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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

(XI) VASCO DA GAMA, JERÓNIMOS E CUSTÓDIA DE BELÉM

 

Vasco da Gama, herói de “Os Lusíadas”, ao descobrir o caminho marítimo para a Índia, iniciou, como afirmou Arnold Toynbee, a era da globalização, em que pela primeira vez as diferentes civilizações do Planeta entraram em contacto, iniciando um período de encontros e desencontros, de dominações e de cooperação - a era gâmica. As armas de fogo e o pão chegaram ao Japão, os astrolábios e o feijão-verde à China, os escravos africanos às Américas, o chá a Inglaterra, a pimenta ao Novo Mundo, a seda chinesa e os medicamentos indianos à Europa, um elefante e um rinoceronte embalsamado ao Papa. Artistas japoneses representaram estranhos europeus, com narizes compridos, usando calças de balão enormes e chapéus coloridos. Contudo, durante trinta anos, no início do século XV, o imperador chinês Yongle, da recém-estabelecida dinastia Ming, enviou armadas para a costa oriental de África, para afirmar o poder do Império do Meio - seis expedições em vida de Yongle e sete entre 1431 e 1433. Mas não houve tentativas de ocupação militar nem empreendimentos económicos, apenas afirmação de poder e influência. Em 1433, na sétima expedição, Zheng He, o mítico almirante muçulmano, morreu, talvez em Calecute, na costa da Índia e depois da sua morte as «jangadas estelares» não voltaram mais a navegar. A orientação política no Império da China mudou e, em lugar da abertura, prevaleceu o isolamento e foi reforçada a Grande Muralha. As viagens marítimas foram banidas e os seus registos destruídos. A verdade é que os navios de Vasco da Gama caberiam num só dos juncos magnificentes de Zheng He. Nas navegações portuguesas, nada dependeu de um mero acaso ou de uma qualquer improvisação. Houve informação, conhecimento, ponderação, planeamento, determinação e convergência de esforços – e houve grandes dificuldades a superar, carência de recursos, efeitos de uma profunda crise e ecos da tremenda peste negra… Notam-se os paradoxos políticos do reinado. Entre a lógica nacional e a descentralização mercantil – prevaleceu esta última. Goa, Ormuz e Malaca foram os centros cruciais, que Afonso de Albuquerque definiu, conquistou e consolidou… E os portugueses (militares, mercadores, missionários) tiveram influência decisiva no Oceano Índico e na Ásia durante pelo menos cento e cinquenta anos graças a esses três pontos estratégicos. Lembremo-nos, porém, que o Conselho Privado do Rei não advogava a viagem à India, mas D. Manuel definiu, apesar de tudo, esse como o objetivo estratégico do seu reinado. É um sonho providencial, que se vai desvanecer perante a distância e a ilusão dos ganhos fáceis dos «fumos da Índia», numa história de claros e escuros a merecer atenção prospetiva! Leia-se Fernão Mendes Pinto, mas também os cronistas João de Barros (1496-1570) e Diogo do Couto (1542-1616) e descubra-se um Império fortemente afetado pela monarquia dual (1580-1640) e ao cerco holandês. A assinalar a chegada à Índia, referira-se a construção do Mosteiro de Santa Maria de Belém ou dos Jerónimos, construído em calcário (lioz) extraído de pedreiras da região de Lisboa. A complexidade e a riqueza da construção prolongaram as obras por uma centena de anos. A cúpula é apenas do século XIX. Foram mestres na construção Diogo de Boitaca, João de Castilho, Diogo de Torralva, e Jerónimo de Ruão. Estamos perante o ponto culminante da arquitetura designada como manuelina, que integra elementos do gótico final e do renascimento, associando-lhes uma simbologia régia, cristológica, marítima e naturalista, singularíssima. Para o mosteiro foram escolhidos os monges da Ordem de S. Jerónimo, comunidade religiosa que habitou nestes espaços até 1834, data da extinção das ordens religiosa. O mosteiro foi então entregue depois à Casa Pia, instituição educativa, que ocuparia os espaços do claustro até 1940. Sob a direção de João de Castilho, o portal sul é o mais célebre, contando com um total de quarenta figuras, uma alusiva à história de Portugal, além das armas nacionais, no baixo-relevo central da parte superior do tímpano. Na base do portal dispõem-se os doze apóstolos, ao centro, a Virgem com o Menino, a coroar o conjunto, quatro Doutores da Igreja, e no topo S. Miguel, o Anjo Custódio e Portugal, mais abaixo, em posição central entre as duas portas de entrada, a estátua do Infante D. Henrique e nos tímpanos duas cenas da vida de S. Jerónimo. Não podemos deixar de referir ainda um outro símbolo da Arte portuguesa, já referido a propósito de Gil Vicente, trata-se da Custódia de Belém, mandada lavrar por D. Manuel I para o Mosteiro de Santa Maria de Belém (Jerónimos), atribuível com muitas dúvidas ao ourives e dramaturgo Gil Vicente. Foi realizada com o ouro do tributo do Régulo de Quíloa (Tanzânia), em sinal de apoio à coroa de Portugal, trazido por Vasco da Gama no regresso da segunda viagem à Índia, em 1503, é um bom exemplo do gosto por peças concebidas como microarquitecturas no gótico final. As esferas armilares, divisas do Rei, definem o nó, a unir dois mundos (terreno e sobrenatural), como a consagração máxima do poder régio, confirmando o espírito do Rei Venturoso.

GOM

 

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NA SALA OU NA CAMA, CHAMAVA-LHE SLIM

Uma despedida

Por razões a que este blog do Centro Nacional de Cultura é alheio, interrompe-se aqui, à 34.ª crónica, a minha colaboração. Por vezes, somos forçados a fazer escolhas. Sou o editor da Guerra e Paz e as actuais exigências da actividade editorial em Portugal forçam-me a uma concentração que me leva a sair da blogosfera (mesmo do meu blog pessoal, Página Negra) e das redes sociais. Foi um prazer, este regresso a uma casa que conheci, e com a qual colaborei, no tempo de Helena Vaz da Silva. Levo do trato elegante e afável de Guilherme d'Oliveira Martins e de Teresa Tamen, um gosto que muito agradeço. Soube-me mesmo muito bem ter as minhas pobres prosas a deambular por aqui.

Saio de um prazer para outro prazer: quero agora preservar o salto de qualidade que a Guerra e Paz editores deu em 2019 e em 2020. Deixo de escrever crónicas, talvez escreva mais livros.

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Na sala ou na cama, chamava-lhe Slim

 

Howard Hawks transpirava charme. Ou seja, nunca precisou de transpirar. Nessa noite passeava-se pelo Clover Club e olhava para a pista de dança. Foi então que a viu.

 

Hawks era casado com a irmã da actriz Norma Shearer, o que fazia dele cunhado de Irving Thalberg, braço-direito de Louis B. Mayer o dono da MGM. Thalberg mandava em tudo. Mão de ferro para todos, uma luva para Hawks que acabara de filmar “Bringing up Baby”, comédia com um tigre verdadeiro, a leoa que era Katharine Hepburn e a cómica mansidão de Cary Grant. Um sucesso.

 

A Hawks, ninguém chamaria manso. Os engates dele davam para atapetar o chão do Clover Club, pista de dança e reservados. Numa agenda escarlate guardava nomes loiros e curvilíneos com números de telefone à frente. Hawks era a chave dourada para se entrar nos filmes, essa caverna secreta, aveludada, que a todas atraía.

 

Hawks olhou para a tão jovem mulher e pensou: “Hmm, que bela fechadura.” Quando a orquestra atacou a música seguinte, já Hawks dançava com ela. Caprichou na valsa, disse duas frases elegantes, fê-la rir – e se ela tinha um riso fácil, desprendido! Hawks meteu a chave: “Não quer entrar nos filmes, fazer um filme comigo?” Um sorriso na boca dela, prometedor, feliz e, logo a seguir, a resposta que atirou Hawks ao chão: “Não, que horror. Não me interessa nada.”

 

Seguiram-se três anos de muita cama, casamento depois. Ela, e era dele que falava, confessaria com candura: “Não era só bonito, encantador e cheio de sucesso, ele era o pacote inteiro que eu queria: a carreira, a casa, os quatro carros e o iate.”

 

Na cama ou na sala, Hawks rebaptizou-a. Mary Raye Gross de seu nome, passou por vontade e prazer de Hawks a ser Slim. E não houve, depois, filme dele em que ela não entrasse sem pôr os pés em nenhum. Slim inventou as mulheres de Hawks, a Rosalinda Russell de “His Girl Friday” ou a Barbara Stanwyck de “Ball of Fire”. Foi Slim que inspirou a Hawks as frases velozes e acutilantes, a física disponibilidade para as batalhas conjugais, a descarada autonomia e liberdade das mulheres dos seus filmes.

 

Um dia, Slim descobriu uma sósia, Lauren Bacall, quase tão bonita e ravissante como ela. Ofereceu-a de bandeja a Hawks: maquilhou-a, desenhou-lhe os vestidos, talvez a tenha ensinado a assobiar. Tão igual que a deixou usar o nome, Slim. Assassinando com brilho o livro de Hemingway que adaptava, em “To Have and Have Not” a relação de Bacall e Bogart era tão decalcada do amor deles, que a personagem de Bogart ficou Steve, como, na sala ou na cama, Slim chamava a Hawks.

 

Iludido, Hawks quis, vá lá, deitar-se com Bacall, mas o avisado Bogart antecipou-se. Já Hemingway, por graça da esplêndida Slim, teve boas razões para perdoar a forma como mandaram a história de “To Have and Have Not” às urtigas.

 

Ninguém como Slim, sem nunca ter entrado num filme, entrou, afinal, em tantos.

 

Manuel S. Fonseca