manuelina, memória de Gualdim Pais, rio Nabão e à importância do monumento como património vivo. Achou justa a referência a Camilo e a Júlio Dinis. E lembrou ainda a Biblioteca Joanina de Coimbra, a inesgotável Livraria da Ajuda, que ele conhece como as suas próprias mãos, a Torre do Tombo e a Portugaliae Monumenta Historica… Pato e Garrett falaram de música, lembraram os “Tentos” de Frei Manuel Correia, mas também José António Carlos Seixas e o tempo joanino, Luísa Todi na corte de Catarina da Rússia… Garrett insistiu especialmente em João Domingos Bontempo, seu amigo e colega de lides na formação musical do Conservatório Nacional. Bulhão Pato, especialmente loquaz, falou da importância das peregrinações, antigas e modernas – e lembrou o Almirante D. Fuas Roupinho e o milagre da Nazaré. Afinal a língua galaico-portuguesa nasceu em campo de peregrinação a Santiago de Compostela. E Pedro Canavarro, concordando com o que era dito, lembrou a importância da XVII Exposição Europeia de Arte Ciência e Cultura (1983), sob os auspícios do Conselho da Europa e de tão boa memória, onde imperavam as boas razões para Portugal, e lembrou ainda os caminhos de Fátima e a fundação do Centro Nacional de Cultura no ano de 1945, oito dias depois do fim da guerra no continente europeu – bem como o projeto cultural moderno dos “Caminhos de Fátima”, idealizado por Gonçalo Ribeiro Telles e Helena Vaz da Silva.
As rotas do Património nasceram, assim, dos caminhos de peregrinação, per agros, pelos campos… Hoje o peregrino é o que cuida de ir ao encontro do património cultural, material e imaterial, natural e paisagístico, tecnológico e digital, sem esquecer a contemporaneidade e a sua criação.
E nessa tarde imaginária à vista do Tejo, Bulhão Pato, pegou num livro e leu-nos pausadamente: «Houve tempo em que a velha catedral conimbricense, hoje abandonada de seus bispos, era formosa; houve tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos anos, eram ainda pálidas, como as margens areentas do Mondego. Então, o luar, batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de luz suavíssima, mais rica de saudade que os próprios raios daquele planeta guardador dos segredos de tantas almas, que creem existir nele, e só nele, uma inteligência que as perceba»… E assim Herculano despediu-se e foi até à sua quinta, acompanhado de Pato – e Garrett como Passos Manuel foram discretear um pouco, olhando o belo Vale de Santarém.
Os «Escritos do Vintismo (1820-23)» de Almeida Garrett, Editorial Estampa, 1985, permitem-nos encontrar o mestre do Romantismo como grande cicerone da Revolução de 1820.
UMA CONTINUIDADE MARCANTE
Dois séculos de constitucionalismo são motivo de reflexão, menos no tocante aos acontecimentos originais de 1820 e mais quanto à dinâmica criada. Pode dizer-se que a matriz revolucionária sofreu entorses, teve erros e limitações, que as instituições políticas revelariam ao longo do tempo. É natural que assim tenha acontecido, uma vez que a vida pública é sempre uma projeção da sociedade e das suas características. A verdade é que o constitucionalismo tem a virtude de consagrar a aceitação da imperfeição, exigindo, porém, o seu aperfeiçoamento permanente. Lembramo-nos, assim, como Ernesto Melo Antunes, na sua coerência inabalável, em 25 de abril de 1974, colocou o Movimento das Forças Armadas na continuidade da tradição constitucional portuguesa, interrompida no seu curso histórico. E deste modo puderam ser cumpridos, no essencial, os compromissos de normalização constitucional assumidos pelo MFA. Olhando a dimensão cultural da comemoração de 1820, centrar-me-ei no testemunho pessoal e literário de Almeida Garrett, que considero paradigmática – uma vez que nele encontramos o entusiasmo genuíno de quem acreditou nas virtualidades dos valores defendidos pelos regeneradores, temperado pela reflexão crítica e pela experiência pessoal. Alguns porão em dúvida a coerência do poeta, do intelectual e do cidadão, mas o certo é que o seu percurso e a sua evolução de pensamento são perfeitamente compreensíveis porque traduzem o curso da sociedade e das mentalidades. Daí o interesse em podermos acompanhar como o escritor seguiu os acontecimentos, afinando ideias, reflexões e críticas – chegando ao entendimento sobre a necessidade de compromissos sociais e políticos capazes de preservar a identidade pátria e de seguir os movimentos emancipadores centrados na liberdade e nos direitos.
O FIM DO ABSOLUTISMO
São conhecidos os antecedentes que mais diretamente suscitaram o movimento revolucionário de 24 de agosto de 1820: o rescaldo das invasões francesas, a perplexidade decorrente da longa ausência da Corte no Brasil, a subalternização das instituições nacionais pelo domínio de facto dos militares ingleses, mesmo depois da derrota dos franceses, o sacrifício ilegítimo e brutal de Gomes Freire e dos “mártires da Pátria” em 1817, além dos ecos da Revolução espanhola de Cádis (1812), da Revolução de Pernambuco (1817), do movimento liberal espanhol de janeiro de 1820 e do juramento da Constituição de Cádis por Fernando VII. É neste contexto que intervem o Sinédrio, na cidade do Porto, com o Desembargador Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, José Silva Carvalho e João Ferreira Viana. Decidido o golpe de Estado, os grupos militares dirigiram-se ao Campo de Santo Ovídio, constituindo-se a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, presidida pelo Brigadeiro António Silveira Pinto da Fonseca, tendo como vice o Coronel Sebastião Drago Brito Cabreira, com a participação, além dos principais membros do Sinédrio, de Frei Francisco de S. Luís (futuro Cardeal Saraiva) e do Coronel Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda. Encontramos o jovem Garrett, ainda Silva Leitão, entre 1816 e 1821, estudante da Universidade de Coimbra – manifestando uma clara simpatia pelos ideais do iluminismo enciclopédico fortalecido pela Revolução francesa. É um crítico severo da decadência, da exaustão cultural e do domínio britânico. Lê Rousseau, admira a retórica jacobina, invoca o antigo republicanismo romano, e encontra entre os seus colegas um ambiente favorável à ideia de uma Regeneração revolucionária. De facto, é a Coimbra estudantil um verdadeiro alfobre favorável ao combate ao Antigo Regime. Constituía-se, assim, uma muralha contra o professorado retrógrado, o que levaria o novo reitor após a Revolução de 1820, Frei Francisco de S. Luís, a ter de impor aos docentes o ensino dos novos princípios do Sistema Constitucional. Garrett defendia ardorosamente o espírito novo. O ambiente adensara-se com as notícias da execução injusta e ilegítima dos mártires da Pátria. O futuro poeta afirma-se então como orador inflamado contra a negação do voto à massa estudantil nas eleições paroquiais para deputados; na produção dramática, ataca na farsa “O Corcunda por Amor” os reacionários, numa hilariante trama que é uma floresta de enganos e de ilusões, como no caso da intervenção de Eleutério que, para cair nas boas graças de um lente, diz exatamente o contrário do que pensa – “Isto por cá está cada vez pior. Daqui a pouco não há criados, todos são amos…”; isto enquanto na expressão trágica coloca na boca de Catão a afirmação: “Ou liberdade, ou morte, eis o meu voto”. E, após o herói ter posto termo à vida, diz-se: “Vede Expirar Catão: dentro do peito / Guardai desse romano alma e virtudes”.
LIBERDADE E IGUALDADE, MARCOS PATRIÓTICOS
Garrett sente-se imbuído dos ideais clássicos mais intensos e nobres – e em Novembro de 1820, aquando da Martinhada, diz ao Corpo Académico: “Vivamos livres… ou morramos homens”. Mais do que o desenrolar dos acontecimentos políticos, seguimos os passos do jovem poeta que exprime com entusiasmo a força mais pura dos ideais em que a sua geração acredita. Importaria defender uma solução política que favorecesse a liberdade e a justiça. Mas, ao acompanhar o curso das discussões na Assembleia Constituinte, o jovem não esconde o desencanto pela falta de audácia no domínio da Instrução Pública – “tão livre é o povo ilustrado quanto escravo o povo ignorante”, acrescentando: “o povo cuja maioridade seja iluminada, esse povo será livre, porque a pequena porção de ignorantes não basta para servir os que o não são”. De facto, exigia-se pedagogia cívica. Essa era a orientação persistente do futuro autor de “Da Educação”. Se havia nele um impulso genuinamente radical contra a tirania e a idolatria, havia igualmente uma preocupação, que se manifestará pela vida adiante, no sentido do pragmatismo e do primado da lei, de acordo com os apelos que Catão e Mânlio fazem a Bruto contra o seu radicalismo. Daí que a defesa do republicanismo sofra abrandamento, do mesmo modo que a crítica de Rousseau vai dar origem à leitura de Montesquieu e Chateaubriand. A Lei Fundamental deveria ser compromissória, reconhecer a soberania do povo e do seu poder constituinte, assegurar o sufrágio geral, que assegurasse a representatividade popular das Cortes e ser unicameral. Neste último ponto, contudo, a posição garrettiana evoluirá. Depois da Vilafrancada, interrompida a vigência fugaz da Constituição de 1822, o dramaturgo reconhece erros cometidos, desde Cádis, por se dar demasiado à democracia e nada à aristocracia. Reconhecendo a importância da Carta Constitucional de 1826, Garrett vai ser um cidadão empenhado, ativo participante da guerra civil na Regência de D. Pedro, redator dos Decretos da Terceira de Mouzinho da Silveira, constituinte do setembrismo no compromisso de 1838 e defensor do Ato adicional de 1852. Se virmos bem, a coerência garrettiana, apesar das hesitações, culminará na defesa de um constitucionalismo assente no primado da lei e nas legitimidades do voto e do exercício. A Constituição deveria ser, assim, a pedra de toque de um regime justo, promovendo um governo representativo, segurando a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, as santidade da religião, e o império das leis.
Chegamos ao capítulo XXX deste folhetim. Dileto leitor, ainda haverá um epílogo, uma espécie de “pot pourri” com algumas notas dispersas, já que há muito mais do que trinta boas razões para Portugal.
Como começámos com Garrett e a sua viagem à volta do seu quarto, importa dizer que hesitámos entre dedicar o último capítulo à língua portuguesa ou ao livro da nossa língua que maior projeção mundial tem. E preferimos a última opção, fieis ao nosso querido e saudoso amigo António Alçada Baptista, que tantas vezes me citou de cor passagens inteiras dessa obra-prima. De facto, é uma obra pioneira na literatura mundial. Mais do que um livro de viagens, trata-se de um modo inteiramente novo e original de fazer uma narrativa. Com mil aventuras e mil personagens, estamos diante de uma mudança completa no mundo da literatura.
“Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583) põe-nos diante uma verdadeira personagem romanesca, como antes não existiu, que assume diferentes acontecimentos e até personalidades, e que descreve de um modo notabilíssimo, o que era a vida de um português no Oriente – criado de fidalgo, soldado, escravo, agente de negócios, pirata dos mares da China, mercador, médico ocasional do rei do Bongo, vagabundo e embaixador -, a verdade é que isso simboliza o português do mundo. Os estudiosos sobre esse tempo são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos relataram sem ler Fernão Mendes Pinto. Se Alonso Quijano, de Cervantes, se rebela contra a personagem de D. Quixote, Fernão Mendes é a personagem completa, que não precisa de convencer ninguém que deixa de ser quem sempre foi. O próprio título com que a obra foi publicada dá-nos a expressão plena da riqueza e complexidade do relato.
"Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus".
Ao ler a obra, houve entre os contemporâneos quem duvidasse da verdade dos relatos, respeitantes aos vinte e um anos em que andou pela Ásia, tendo sido, na sua própria expressão, “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. Mas sentimos, a cada passo, a força da verdade. A escrita começou logo uma vez regressado o autor a Portugal, em 1557, com a memória bem fresca, só sendo publicada trinta e um anos depois da sua morte (1614), por Pedro Craesbeek, com tardia autorização do Santo Ofício. Aos que duvidaram da veracidade dos relatos, o autor respondeu significativamente: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”.
É memorável, a título de exemplo, o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário, numa situação, em que quiseram saber novidades de Liampó, "porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito", mas afinal era engano, pois essa armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto. É inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia "derramador e bebedor do sangue português" e a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. "E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão...”. E lembre-se o episódio da vinda do Embaixador do Rei dos Batas. Pero de Faria fê-lo «agasalhar o mais honradamente que então foi possível». E assim «o despediu bem despachado, e satisfeito do que viera buscar, porque lhe deu ainda algumas cousas além das que lhas pedira, como foram cem panelas de pólvora, e rocas, e bombas de fogo, com que se partiu tão contente desta fortaleza, que chorando de prazer, um dia perante todos os que estavam no tabuleiro da igreja, virando-se para a porta principal dela, com as mãos levantadas, como quem falava com Deus, disse publicamente. Prometo em nome de meu Rei a ti Senhor poderoso, que com descanso e grande alegria vives assentado no tesouro das tuas riquezas que são os espíritos formados da tua vontade, que se te praz dar-nos vitória contra este tirano de Achem (…). E assim te prometo e juro com toda a firmeza de bom e leal, que meu Rei não tenha nunca outro Rei se não este grande Português, que agora é senhor de Malaca».
Fernão Mendes construiu, deste modo, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, que tem o seu estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimentos típicos». Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto nos relatou. Pode até ter acontecido que não fora ele o real protagonista de tudo, mas percebemos que tudo ocorreu de facto. E assim a nossa cultura é inesgotavelmente peregrina!
“O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português” de Eduardo Lourenço (1978) é uma das obras fundamentais do século XX sobre a nossa identidade. O ensaio principal foi escrito para a revista “Raiz e Utopia” (5-6, 1978).
O ensaísta é um cultor de paradoxos, ciente de que a cultura se enriquece pela capacidade de ver o mundo do avesso e de olhar para além das aparências. «É a vida mesma que nos biografa – por isso é a nossa vida – e escrevendo-se em nós nos autobiografa sem que a ninguém, salvo essa vertiginosa musa, possamos imputar tão extraordinária façanha». Com um dom de usar as palavras para melhor as adequar ao mundo da vida, o escritor não esconde que a essência do género que cultiva, tem a ver com a confissão na primeira pessoa do singular. «Nisso quem está a menos, somos nós, e a vida tão excessivamente a mais que só a conhecemos por nossa nos intervalos em que a temos como se de outro fosse. Só os outros nos tiram retratos e só a coleção aleatória destas vistas ocasionais dos outros sobre nós ocasionalmente arquivadas, se isso valesse a pena, para termos mais tarde e acabada a vida que não nos tem, seria então um “autorretrato”».
Um grafólogo identificou na escrita do ensaísta «uma excessiva necessidade de outros», e o próprio comparou-se a Judas que precisava desesperadamente de Jesus Cristo. E aqui se sente o heterodoxo, incapaz de se deixar ficar ora na leitura racional e positiva dos acontecimentos, ora na tentação mítica ou ilusória das explicações das pessoas e do mundo. Em S. Pedro de Rio Seco está a origem dessa atitude de dúvida e de espanto. «Tenho consciência de que tudo me é pretexto para não falar de mim. Ou seja: para falar incessantemente de mim. É por isso que a minha escrita é lírica e passional» (JL, 6.12.86).
A saída da aldeia “foi a saída para o mundo exterior, a saída sem regresso». E a Guarda, primeiro destino, tornou-se como se fora Nova Iorque, o sinónimo do mundo – esse mundo que Thomas Mann representou na «Montanha Mágica» e que encontramos em Vergílio Ferreira. E essa adolescência vivida com naturalidade pôde assemelhar-se ao sublime. Afinal, «a interioridade é também um mito porque estávamos sempre no exterior de nós próprios» («25 Portugueses», 1999). Depois, vieram Lisboa e o Colégio Militar. Lisboa era o sítio ideal para acreditar que as caravelas continuavam a existir. E Eduardo Lourenço fez dessa experiência singular um modo de olhar a vida. Como em tudo, tira a boa lição, define distâncias, e avança para Coimbra cheio das ilusões dos dezassete anos. Na biblioteca, encontra Nietzsche, continua com Kierkegaard, entusiasma-se com Hegel e estuda Husserl. Joaquim de Carvalho e Sílvio Lima tornam-se referências que o marcam pelas ideias, pela atitude, pelo sentido crítico. Eugénio de Andrade encontra-o e lembra-o com Carlos de Oliveira («foi o Carlos que me apresentou o Eduardo»).
É o tempo do neorrealismo, que Eduardo Lourenço procura compreender, ressalvando a distância crítica. Há, no entanto, manifesta ambiguidade em quem se preocupa com a descoberta dos outros. O episódio da passagem da «Vértice» para o grupo neorrealista é ilustrativa da candura, e da confiança pessoal genuína em Carlos de Oliveira e Rui Feijó. E, nessa demarcação de território, «Heterodoxia» surge como algo de natural. Vitorino Nemésio dirá tratar-se de um livro «juvenil e ardente, concatenado com saber e amor da exatidão, e escrito com um nervo e uma elegância que farão inveja a muitos prosadores brevetados» (Diário Popular, 28.6.50). As reações foram contraditórias – houve quem lesse com entusiasmo e quem julgasse tratar-se de uma traição (mesmo sem profissão de fé anterior)… O curso histórico confirma a clarividência.
Em 1953 parte, mas recusa a condição de exilado. É apenas emigrado. «Como é que um homem nascido em S. Pedro de Rio Seco pode ser outra coisa que não português?» (JL, 6.12.86). Não aceita ser estrangeirado - «Não, não aceito. Fico furioso. Fico desesperado» (Ibidem). De facto, o seu método é o de olhar de dentro, mesmo estando de fora. «Exílio verdadeiro, o autor destas reflexões só o conheceu no interior do seu país». Paris, Hamburgo, Heidelberg, Montpellier, Salvador da Bahia. «Gostei muito de estar na Alemanha. Sobretudo em Heidelberg. Mais tarde arrependi-me de não ter aí ficado…» (Expresso, 23.9.95). Depois, Grenoble, Nice, Vence. Mas continua atentíssimo ao que se passa em Portugal.
São fundamentais os seus textos em «O Tempo e o Modo». Sentem-se, sobretudo após 1958, 1961 e 1968, os sinais da transição, lenta e com sintomas contraditórios. «O fascismo existiu e com uma perfeição quase absoluta. Mas não existiu nunca como a maioria da oposição democrática o pensou antes do 25 de Abril, e a ela continua a referir-se uma parte da classe política triunfante, simplificando-o com a espécie de violência infantil que se reserva aos papões que deixaram de meter medo». Eduardo Lourenço procura compreender Portugal quando a liberdade chega com o fim do império. Escreve não para recuperar o país, que não perdeu, mas para o «pensar» com a mesma paixão e sangue-frio intelectual com que pensava quando «teve a felicidade melancólica de viver nele como prisioneiro de alma».
Em «O Labirinto da Saudade», conclui que a imagem ideal de nós mesmos era desadequada da realidade, sendo chegada «a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou lá-longe a solução que, como no apólogo célebre, está enterrada no nosso exíguo quintal. Não estamos sós no mundo, nunca o estivemos». A conversão cultural necessária passa por um olhar crítico sobre o que somos e fazemos. Portugal, Europa, mundo obrigam a repensar o destino como vontade, seguindo a lição perene de Antero e dos seus… O ensaísta tem no seu código genético a marca fundamental de uma síntese fantástica que liga o grito de Antero e dos jovens de Coimbra e do Casino Lisbonense ao impulso futurista de Pessoa e do “Orpheu”, menos no imediato, mais no largo prazo, de quem procurou ligar a razão e o mito, o idealismo e o sentimento trágico da vida. Pensa Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, pondo em diálogo os mitos e a razão e procurando afastar a maldição do atraso.
O enigma português, em suma, não pode ser respondido ou encontrado através de qualquer simplificação – ora idealista, ora sentimentalista, ora materialista. Sá de Miranda e Herculano representam que mais vale quebrar que torcer. Camões a força criadora. Garrett a imaginação lírica. Fernão Mendes Pinto simboliza a fértil aventura ao encontro do mundo. O Padre António Vieira interroga a Deus e invetiva-o. Camilo e Eça retratam as diversas faces contraditórias da pátria. E a utopia torna-se horizonte de crítica e de exigência, e nunca fuga à realidade.
Artífice de uma heterodoxia fecunda, Eduardo Lourenço é hoje uma das consciências culturais, morais e cívicas da Europa contemporânea, ao lado de Edgar Morin, de Claudio Magris ou de Jürgen Habermas. Só a heterodoxia permite entender o nosso melting-pot, indo ao encontro do cadinho da miscigenação, ligando a razão e a emoção, percebendo a alternância cíclica do otimismo e do pessimismo. É a «maravilhosa imperfeição» como marca de complexidade e diversidade.
Aqui temos referido, com alguma frequência, a atuação decisiva de Garrett na renovação do teatro português e, obviamente, do teatro em Portugal. Reconheça-se entretanto que as duas qualificações não são necessariamente idênticas: mas são conciliatórias e, no caso de Garrett, aplicam-se ambas com total adequação e justificação.
Pois efetivamente Garrett renovou o teatro português e renovou o teatro em Portugal. Não é a mesma coisa, bem sabemos: e os séculos então decorridos não desmarcam a apreciação...
Antes pelo contrário: a Garrett se deve toda a modernização do teatro em Portugal, na sua época sem dúvida, mas abrindo caminhos que, profundamente e sucessivamente renovados a ele devem, também sem dúvida, a criação de um clima que, na época, permitiu mudanças sucessivas…
Nesse sentido, justifica-se amplamente retomarmos a referência aos três textos legais que, a partir de 1836, consagraram a grande reforma concebida e elaborada por Garrett. Já os referimos, mas mais se justifica agora a reevocação. Decorrem de uma iniciativa de Manuel da Silva Passos, que ficou na História como Passos Manoel, então Primeiro Ministro de Dona Maria II.
E assim temos:
Portaria de 28 de setembro de 1836, assinada por Passos Manoel, onde se nomeia Garrett como responsável pela elaboração de “um plano para a fundação e organização de um teatro nacional”: de notar aliás que Passos refere “os distintos talentos, literatura e patriotismo” de Garrett.
Relatório, elaborado e assinado por Garrett, datado de 12 de novembro de 1836, onde se propõe toda uma complexa reforma estrutural e cultural da atividade e criatividade artística do teatro.
Portaria de 15 de novembro de 1836, assinada por D. Maria II e referendada por Passos Manoel, na qual se cria toda a estrutura global da politica de criação do teatro em Portugal, consubstanciada num conjunto vasto de entidades, funções e áreas de intervenção orgânica e criacional.
Pois aí são criadas as seguintes entidades e respetivas funções:
Inspeção Geral de Teatros e Espetáculos Teatrais
Sociedade para a Fundação de um Teatro Nacional
Companhia Nacional de Teatro
Conservatório Geral de Arte Dramática e respetivos Concursos
Legislação para a Proteção dos Direitos Autorais.
Definição legislativa do sistema de subsídios a espetáculos e à atividade teatral em geral.
E é então de sublinhar, como aliás já temos feito, que em “Um Auto de Gil Vicente” peça algo iniciática de 1836, Garrett põe Gil Vicente a elogiar a independência e a liberdade individual. E põe Bernardim Ribeiro a defender esses valores, numa época em que não eram facilmente aceites:
“Desgraçado de quem tocar nesta mão. São duques, são príncipes? Eu sou Bernardim Ribeiro, o trovador, o poeta, que tenho maior coroa que a sua. O cetro com que reino aqui, ganhei-o, não o herdei como eles!”
Ora, é de assinalar que Garrett é exonerado por Costa Cabral em 16 de julho de 1842.
Prémio Nobel da Literatura de língua portuguesa, José Saramago (1922-2010) tornou-se uma referência essencial dos estudiosos e cultores das literaturas da nossa língua comum, encontrando na sua obra razões fortes para desejarem conhecer melhor Portugal.
«Memorial do Convento» foi publicado em 1982 e constituiu um sucesso literário, pelo tratamento do tema, pela vivacidade e ritmo da escrita, pelo domínio da língua portuguesa. É o retrato do rei D. João V e da sua magnificência, num tempo dominado pela riqueza do ouro do Brasil no reino, numa rica convergência de elementos contraditórios, bem evidenciados na complexidade das personagens escolhidas. Para Saramago a personagem fundamental, em torno da qual tudo se desenvolve, é o magnífico Convento de Mafra (com órgãos únicos no mundo, carrilhões insuperáveis, livraria extraordinária, património invejável). «Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento de Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido»...
A riqueza do ouro, transportado em arcas, contrasta com os vários operários anónimos que contribuem para a magnífica construção. E entre eles, está Baltasar Mateus, que tem a alcunha de “Sete-Sóis” porque vive atraído pela luz, tendo perdido a mão esquerda na guerra da sucessão de Espanha. Baltazar ama Blimunda Jesus, chamada de “Sete-Luas”, porque consegue ver no escuro e por dentro das pessoas. Esta, ao ter esta capacidade, consegue recolher as vontades de cada um, como nuvens abertas ou nuvens fechadas. Os dois conhecem um clérigo visionário, o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, “o voador”, marcado pelo espírito científico e pela heterodoxia religiosa, que inicia a construção de um aparelho voador, a Passarola, com o objetivo de subir em direção ao Sol, em lugares a que só Cristo e os santos tinham chegado. A concretização deste sonho torna-se uma obsessão e leva-o a viajar primeiro para a Holanda, em busca do segredo, que permitiria a Passarola voar, e depois para Coimbra, onde se doutorou. É ele, aliás, quem realiza o batismo e a comunhão de Sete-Luas e Sete-Sóis: «o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou: Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um». Após um dos voos da Passarola, Bartolomeu foge para Espanha, perseguido pela Inquisição, enquanto Blimunda e Baltasar tratam de esconder o aparelho entre os arbustos da serra e de fazer a sua manutenção. Não podemos esquecer a figura do músico Domenico Scarlatti que, a convite do Padre Bartolomeu, participa no projeto da Passarola, como testemunha silenciosa. Então une-se a ciência e a arte, como reveladoras de um espírito de inovação e de abertura ao progresso. Scarlatti instala secretamente o seu cravo na Quinta do Duque de Aveiro, onde toca a sua música e inspira a construção da Passarola, símbolo dos novos tempos das luzes. E quando Blimunda fica com a estranha doença do esgotamento na recolha das vontades, a arte do músico provoca uma cura completa. Um dia, Baltasar ficou preso à passarola, enquanto fazia a sua manutenção, e os cabos que a impediam de se elevar nos céus rebentaram, tendo sido levado pelos ares. A aeronave então despenha-se e Baltasar é capturado pela Inquisição, acusado de bruxaria. Blimunda recolhe, no epílogo do romance, a vontade de Baltasar, enquanto este morre, condenado à fogueira. E quem é Baltazar? Um homem simples, rudimentar, resignado, terno e fiel, que ama Blimunda, a qual compensa a mão que lhe falta, mas que lhe permite compreender para além do que vê, aceitando o que a vida lhe oferece. E no final é Blimunda quem sobrevive, ela que aprendera tudo o que sabia ainda no seio de sua mãe, onde estivera de olhos abertos.
Se o Memorial é referência essencial, importa lembrar a sombra de Fernando Pessoa e de Ricardo Reis, médico e latinista, nascido em 19 de setembro de 1887. É um homem solitário, que gosta de almoçar em pequenos restaurantes. E pede aos empregados que ponham o lugar à sua frente para um companheiro imaginário. E imagina histórias sobre hóspedes que frequentam o hotel. Cria familiaridade com o gerente, Senhor Salvador, e com Pimenta que lhe carrega as malas, mas também com Lídia, a empregada que lhe limpa o quarto, onde lhe serve o pequeno-almoço. Mas não deixa de chamar a atenção da polícia política, que se interroga sobre a verdadeira razão da sua vinda do Brasil. As notícias que lê todos os dias nos jornais desenham uma pátria pacífica, um oásis num mundo agitado. É “onde o mar acaba e a terra principia, chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas do barro, há cheia nas lezírias” … Reis chega no dia 29 de dezembro de 1935. Os periódicos, em geral, pintam um retrato idílico do país em que Salazar faz o seu caminho. No fim do interrogatório, a que não escapa, na PVDE sente à saída da António Maria Cardoso um fedor a cebola que exalava Victor, o inevitável informador. E o certo é que noutros momentos esse cheiro característico rondava por perto. Ricardo Reis encontra-se com País que deixara anos antes por fidelidade às suas ideias monárquicas… Mas, com Fernando Pessoa, com a revolta dos marinheiros de setembro de 1936 em fundo, vai desvanecer-se no alto de Santa Catarina sem que alguém desse por isso… “O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui onde o mar se acabou e a terra espera”...
Sendo a dilatação da fé uma das razões para a expansão marítima, viajavam nas naus sempre missionários que se estabeleciam nas terras descobertas ou conquistadas, evangelizando e convertendo povos ao cristianismo.
Com referência a esses viajantes da fé cristã, refiram-se os padres José de Anchieta, Manuel da Nóbrega, António Vieira e frei Cristóvão de Lisboa (Brasil), e S. Francisco Xavier e S. João de Brito (Ásia).
Descoberto o caminho marítimo para a Índia, assegurado e consolidado o Império pela África, Ásia, América e Oceânia, através de nomes como D. Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque, Lopo Soares de Albergaria e D. João de Castro, o rei D. Manuel I tomou o título de Rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar, em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, título pomposo coroando e glorificando essa globalização.
Há a ter presente o conhecimento geográfico e a exatidão náutica que as viagens marítimas portuguesas proporcionaram à Europa, porque as suas cartas e rotas eram as melhores, sendo por isso pioneiras dos impérios marítimos europeus.
Da escola cartográfica portuguesa, nasceu a cartografia moderna, com cartógrafos como Diogo e Lopo Homem, Pedro e Jorge Reinel, Luís Teixeira, João Freire, Sebastião Lopes, Manuel Godinho de Erédia e Fernão Vaz Dourado.
Escreve o historiador britânico J. H. Plumb: “(…) o fascínio pela observação exata encontrava-se na maioria dos grandes exploradores portugueses. Traçavam as suas rotas nas cartas com uma exatidão espantosa. Anotavam cuidadosamente os animais, a vegetação, os minérios e as raças desconhecidas que iam encontrando, à medida que desciam a costa de África. Nada foi deixado ao acaso nos seus descobrimentos. Foram deliberados, bem programados e audaciosamente executados (…)” (introdução ao livro de Charles Boxer “O Império Marítimo Português 1415-1825”).
Dessa aventura pelos mares, surge a “era gâmica”, nas palavras do historiador inglês Arnold Toynbee, contactando com todo o género humano e todas as geografias.
A tomada de consciência da existência de um outro grupo de seres humanos, a troca de olhares e os gestos que acompanharam o primeiro encontro entre dois grupos de seres humanos foram o princípio da globalização cultural - a fala, a escrita, a discussão, o texto impresso, virão depois.
A confraternização ou a luta que se seguem a esse encontro, a negociação ou a violência que os acompanham são tidos como o princípio da globalização política, passando a globalização político-militar após a vinda das armas, exércitos, diplomatas e tratados.
A gestão das intenções em relação à posse das coisas, em termos de propriedade, e que eventualmente irá mudar como corolário das primeiras negociações ou confrontos, é o princípio da globalização económica.
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) é uma das grandes referências da poesia contemporânea e da cultura portuguesa. Clássica e moderna, encontra e prolonga Fernando Pessoa por um caminho próprio e diferente. E Eduardo Lourenço afirmou que “desde os tempos de Pascoaes, a poesia portuguesa esforçava-se por conciliar Apolo e a sua mítica expressão solar da vida com Cristo, sombra sob tanto excesso de sol, deus morto para que a morte não fosse confundida com a vida digna desse nome. Se essa conciliação teve lugar em algum lugar foi na poesia de Sophia”. Sentimos a coexistência de Atenas e Jerusalém. Daí ter nascido “precocemente clássica”, talvez fora de uma modernidade, por definição em crise, mas ciente da importância dos novos caminhos em busca da dignidade do Ser. E assim Sophia chega a Nietzsche e à ligação dionisíaca, através de um “Cristo Cigano” – que não espera que o crucifiquem e que se oferece nu ao esplendor da vida que misericordiosamente o assassina – “mas a sua morte despe-o da sua aparência solar e esculpe-o em redentora agonia onde o rosto do Ausente se revela”. E sentimos a sede de justiça, que leva a não fechar os olhos ao “espantoso sofrimento do mundo”. Francisco de Sousa Tavares disse, na melhor fórmula, que Sophia "tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens". Eduardo Lourenço diagnosticou "uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio" que deve "ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional". Vemos, ouvimos e lemos – não podemos ignorar.
Contra a ambiguidade, “sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem”. E lembremo-nos do entusiasmo posto por Sophia na tradução de «Anunciação a Maria» de Paul Claudel. Sente-se a proximidade relativamente ao artista de «Arte Poética». «Esta é a noite / Densa dos chacais / Pesada de amargura / Este é o tempo em que os homens renunciam».
Longe da exclusiva busca de doçura, o que há, sim, é a permanente demanda de uma vida de drama, de dúvida e de contradição. Tomé e Pedro estão sempre presentes, antes e depois de pôr a mão na ferida aberta ou de ouvir o galo cantar, sempre perante o medo terrível que leva Mara ao ato de desespero perante Violaine. «Aquele que partiu / Precedendo os próprios passos como um jovem morto / Deixou-nos a esperança». É aqui que a poética de Sophia se aproxima e se afasta de Claudel. Aproxima-se porque há a procura silenciosa da esperança no equilíbrio da palavra e da justiça, nunca a confusão com qualquer certeza intolerante. Mas distancia-se, uma vez que não pode haver ambiguidade na luta agónica. Violaine é símbolo, a um tempo, da incerteza e da força, num gesto inusitado e necessário do beijo ostensivo ao leproso.
Cidadã de reflexão e talento, foi deputada à Assembleia Constituinte, sendo marcante o discurso que fez sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar. “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2 de Setembro de 1975). A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. E, a propósito, invocava o terrível grito pronunciado no paraninfo da Universidade de Salamanca perante Unamuno: “Morra a Inteligência!”, para que nunca mais fosse possível ouvi-lo. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”.
João Bénard da Costa disse que devemos ter cuidado ao falar de Portugal como País de Poetas. Nem sempre foi assim, apesar do fundo poético da língua portuguesa nascida do galaico-português língua dos trovadores. No entanto, o século XX é uma exceção. Pessoa, Sá-Carneiro e “Orpheu”, Pascoaes, Torga, a geração da ”Presença”, os “Cadernos de Poesia” (Cinatti, Blanc de Portugal, Tomaz Kim), Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Ruy Belo, David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, Pedro Tamen, Manuel Alegre, Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta, Nuno Júdice… Não somos exaustivos, para não ser injustos.
No Centro Nacional de Cultura, Sophia teve um papel fundamental, sobretudo depois de 1965 e do fecho da Sociedade Portuguesa de Escritores. Aí se juntaram os mais jovens poetas, como se juntaram também com Fernando Amado os novos atores, que fizeram o novo teatro e o novo cinema.
Sophia é exemplo de um verdadeiro “momento de poetas”.
Obrigada pelo teu postal. Obrigada pelo modo como escreves. Obrigada por nunca teres partido.
Fizeste bem em adquirir o anel que descreves e a pulseira a jogo. Essa prata baça que referes, essas pedras antigas do Nepal irão casar com os teus dedos longos e com os teus pulsos estreitos e brancos, e ao adereço, chamarás peça astral. Pois sim, acho adequado.
Dulce,
Tenho duas notícias diferentes para ti. Nenhuma te queria dar, mas insistes, e, na verdade, desconheço por que razão entendo que aí, em Lassa, no mosteiro que escolheres, as dominarás melhor.
Assim, a morada que pedes está vaga. Por outras palavras, não te será acesso a quem queres, pois foi viver para uma cidade perto de Paris. Apenas sei que foi uma decisão que não pôde adiar mais, por desamparo, por tanto acrescido de aflições, tudo ligado aos seus problemas familiares. Às vezes, a infelicidade é um tempo de granito, é mesmo o advir da solidão pesada, da que não despega.
E querida Dulce, apetecia sumir-me em vez de te dar a segunda notícia: a nossa Joana deixou-nos fisicamente. Tenho para ti um saquinho de linho que ela me encarregou de te entregar. Dentro dele e por sua mão escrevente, a razão de lhe faltar tempo.
Preciso que te recordes que em ambas, luz e trevas, dorme o mesmo mistério, a mesma indecifração.
Longe e bem perto tudo é uma possibilidade.
Que mais dizer-te?
Custa-me que a reflexão sobre a morte seja um sinal de vida, mas afinal de que outro modo se pode olhar a fundo as coisas ainda abertas?
Em Lassa a eternidade poderá ser diferente? Não sei. Coloca um papel ao vento, te peço, por ti e por mim, e mediada pelos mosteiros, talvez a razão de ser de tu estares aí, e eu aqui.
Li no teu postal que irás pela Índia um mês. Se encontrares um deus para todas as condições, lembra-te de nós duas.
Foi a 20 de Julho de 1895 que Ramalho Ortigão, Joaquim de Vasconcelos, José Queiroz e o Arcebispo de Mitilene D. Manuel Baptista da Cunha, numa visita a S. Vicente de Fora, descobriram as tábuas que constituem o políptico de S. Vicente atribuído a Nuno Gonçalves, pintor régio de D. Afonso V.
A face do Infante D. Henrique permitiu uma importante identificação por Vasconcelos, por exata semelhança com a que se encontra na “Crónica dos Feitos da Guiné” de Zurara na Biblioteca Nacional de Paris. As tábuas teriam sido reencontradas em 1882 por Columbano, acompanhado por sua irmã Maria Augusta Bordalo Pinheiro (que teria chamado a atenção para as pinturas) e pelo Monsenhor Elviro dos Santos, estando aparentemente esquecidas entre os materiais das obras que aí decorriam.
No verão de 1895 Joaquim de Vasconcelos escreveu dois artigos no “Comércio do Porto” sobre os painéis nos quais exprimia admiração pela força expressiva da pintura constituída por figuras que representariam diversos estratos sociais, convergindo numa figura central duplamente figurada. Joaquim de Vasconcelos chamava a atenção da opinião pública para a necessidade de as tábuas serem removidas para um lugar mais seguro, com vista a uma melhoria das condições de conservação. Dizia Joaquim de Vasconcelos: “Nas quatro taboas não há vestígios de paisagem ou de arquitetura. Todo o espaço era pouco para tantas figuras de tamanho quase natural. Nada há de acanhado, de soi-disant gótico no desenho; panejamentos esplendidos, sentindo-se a anatomia sempre por debaixo. A pintura é sempre a óleo, o desenho de uma firmeza exemplar, a perspetiva bem estudada e até atrevida. O pintor caracteriza segundo os preceitos do grande Van Eyck, e poderia muito bem ser um dos muitos portugueses que acompanharam a duquesa de Borgonha à Flandres, e lá estudaram a fundo a arte”.
Francisco de Holanda (1517-1585) tem referências ao altar de S. Vicente na Sé Catedral, o que tem servido de ajuda no estudo dos mistérios dos painéis.
Em 1909 e mercê dos muitos esforços feitos desde 1905, o historiador José de Figueiredo e futuro fundador do Museu de Arte Antiga, assiste, em sessão da Comissão Executiva da Academia Real de Belas-Artes, à apresentação da disposição do Conde dos Olivais e Penha Longa para custear os trabalhos relativos à conservação das tábuas. Luciano Freire foi nomeado como responsável pelo trabalho de tratamento e integração das pinturas, com a autorização do Cardeal Patriarca D. António Mendes Belo e despacho do Ministro da Fazenda. Numa oficina do Convento de S. Francisco, Luciano Freire levou a cabo a tarefa essencial de restauro, concluída na Primavera de 1910. E logo que os quadros ficaram libertos das repinturas sucessivas e de enegrecidos vernizes, verificou-se que se tratava de dois trípticos. Apareceu então a obra de arte no seu esplendor inicial de conjunto.
Os Painéis apresentam-nos um agrupamento de 58 personagens em torno da dupla figuração de S. Vicente, solene e monumental assembleia representativa da Corte e de vários estados da sociedade portuguesa da época, com destaque para a Cavalaria e para a Igreja nas suas diversas hierarquias, em ato de veneração a S. Vicente, patrono e inspirador da expansão militar quatrocentista no Magreb. Tais personagens, poderosamente caracterizadas pela concentração expressiva dos rostos e atitudes e pela requintada definição pictórica dos trajes e seus adereços, aliam, nesta encenação cerimonial, a intenção de uma evocação narrativa a uma visão contemplativa.
Embora permaneça envolta em mistério esta representação, na ausência de testemunhos claros relativamente à sua criação, intenção e significado da obra, ela está associada a uma dupla função, votiva e evocativa, provavelmente respeitante aos triunfos militares da dinastia de Avis no norte de África. É um singular “retrato coletivo” na história da pintura europeia, e uma obra de grande importância simbólica na cultura portuguesa. Daí os desafios interpretativos, quase policiais e com efeitos por vezes trágicos, que tem suscitado nomeadamente no domínio das identificações iconográficas, exercício mais ou menos imaginativo que tem alimentado uma polémica secular e até ao momento inconclusiva. Temos assim: os painéis: dos frades, dos pescadores, do Infante, do Arcebispo, dos Cavaleiros e da Relíquia – sobre os quais há basta literatura e muita especulação.
Conhecemos o facto de três dos nossos modernistas, Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso e Santa Rita Pintor terem afirmado a sua própria militância artística em frente aos Painéis – bem como a circunstância de a ordenação e apresentação da obra corresponder à proposta de Almada Negreiros considerando as linhas apresentadas no chão da pintura. A obra não estará, no entanto, completa. Estamos, porém, perante uma das grandes referências da cultura portuguesa, com projeção universal.