Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

(XII) A GASTRONOMIA PORTUGUESA

 

Como continente em miniatura e lugar de encontro de muitos povos, Portugal tem uma gastronomia naturalmente sortida e cheia de pequenos segredos e mistérios. Encontramos mesa rica e mesa pobre, mas fundamentalmente a mesa remediada no dia-a-dia, feita com o que são os alimentos da estação com a necessária sobriedade. Convém lembrar que a palavra “comer”, origem da “comezaina” queirozina, vem do latim cum edere, que significa alimentar-se em companhia, fator fundamental da transmissão de valores, da boa conversa, do convívio, da partilha do pão e do vinho. E diz o povo “à mesa não se envelhece”, percebendo-se que os afetos tornam a vida mais fecunda e duradoura. A literatura está plena dessa vital comunicação, que figura, em toda a sua riqueza, na eucaristia. E esta palavra, que vem do grego kharis, favor, graça, significa agradecimento, gratidão, ação de graças. O leitor de A Cidade e as Serras lembra a famosa ceia oferecida por Jacinto no 202 dos Campos Elísios, na comemoração do peixe da Dalmácia, encalhado e perdido no teimoso elevador dos pratos. O requinte transforma-se em caricatura, que aumenta o tédio. Mas também nos recordamos do arroz com favas, servido na primeira refeição de Jacinto em Tormes, para saciar a sua «velhíssima fome»? E aquilo que encanta o herói de Tormes não é o arroz, ou o apetecível frango assado no espeto, nem a salada temperada com azeite da serra, mas o vinho: “caindo do alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo”. Cada um lembrará momentos verdadeiramente restauradores, como uma cabidela de galinha pica no chão e um arroz solto bem simpático…  A UNESCO declarou em 2013 património imaterial da humanidade a Dieta Mediterrânica, que envolve sete Estados - Chipre (Agros); Croácia (Hvar e Brac); Espanha (Sória), Grécia (Koroni); Itália (Cilento); Marrocos (Chefchaouen) e Portugal (Tavira). A Dieta caracteriza-se pelo consumo de elementos frescos, produzidos localmente, de acordo com as estações do ano. Promove a utilização de leguminosas, hortícolas, frutos secos, frutas diversas, incluindo citrinos, como laranjas e tangerinas, e ainda damascos ou albricoques, ameixas, romãs e outros…Comer é um ato cultural, a refeição em conjunto assegura a transmissão de valores culturais e éticos e a permuta de conhecimentos, além de negociações e acordos. O fundo mediterrânico revela-nos muitas palavras de origem árabe ligadas à alimentação: açorda, alcachofra, alcagoita, alcaparra, alecrim, alface, alfarroba, almondega, alperce, alqueire, arroz, azeitona, cenoura, escabeche, griséus, laranja, limão, sorvete, salada, tâmara e xarope. Percebe-se bem como a cultura portuguesa se faz de norte para sul e de sul para norte. Há um entrosamento, que leva à partilha de tradições diferentes. Comecemos pelo Pão. Etimologicamente vem de pan, que significa em grego tudo, e a variedade é extraordinária: de trigo, de milho, de centeio. E temos desde a broa de Avintes às bôlas recheadas, exemplos de fazer da massa de pão um fantastico alimento. O azeite é um néctar essencial. Corroborando o que Jacinto sentiu em Tormes, temos os vinhos, que o tempo tem tornado de maior qualidade, graças à delimitação das regiões, começada com Sebastião José, no Douro, com o vinho fino, se curarmos dos vinhos generosos. Há os vinhos verdes (no Minho e na continuação da Galiza, dos Alvarinhos) e os maduros, com grande desenvolvimento. Minho, Douro, Bairrada, Valpaços, Dão, Bucelas, Colares, Carcavelos, Setúbal, Alentejo, Algarve e Madeira são regiões de dimensão e importância diferentes, mas onde a qualidade singra. Júlio Dinis retrata-nos em “Uma Família Inglesa” a importância do comércio do vinho fino, baptizado como do Porto. Na variedade dos acepipes, que o grande gastrónomo Paulo Plantier importalizou em “O Cozinheiro dos Cozinheiros” (1877), temos magníficas sopas, a começar no célebre caldo verde, acompanhado de broa de milho, e a continuar na grande variedade dos legumes, e a terminar nas sopas frias alentejanas, o gaspacho (de tomate, pepino e pimentão). Na nossa gastronomia merece destaque o cozido à portuguesa, feito com vegetais, carnes e enchidos cozidos. No que respeita aos vegetais, temos feijões, batatas, cenouras, nabos, couves e arroz, carne de bovino de diversas partes. Nos enchidos, são típicos o chouriço, a farinheira, a morcela e o chouriço de sangue. No tocante aos enchidos, é de referir o subterfúgio usado pelos cristãos novos a partir do século XVI. Proibidos de comer carne de porco, os habitantes de Mirandela criaram uma salsicha feita com pão, arroz ou frango, que se assemelhava aos tradicionais chouriços e farinheiras com carne suína: e assim nasceram as alheiras. A lista das iguarias é extraordinária. Nos peixes e mariscos, temos o bacalhau vindo da Terra Nova, a sardinha, o atum e as ameijoas. E na doçaria, a variedade é apetitosa: ovos moles, pão de ló (desde Felgueiras a Ovar, variando na consistência), toucinho do céu, papos de anjo, pasteis de nata, pasteis de Belém, arroz-doce, queijadas de Sintra, travesseiros, pasteis de Tentúgal, pudim Abade de Priscos, e a doçaria do Algarve feita com amêndoa e figos, como D. Rodrigos, Morgados e Queijo de Figo… A melhor doçaria conventual é reminiscência dos gostos da nobreza, já que as filhas-família levavam para a congregação as receitas de família. O predomínio dos doces com gemas de ovos deve-se ao facto de as claras serem aproveitadas para os engomados dos hábitos e para clarearem as hóstias a consagrar. Sobrando muitas gemas, elas eram utilizadas nos doces. Uma das consequências do aumento da produção de açúcar (ouro branco) e respetivo barateamento, com as viagens dos portugueses e a produção das ilhas é a generalização das doçarias. E terminamos, referindo a natureza morta da autoria de Josefa de Óbidos. Como afirma António Pinto Ribeiro: «Uma tela de Josefa de Óbidos (1630-1684) cria mais apetite, sofistica mais o gosto e revela mais voluptuosidade do que todos os programas de culinária que as televisões exibem. Por exemplo, Uma natureza morta com doces e barros, de 1676, que está exposta na Biblioteca de Santarém. À boa maneira dos bodegón, esta composição meridional, quente, com grande riqueza plástica e cromática, apresenta uma combinação de doces e utensílios de barro de cozinha. O seu propósito era decorativo, embora houvesse uma simbologia cristã (e portanto programática) nessas obras que decoravam as casas nobres da época. A belíssima descrição de Gustavo de Matos Sequeira — desta e de outra pintura, Natureza morta com flores — diz que são “quadros de alto sentido decorativo, tão ricos de cor, dominadores pela opulência da composição (…), [dando-nos] com feminilidade conventual uma lição do que era a confeitura fria do seu tempo, empapelada de rendas, acondicionada em condessas de verga fina, resguardada em caixas pintadas (…) num jeito de glória teatral às virtudes domésticas da culinária doce”».

GOM

 

 >> 30 Boas Razões para Portugal no Facebook

 

BENTO XVI. UMA VIDA (1)

 

Encontrei uma vez em Roma Bento XVI, ainda não era Papa. A impressão com que fiquei: um homem afável e tímido. No encontro rápido, falou-me da importância decisiva da pastoral da inteligência.

 

Nos últimos dois meses, foi para mim um prazer intelectual imenso poder ler a sua biografia — são 1150 páginas —, escrita por Peter Seewald: Benedikt XVI. Ein Leben (Bento XVI. Uma vida). Pude acompanhar 90 anos de história, a brutalidade esmagadora da Segunda Guerra Mundial, os filósofos e teólogos que também estudei, a reconstrução da Alemanha e da Europa, os debates teológicos que levaram ao Concílio Vaticano II, a primavera do Concílio e o inverno que se seguiu, Maio de 68, o cardeal Ratzinger como Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, Bento XVI como Papa e a sua renúncia, o Papa Francisco... Em três crónicas simples — previno que a obra não é fácil —, tentarei apresentar rapidamente alguns flashes desta biografia.

 

Uma família modesta: o pai era polícia e a mãe cozinheira. Três filhos: Maria, nascida em 1921, Georg, em 1924, Joseph em 1927, às 4.15 de Sábado Santo. No mesmo dia, às 8.30 já estava na igreja para ser baptizado com a nova água pascal, acabada de benzer, e ao som do canto do Glória: “Cristo ressuscitou”. Ratzinger viu sempre neste acontecimento um símbolo decisivo, que o acompanhou durante a vida toda: Sábado Santo a falar da “situação da história humana, da situação do nosso século, mas também da minha vida. Aí estão, por um lado, a escuridão, a incerteza, a interrogação, os perigos, as ameaças, mas também, por outro, a certeza de que há luz, de que vale a pena viver e avançar. Neste sentido, esse dia a que Cristo preside — misteriosamente oculto e simultaneamente presente — tornou-se um programa para a minha vida”. Foi neste sentido que G. Steiner também escreveu que é em Sábado que vivemos: entre os horrores de Sexta-Feira Santa e a esperança do Domingo de Páscoa.

 

Depois, Hitler. Aos 16 anos Joseph foi chamado para o exército hitleriano, de que desertou aos 18. No caminho do regresso percebe-se mais intensamente a desolação causada pela guerra. “Quando de repente me apresentei vivo diante dele”, o pai nem queria acreditar. E a mãe prepara-lhe de comer. Há pouco, mas a mãe tem salada fresca, um ovo das suas galinhas e um bocado de pão: “Na minha vida nunca mais tive uma refeição tão preciosa como esta refeição simples que a mãe preparou com os frutos da sua horta.”

 

O terror do nazismo influenciou a sua decisão para toda a vida, como ele próprio sintetizou: “Na fé dos meus pais tive a confirmação do catolicismo como um bastião da verdade e da justiça contra aquele reino do ateísmo e da mentira, que o nacional-socialismo encarnou.” O jovem de 18 anos está agora preparado para a entrega radical da sua existência a uma vida para Deus, pois a decisão fundamental veio com o fim da guerra: “Agora, já não tinha nenhuma dúvida quanto à finalidade e objectivos da minha vida, sabia qual era o meu lugar.”

 

Regressou, pois, ao seminário, com o irmão Georg, que comentou que a guerra tinha tornado o irmão “realmente adulto”. A mãe, que se sentiu contente e orgulhosa pelos filhos, não deixou de avisá-los: “Se não for a vossa vocação, é melhor vir embora.”

 

Ratzinger acompanhava as aulas com entusiasmo e diligência. Sente que é necessário um novo começo para a Igreja: “Acreditávamos conduzir a Igreja para um novo futuro”. E vão ficando as influências filosóficas e teológicas que lhe marcarão a vida, concretamente o pensamento dialógico e sobretudo Santo Agostinho: “Sinto-o como um amigo, um contemporâneo que fala para mim”, confessa.

 

Entretanto, esclarece que “durante os seis anos de estudante de Teologia teve dúvidas quanto à vocação e que o assaltaram muitos problemas e perguntas bem humanos: O celibato é realmente para mim? Ser padre é realmente para mim? Estarei preparado para isso para a vida toda? É realmente a minha vocação?” O que é facto é que, já próximo das chamadas “ordens menores”, com a tonsura, caiu enamorado. O biógrafo volta aos últimos encontros com Bento XVI, já retirado, para esclarecer melhor: - “Falou nas suas memórias de um ‘tempo de grandes decisões dolorosas’. Em que consistiu exactamente este sofrimento?” O Papa emérito respondeu, sorrindo com satisfação, que se trata de algo demasiado pessoal, sobre isso não pode dizer nada. — “Enamorou-se de uma rapariga?” — “Talvez”. – “Claro que sim”. – “Poder-se-ia interpretar dessa maneira.” – “Quanto tempo durou este tempo doloroso? Algumas semanas? Uns meses?” – “Mais, mais tempo”. Para quem conhece Ratzinger, comenta o biógrafo, percebe que se trata de uma confissão. Sabe que lhe é exigido um sacrifício, uma renúncia, mas “não se decide contra a amiga, decide-se por algo: seguir uma missão. A luta interior durou muitos meses. Até à ordenação de diácono no Outono de 1950, quando deu ‘o seu Sim convicto”. Quem era a rapariga? Ainda vive? De qualquer forma, o biógrafo escreve que, sendo o amor um dos seus temas centrais como teólogo e Papa, lhe perguntou se o vivenciou pessoalmente com sentimentos profundos ou se isso foi só um tema filosófico. A resposta do Papa emérito: “Não, não. Quem o não experienciou não pode falar sobre ele. Eu senti-o primeiro em casa, com o pai, a mãe, os irmãos. E não quereria entrar em pormenores privados, mas fui tocado por ele em diversas formas e dimensões. Percebi cada vez mais que ser amado e dar amor aos outros é fundamental para se poder viver.”

religi

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 AGO 2020