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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

(VII) MESTRE GIL E O AUTO DA LUSITÂNIA

 

Mestre Gil, ou simplesmente Gil Vicente (c. 1465-1536), é uma das referências fundamentais da cultura e da língua portuguesas. Para variar, pouco se sabe dele, ou pelo menos muito menos do que gostaríamos, mas lê-lo e seguir a sua obra multifacetada e rica, é o modo que temos para compreender as raízes da nossa sociedade. Poderíamos escolher muitas das suas obras, algumas das quais quase sabemos de cor (ou deveríamos saber) – mas centramo-nos no “Auto da Lusitânia”, recordando o que Almada Negreiros audaciosamente representou no célebre painel da Faculdade de Letras de Lisboa. E a audácia do modernista representou os dois protagonistas – Todo o Mundo e Ninguém – como irmãos gémeos, que verdadeiramente são. Não os apresenta assim mestre Gil, nos prolegómenos da peça, mas, como homem grande de teatro, Almada Negreiros fez uma interpretação livre da caracterização das personagens. Como acontece com a maior parte dos Autos, Comédias e Farsas de Gil Vicente, há um fundo ético, que não significa sisudez, mas que representa aguda consciência do picaresco, que muitos teimam em desvalorizar. Mas este fundo lírico e religioso levam-nos às raízes trovadorescas, designadamente a temas das “Cantigas de Santa Maria” e do “Cancioneiro Geral”… Numa obra muito vasta, temos os Autos de Devoção (como da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, da Alma de Mofina Mendes e Trilogia das Barcas), as Comédias (como a do Viúvo), as Tragicomédias (como D. Duardos, e Amadis de Gaula), as Farsas (como Quem tem Farelos?, Auto da Índia, Velho da Horta e da Lusitânia, com o entremez Todo o Mundo e Ninguém) e as Obras Miúdas (como o Pranto de Maria Parda). Neste último exemplo, não esquecemos o que António Tabucchi disse sobre o nosso lado trocista e de culto de trocadilhos. E, para escândalo de alguns, citou no “Die Zeit”, como símbolo português, o Pranto de Maria Parda, onde ela diz “cada traque que eu dou é um suspiro de saudade”. Extraordinário exemplo, bem portuguesinho (como diriam Ruben A. e Nuno Bragança). Quanto ao “Auto da Lusitânia”, é de 1531, por ocasião do nascimento do príncipe D. Manuel, filho de D. João III, apenas foi representado, em 1532, quando a corte de regressou a Lisboa, depois de ter passado o efeito da epidemia de peste na capital. A primeira parte representa a vida de uma família judaica de Lisboa. Lediça, a filha do alfaiate Jacob, varre a "logea". E entra um cortesão galanteador fazendo-se a jovem desentendida. Sem sucesso, o atrevido sai, entrando o pai alfaiate, vindo de negócios na cidade. A família faz o trabalho rotineiro, entoando canções. Nisto, surge um amigo, que interrompe o trabalho, dizendo que é preciso "inventar" um auto, já que a família real está prestes a chegar. A segunda parte aborda a origem mítica de Portugal, fruto da união entre a ninfa Lisibea e o Sol, que herda a beleza materna. E Lusitânia desperta em Portugal, um caçador grego, profundo amor, enquanto a ninfa Lisibea com secretos ciúmes da filha, morre, e é sepultada onde se veio a edificar a cidade de Lisboa. Assiste-se então ao frutuoso casamento de Portugal com a princesa Lusitânia. Dinato e Berzebu, encarregues de relatar a Lúcifer tudo o que se passa, descrevem o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém. E Berzebu conclui com a célebre frase "Todo o Mundo é mentiroso e Ninguém diz a verdade”. Elogia-se assim a sobriedade e a sabedoria, qualidades que a Lusitânia e Portugal representam nestas duas almas que personificam a diversidade portuguesa… Discute-se se Gil Vicente é o ourives da belíssima Custódia de Belém, Teófilo Braga disse tratar-se de uma só pessoa, o ourives e o poeta, enquanto Camilo Castelo Branco defendia duas pessoas distintas. Teófilo Braga mudaria de opinião, mas José Alberto Lopes da Silva avança uma dezena de argumentos para provar que Gil Vicente era ourives quando escreveu a sua primeira obra. O certo é que o mistério persistirá.

 

GOM

 


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A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

LX - VIAGENS, VIAJANTES E O FATOR LÍNGUA (II)

 

Foi no século XVI que a fixação da língua portuguesa se consolidou, tendo contribuição decisiva a invenção da imprensa, permitindo a divulgação do livro em larga escala.

 

Genuínos cabouqueiros do nosso idioma foram D. Dinis (ver texto anterior), Fernão Lopes (em especial na Crónica de D. João I), D. Duarte (Leal Conselheiro), D. Pedro (Tratado da Virtuosa Benfeitoria), Gil Vicente, Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro.

 

Também a palavra escrita na literatura e na cultura em geral assumiu lugar de destaque, inclusive via disseminação pelos descobrimentos, em que o rei poeta e visionário, plantador de naus a haver, salvador dos templários portugueses pela criação da ordem militar de Cristo, fundador da primeira universidade portuguesa e da instituição do português como língua oficial da corte, teve papel estratégico de engenho e arte. 

 

Em “Os Lusíadas”, o Velho do Restelo representa a política de fixação e da continentalidade europeia, sendo uma alegoria da Europa, dizendo esta a Portugal para não partir e ficar. Mas Portugal partiu, “indo a outros lugares que o onde estamos”, surgindo uma nova cultura ligada àquilo a que chamamos literatura portuguesa de viagens, e a literatura científica associada, onde a palavra escrita é rainha.   

 

A ciência e historiografia quinhentista floresceu e consolidou-se com nomes como os de Duarte Pacheco Pereira (Esmeraldo de Situ Orbis), Pedro Nunes (Tratado em Defesa da Carta de Marear), João de Castro (Roteiro de Lisboa a Goa e do Mar Roxo), João de Barros (Décadas da Ásia), Diogo do Couto (Diálogo do Soldado Prático), Damião de Gois (Crónica do felicíssimo Rei dom Emanuel de gloriosa memória e a Crónica do Príncipe Perfeito), Gaspar Correia (Lendas da Índia),  o naturalista Garcia da Orta que, em 1563, escreve: “Digo que se sabe mais agora em um dia pelos Portugueses, do que se sabia em 100 anos pelos Romanos” (“Colóquio dos Simples e Drogas da Índia”). De igual modo se podem mencionar Tomé Lopes (“Diário da Segunda Viagem de Vasco da Gama à Índia”, 1502), D. Francisco Álvares (“A Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias”, 1540) e Fernão Lopes de Castanheda (“História dos Descobrimentos e Conquista da Índia pelos Portugueses”, 1551). 

 

Fernão Mendes Pinto, com a sua “Peregrinação” é, para muitos, o iniciador, dentro da cultura ocidental e mundial, da “primeira tomada de consciência da unidade do mundo através da sua diversidade - consequência do encontro de civilizações resultantes dos descobrimentos dos séculos XV e XVI” (António José Saraiva, “Prefácio” a Fernão Mendes Pinto, Peregrinação e Outras Obras, Livraria Sá da Costa, 61, vol. I, p. 25). Invertendo o exotismo literário e turístico do século XIX e princípios do século XX, tido como diletante e pretensioso para o preconceito de superioridade de rico e letrado transeunte, “em Fernão Mendes Pinto, pelo contrário, encontramos uma adesão sincera e emocionada ao mundo maravilhoso que percorreu. Não é um turista, é um homem que não se cansa de aprender, com o entendimento, com os ouvidos, com os olhos”(op. cit.).

 

Gilberto Freyre, em “Aventura e Rotina”, descreve-o assim: “Fernão foi soldado e foi marinheiro mas espalhou-se de tal modo noutras atividades - comerciante, médico, missionário, embaixador - que sua figura permanece a do mais extraordinário homem-orquestra que já nasceu em Portugal”

 

De Fernão Mendes Pinto, a propósito de “Peregrinação”, há o trocadilho Mentes, Pinto? - Minto, porque algumas páginas de aventuras e memórias autobiográficas pelas terras do Oriente pareceram inverosímeis aos ocidentais de então, porque portadoras de inusitadas e surpreendentes novidades…

 

Um Fernão Mendes Pinto cada vez mais conhecido como um valor literário de sentido universal, maior, neste sentido, para alguns, que o do próprio Camões, prejudicado por um heroísmo e nacionalismo épico mais excessivo. 

 

07.08.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício