Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Se há monarca português referenciado como alguém de exceção, é sem dúvida D. Dinis. E o rei poeta leva-nos a lembrar a importância dos trovadores na origem da nossa cultura. A poesia trovadoresca do amor cortês floresceu na Península, marcada pelos caminhos de peregrinação de Santiago, sob forte influência provençal. Para Carolina Michaëlis, temos, no noroeste peninsular, quatro períodos da poesia inicial: pré-afonsino (1200-1245), afonsino (1245-1280), de Afonso X e do nosso Afonso III, dionisíaco (1280-1325) e pós dionisíaco (1325-1350). A lista dos poetas é vasta e inclui João Soares de Paiva, João Garcia de Guilhade, Pero da Ponte, Pai Gomes Charinho, João Aires de Santiago, Afonso X, João Soares Coelho, João de Lobeira (célebre autor do Lai de Leonoreta e talvez de Amadis de Gaula), Rui Queimado e no período de D. Dinis, além do próprio, Afonso Sanches, filho natural do rei. Antes dos cantares de Amor em que a voz é do poeta, temos as cantigas de Amigo em que fala a donzela e ainda as de escárnio e maldizer, em que prevalece o tom picaresco. A originalidade da língua portuguesa está assim no seu fundo poético. O Tratado de Alcanizes é um símbolo político. É o tratado de fronteiras mais antigo da Europa. Castela e Aragão reconheciam, de facto, a D. Dinis uma autoridade inequívoca. A Crónica de 1344 recorda, aliás, a solene comitiva de mais de mil nobres que o rei de Portugal levou à fronteira castelhano-aragonesa, em Junho de 1304, por ocasião da arbitragem a que foi chamado. A ocasião foi aproveitada para selar o solene tratado de paz envolvendo os três reinos, Portugal, Castela e Aragão. O prestígio de D. Dinis não precisava demonstração e não tardaria a fazer-se ainda o consórcio do infante D. Afonso com D. Beatriz, irmã de Fernando IV. Essa autoridade também tem expressão na política interna: de reordenamento do aparelho administrativo; de atribuição de forais aos municípios; de acompanhamento das comunas judaicas e de “mouros forros”; de regularização na cobrança das receitas; de fomento das atividades agrícolas e comerciais; de concessão de feiras francas (no Douro e na estrada da Beira); de realização de Inquirições Gerais e de afirmação de reserva para o rei da distribuição de poderes e dons aos membros da corte; de adoção de novas regras de recrutamento militar nos concelhos (“besteiros de conto”); da nacionalização das Ordens religiosas militares (Santiago, Templários/Cristo); da criação de coutos de homiziados, que previam o cumprimento de penas em zonas fronteiriças pouco povoadas; da concretização de uma lei sobre tabeliães e selos dos concelhos; da criação da bolsa de mercadores para apoio aos portugueses que comerciavam em França, Inglaterra e Flandres, na proteção da atividade mineira (ferro, mercúrio, ouro…); e da nomeação do genovês Manuel Pessanha para o comando da frota real (1317). O casamento em Junho de 1282 com D. Isabel (Rainha Santa), filha de Pedro III, o Grande, de Aragão, permitiu uma ligação diplomática e económica fundamental. E temos de recordar a importância da influência franciscana, a abrir novos horizontes e mentalidades, e uma nova visão do mundo e da história. Como salientou Jaime Cortesão, as festas do Espírito Santo nos Açores ou no Brasil são uma sequência da presença franciscana a partir da Rainha Santa Isabel. A Livraria de D. Dinis é um exemplo notável de abertura de espírito, de curiosidade intelectual e de sensibilidade (ou não fosse ele um notável poeta). O Estudo Geral, futura Universidade, referenciado em 1 de Março de 1290, constitui indicador de que a autonomia política exigia a criação de uma elite intelectual, de clérigos e legistas, apta a corresponder às novas exigências de uma Administração pública centralizada e competente, sem recurso a instâncias estrangeiras. Cerca de 1296, a adoção do romanço ou língua vulgar (o galaico-português) nos documentos oficiais da chancelaria constituiu medida de profundo alcance, permitindo a consolidação da língua portuguesa. A medida levou à consagração da prevalência da instância civil sobre a eclesiástica. Fronteira, língua, Estudo Geral, independência económica (agricultura, marinha e pesca) definem ventos novos a soprar num momento de reforço da “autonomia política e cultural”. O Estado constitui-se e a Nação começa a consolidar-se. Fernando Pessoa chamou ao rei, com justiça, “plantador de naus a haver”, fundador da nova potência marítima…
Aí está um tema e um problema sempre presentes, pois o que há é sempre nós e os outros, vivendo e convivendo, enriquecendo-nos mutuamente ou destruindo-nos uns aos outros. A pergunta essencial é então: porque é que se passa tão fácil e rapidamente do encontro mutuamente constituinte e enriquecedor à suspeita, à luta e ataque destruidores?
Na relação sadia com o outro/outros, há dois pressupostos essenciais. Um diz a dignidade inviolável de toda a pessoa humana, independentemente do sexo, da cor, da etnia, da religião... Outro pressuposto é a tomada de consciência de que o outro é sempre outro, igual e diferente. O outro, sempre cultural, pois o ser humano é resultado de uma herança genética e de uma cultura em história, porque é, simultaneamente, tanto do ponto de vista pessoal como grupal e societal, um outro eu e um eu outro — outros como nós e outros que não nós —, é sentido constantemente como fascínio e ameaça.
Há uma visão dupla do outro, que tanto pode ser idealizado como diabolizado, mitificado positivamente ou negativamente. Atente-se na ligação entre hóspede e hostil. Assim, hospital vem do latim hospite, que significa hóspede, também em conexão com hotel. Como ser-no-mundo, o Homem é, logo na raiz, hóspede: somos hospedados no mundo. Mas a palavra está ligada também a hoste, donde provém hostil — também há o hostel. Não nos pedem à chegada a um hotel a identificação, pois não se sabe quem chega por bem ou por mal? E a fronteira, porta de entrada e de saída — em conexão com fronte: a nossa fronte somos nós voltados para os outros, mas ao mesmo tempo ela é limite, demarcação —, não é ao mesmo tempo o espaço de acolhimento e da independência a defender frente ao invasor? O mesmo se pode ver na análise da palavra encontro. Também aqui é importante observar como, analisando o étimo, comparece não só a relação constituinte com o outro, mas também a indicação do embate e contraposição, assinalados no contra da palavra encontro, que aparece igualmente no espanhol, encuentro, no francês, rencontre, no alemão, Begegnung, com o gegen, que significa contra. Nesta linha, estão também o anti positivo e irrenunciável, cujo fundamento são os direitos humanos — a tolerância tem a sua barreira no intolerável: pense-se no anti-racismo e no anti-esclavagismo —, e os anti negativos, que têm como base fundamental a ignorância e o medo ou desígnios de poder, levando à construção social do outro como ameaça, bode expiatório, encarnação do mal e o inimigo — pense-se, por exemplo, nos judeus, nos muçulmanos, nos protestantes, nos jesuítas, nas mulheres: anti-semitismo, anti-islamismo, antiprotestantismo, antijesuitismo, antifeminismo —, a menosprezar, marginalizar, humilhar e até abater e eliminar.
Aí está, pois, a tentação constante da redução do diferente ao mesmo, porque isso dá segurança. Mas o mesmo não comunica. A identidade só se dá na e pela alteridade. Só há ser humano com outros seres humanos. Ser e ser-em-relação auto-implicam-se. A alteridade não é adjacente, acrescentada, a pessoa só existe no encontro com o outro/outros. Sem tu não há eu, e nós somos nós na presença e no encontro com os outros.
As duas atitudes contrapostas frente ao outro estão tipificadas em dois passos da Bíblia. No mito de Babel, no livro do Génesis, que representa a arrogância, a dominação e a confusão. No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. A arrogância imperial de Babel anula a diferença, o amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar.
Na relação com o outro, há um terceiro elemento fundamental. A identidade do ser humano não é fixa, mas histórica, processual, a fazer-se. Neste domínio, mesmo se discutível, há um texto célebre do filósofo E. Levinas, que chama a atenção para duas figuras paradigmáticas, na relação com o outro: Ulisses e Abraão. Ulisses, depois da Guerra de Troia, de volta a casa, vive a aventura de encontros múltiplos, experiências variadas, travou combates, enfrentou obstáculos sem fim, conheceu o diferente. Coberto de vitórias e glória, regressa. Mas chegado a casa, mesmo disfarçado, “diferente” do Ulisses que partira, é ainda o “mesmo”, que até o seu cão, pelo faro, reconhece. Ulisses representa o herói do regresso, que contactou com o diferente apenas para, num mundo domesticado e assimilado, reduzi-lo ao mesmo. Abraão ouviu uma voz que o chamava, e partiu da sua terra, para nunca mais voltar. A sua viagem vai na direcção do novo, do não familiar, do diferente, do Outro. Ninguém o espera num regresso ao ponto de partida. Há só uma Palavra de promessa que o chama para um futuro sempre mais adiante. Abraão ouve, caminha, transcende. A sua identidade transfigura-se a cada passo, é processual, histórica, em transcendimento. Não rompe com o passado, mas o seu êxodo vai no sentido de um futuro imprevisível e sempre novo.
Na actual situação do mundo globalizado, como salvaguardar, no contexto de identidades inevitavelmente compósitas, o equilíbrio tensional entre a universalidade e a singularidade, sem rupturas nem esquizofrenias, sem rigidez nem fixismo, sem trair as origens nem enregelar nelas? A cultura da paz supõe e implica a sinfonia das nações, grupos e povos em contraponto, aberta à transcendência, em que Deus é o Outro de todos os outros, garante da dignidade de todos, incluindo as vítimas, e da unidade dos diferentes, a caminho da plenitude.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 2 AGO 2020