Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

 

(X) CAMÕES E «OS LUSÍADAS»

 

Camões é um todo que, se soubermos lê-lo, nos enche de ventura, não sendo por acaso símbolo pátrio. A sua obra multifacetada está na encruzilhada das grandes componentes culturais das nossas letras. A lírica é inultrapassável, na tradição trovadoresca, a épica ombreia com a melhor tradição clássica, e todos os géneros que o autor pratica são seguramente cultivados, sempre com mestria. E até o fino humor é usado com a melhor ironia, como no delicioso episódio de Fernão Veloso… Não admira o verdadeiro culto que lhe votava Jorge de Sena, sempre com tão exigentes critérios de julgamento. Vítor Aguiar e Silva e Vasco Graça Moura demonstram a suprema valia, a cada passo. Infelizmente a leitura de Camões não tem sido servida pela melhor pedagogia. Seja na lírica, seja na épica dá sempre para entrar em Camões pela porta grande. Basta ler com olhos de ver e sem tentações formalistas. Com sólida formação e conhecimento da vida e do seu tempo, embebeu-se não só da existência comum, mas também da cultura greco-latina como nenhum dos nossos escritores e, segundo Rodrigues Lapa, teve “a felicidade de viver e ser criado num tempo excecional, em que as disciplinas humanísticas, trazidas até cá por grandes professores, florescia entre nós intensamente”. E oiçamos sempre: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”. Luís de Camões em “Os Lusíadas” representa a maturidade poética da língua portuguesa. Toda a obra do grande épico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. Deveremos, por isso, ler Camões, ao menos nos seus momentos mais marcantes. O poema divide-se em 10 cantos, compostos em oitava rima, totalizando 8.816 versos, na chamada medida nova, predominando os decassílabos heróicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tônicas. “Os Lusíadas” têm cinco partes, segundo a tradição clássica: Proposição, Invocação das Tágides, Dedicatória ao Rei D. Sebastião, Narração e  Epílogo. A narração compreende três ações: a viagem de Vasco da Gama, a narrativa da história de Portugal e as intervenções dos deuses do Olimpo. Nos Cantos I e II,  narra-se a introdução e o Concílio dos Deuses, para deliberar sobre o destino dos novos Argonautas. Baco é crítico dos portugueses, Vénus e Marte, tomam a sua defesa, com a concordâcia de Júpiter. Vasco da Gama está no Índico, próximo de Moçambique. Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. No Canto III, começa o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato, da Reconquista, da Primeira Dinastia, da Casa de Borgonha, de Ourique até à morte de Inês de Castro. No Canto IV, prossegue a narrativa, fala-se da revolução de 1383, de Nuno Álvares Pereira, de Aljubarrota, do Mestre de Avis, de Ceuta. E começam os episódios do início da viagem. D. Manuel sonha com os rios Indo e Ganges, a profetizarem sucessos e perigos no Oriente, e pede a Gama que monte a esquadra para concretizar a visão, mas na partida, o velho Restelo previne contra a “gloria de mandar e a vã cobiça”. No Canto V, Gama fala do Cruzeiro do Sul, do fogo-de-santelmo, até ao citado relato picaresco do Fernão Veloso. No Cabo das Tormentas, o Adamastor simboliza a superação do medo.  No Canto VI, Baco desce ao palácio de Neptuno e incita os deuses marinhos contra Vasco da Gama, mas Vénus intervém. Veloso entretém os companheiros com a narrativa cavalheiresca dos Doze de Inglaterra. E os navegadores avistam Calicute. Nos Cantos VII e VIII, o samorim determina que o governador receba Gama, que o visita e oferece a amizade dos portugueses. Paulo da Gama esclarece o governador acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras e conta os feitos dos heróis da pátria. Mas os muçulmanos intrigam, Gama é preso e tem de negociar a liberdade, em troca de mercadoria. Nos Cantos IX e X, depois de diversos incidentes, o samorim ordena que a armada possa levantar ferro e iniciar o regresso. E temos o longo episódio da Ilha dos Amores, já que Vénus decide premiar os navegadores numa ilha paradisíaca. O epílogo do poema contém as lamentações, como que um desabafo de Camões por todas as incompreensões sofridas. Mas fica-nos a reflexão sobre a exigência de porfia e de trabalho aturado para se alcançarem os sucessos necessários. Não por acaso, Camões inicia o poema épico citando o início de “A Eneida”: “Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris…”. Como em Dante, é sob a invocação de Virgílio que um tema tão sublime é tratado…

 

GOM

 

 >> 30 Boas Razões para Portugal no Facebook

 

A VIDA DOS LIVROS

De 10 a 16 de agosto de 2020

 

"Um Jantar de Escritores – Seleção de Textos e Notas Epicuristas" de José Viale Moutinho (Colares Editora, 2015) é um repositório de receitas culinárias com a particularidade de contarmos com cicerones célebres da nossa literatura.

 

 

UMA REUNIÃO DE RESPEITO
Comecemos pela ilustração da capa, que merece referência. Da esquerda para a direita, temos Maria Rolim (editora da Colares), o sarcástico setecentista Tomás Pinho Brandão, Almeida Garrett (o divino), Bocage, Cesário Verde, Camilo Castelo Branco (Visconde de Correia Botelho), a quem dá a direita o prolífico José Viale Moutinho, como não poderia deixar de ser, depois seguem Fernando Pessoa, José Maria Eça de Queiroz, Júlio Dinis (escandalosamente pouco conhecido…), Mário de Sá Carneiro, António Nobre e a Ramalhal Figura. O José Quitério está a voar, e a ilustradora é Fedra Santos. Os escritores que faltam estão debaixo da mesa “entretidos com os ossinhos”. A crónica do livro é leve e feita sobre o joelho num dia de canícula. Mas o ser escrita sobre o joelho não quer dizer que não tenha sido muito pensada, pois este livro do meu querido amigo José Viale Moutinho está sempre por perto e conheço-o razoavelmente. Devo começar por dizer que o complemento natural desta obra é uma outra, essencial, de um contraparente meu, Paulo Plantier, autor de “Cozinheiro dos Cozinheiros” (1877), comerciante de livros e flores, o primeiro editor de Oliveira Martins… Lá está quase tudo o que sabemos da matéria… “Ao pé de um bom estômago coexistiu sempre uma boa alma”, disse o nosso Camilo. E conto um pequeno episódio que se passou comigo. Alguém quis-me ouvir sobe o grande memorialista Bulhão Pato e começou por me perguntar sobre as famigeradas ameijoas. De facto, a maior parte das referências a escritores gastrónomos tem a ver com Bulhão Pato, a propósito de um prato que ele não cozinhou nem era da sua especialidade. De facto, como bem se demonstra neste “Um Jantar de Escritores”, o escritor era um especialista de caça e assim é representado pelos irmãos Bordalo Pinheiro, Columbano e Rafael. Assim, temos neste precioso livrinho uma açorda à andaluza, perdizes à castelhana, arroz opulento (com codornizes e queijo parmesão) e lebre à Bulhão Pato. E se lermos com cuidado e respeitarmos as receitas verificaremos que são de comer e chorar… por mais. Mas cabe-me explicar a confusão tão comum. Um dia o grande chefe cozinheiro Mestre João da Matta, autor de “Arte da Cozinha”, do Hotel Central (do Cais do Sodré e do jantar de “Os Maias”), onde vimos pela primeira vez Maria Eduarda, quis homenagear o grande gourmet Bulhão Pato e dedicou-lhe um prazo original, que não pudesse concorrer com o homenageado; e assim nasceram as Ameijoas para Bulhão Pato! Eis uma história bem simples que gerou tamanha equívoca. Mas folheemos o livro e sigamos o plano da obra e as figuras da capa…

 

UMA OBRA ESSENCIAL
O precioso livro abrange: Entradas, Sopas, Pão e Boroa, Saladas e outros acompanhamentos, Peixes e mariscos, Carnes, Sobremesas, Vinhos (uns de mesa e outros), Chá e Café, Digestivos e Arroz malandro. Mas tudo começa, muito bem, pelos bolos de bacalhau da “Ilustre Casa de Ramires” e continua nos ovos com chouriço, uma pratada devorada por Cruges – acompanhada apenas por uma chávena de café pelo Carlos… António Correia de Oliveira fala-nos do verde caldo e da loira boroa. Caldo sem boroa fica solteiro… Teixeira de Vasconcelos, o célebre autor de “O Prato de Arroz Doce”, sobre a Patuleia e a Maria da Fonte, ensina-nos a fazer um Arroz à moda de Valência. E Ramalho Ortigão ensina-nos a frigir batatas: “Não! Não morrerás comigo, o doce, ó bom, ó divino segredo” do delicioso manjar das batatas fritas. “A batata fica crocante por fora; por dentro o resultado é deslumbrante: fofa, amanteigada, farinhenta, inchada, leve e mole, como um sonho!”. Camilo Castelo Branco elogia a divinal lampreia. E confessa que a sua desgraça estava “nos apetites glutões delicadíssimos, que se limitam às subtilezas do bacalhau e do caldo verde. Um perfeito sibarita…”. E sobre linguados, Camilo, que enjoava com o mar, diz: “Está hoje um sol de poeta e de formigas. Saí de casa numa sege, fui até à beira-mar, não gostei, o mar a mim nunca me deu nada que prestasse, tirando algum linguado”. Em “O Crime do Padre Amaro, o Cónego Dias achava que uma boa cabidela de galinha era de “tentar Santo Antão no deserto”. Quanto a sobremesas, Abel Salazar diz-nos que “o Minho é lambão, e inventou três classes de doces, os doces de romaria, os doces caseiros e os doces de convento. São ingénuos e simples, sorridentes, embrionários, gaiatos de formas e de ornatos de açúcar branco, de açúcar róseo, os doces de romaria, entre os quais impera, fofo, elástico, dourado, o famoso pão-de-ló, enorme, em forma de roda, encastoado em papel”… João da Ega deixou cair ao chão um embrulho de queijadas de Sintra ao cumprimentar Maria Eduarda – “todo o embaraço findou através de uma risada alegre…”. E em “Coração, Cabeça e Estomago”, lemos sobre um fantástico requeijão: “Tomásia sentou-se do outro lado, e comeu e bebeu como a filha de Labão com Jacob”. E o poeta pícaro de setecentos Tomás Pinto Brandão agradece a um amigo uma bandeja de uvas e vinho de passas (“Em bandejas, sumo gosto / Em canecas, gosto sumo”). Eugénio de Castro invoca o carácter sagrado do vinho fino, que celebrizou a cidade do Porto: “Metido nesta garrafa / Por mão sabida e prudente, / Como joia, fui passando / Pelas mãos de muita gente”… Falando de café, Camilo diz: “É preciso almoçar em Braga. Lembro-lhes que é necessário pedir no botequim café forte; não se pedindo do forte, dão-nos fraco. (…) A certeza do café forte deu-nos alma”. São as reminiscências das nossas viagens orientais… Wenceslau de Morais explica-nos como no Japão toda a gente toma chá – ricos e pobres, nobres e plebeus: - bebe-se na ocasião das refeições e a toda a hora em pequeninos goles”. Já “a cozinha de João Semana era de um caráter portuguesíssimo e eu, ainda que me valha a confissão os desagrados de alguma leitora elegante, francamente declaro que, para mim, a cozinha portuguesa é das melhores cozinhas do mundo”… Mas como poderíamos esquecer Álvaro de Campos, na heteronomia pessoana? Exatamente para distinguir as tripas e a dobrada, na diferença entre o Porto e Lisboa. “Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, serviram-me o amor como dobrada fria. Disse delicadamente ao missionário da cozinha / Que a preferia quente, / Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria…”.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença