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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

(XVI) SAUDADE E MORABEZA

 

Saudade ou sôdade como lembrança e desejo e Morabeza como predomínio do afeto caracterizam a humanidade das culturas da língua portuguesa. Quando lemos D. Duarte, Bernardim Ribeiro, D. Francisco Manuel de Melo, Duarte Nunes do Leão, Garrett, Rosalia de Castro ou Cesária Évora sentimos que há algo que nos diz respeito, com que temos de lidar para não cairmos num sentimentalismo que reduz a vontade e a determinação. Eduardo Lourenço fala-nos, por isso, de um autêntico Labirinto que não pode ser visto como um destino retrospetivo. O “Desterrado” de Soares dos Reis simboliza espera e ausência. No Leal Conselheiro encontramos uma definição (de saudade) “acompanhada e esclarecida por uma análise caracteristicamente filosófica”. A novidade do conceito reside no seguinte: a saudade é um sentimento; não está vinculada necessariamente ao desejo; resulta da ausência de seres que se ama ou de estados que se estimam; “a melhor saudade é a que nos atualiza, pondo-nos de acordo com o tempo e dando-nos portanto prazer». Esta definição de Afonso Botelho corresponde ao que se pode designar como “humanismo esperançoso”, que parte de uma solitária saudade medieval para chegar à “reminiscência forçosa” de D. Francisco Manuel. Sem entrarmos na indagação sobre um eventual platonismo, o certo é que a saudade é um movimento – que no domínio intelectual é um diálogo. Deste modo, a saudade é um sentimento ou a consciência refletida desse sentimento – demarcados do saudosismo, como movimento de raiz poético-filosófica. Assim, a saudade vai situar-se entre a ânsia da Pátria Celestial e a lembrança da Pátria Terrena. Mas Leonardo e Pascoaes estão separados porque têm intuições religiosas diversas. Lembremos que o universo para Leonardo Coimbra é criado pelo homem num processo dialógico que o faz chegar a Deus pelo fraterno amor de tudo, e não como algo criado de uma vez por todas pela vontade divina. Deus é, assim, a luz que ilumina a ação criadora do homem - é o Amor que une, e cada consciência é a unidade elementar que pelo amor se move, atraído pela «grande Unidade». Por isso, a compreensão é a Unidade e o entendimento é Amar. Pascoaes, ao contrário, obedece aos dois movimentos, «um ascensional (o mítico em Maranus) outro descensional (que é precisamente o religioso do Regresso ao Paraíso)». No fundo, a Pátria de Pascoaes assume-se no homem, “mesmo quando a presença de Deus nele se faz sentir, até porque a divina presença desde que o foi dessa Pátria, já nela não pode ser esquecida”. Na fecundidade deste diálogo, Afonso Botelho centra-se na perfectibilidade do sentimento saudoso, ou seja um movimento permanente de reconhecimento da imperfeição e de impulso necessário ´para a sua superação – isto é, “a garantia de que o sentir só se completa no existir, por mais elevada e infinita que seja a saudade ou a sua órbita”. Como movimento, a Saudade apenas “se completa restituindo ao homem o sentimento da própria Graça que o elevou ao centro da redenção”. “Se o que domina a ontologia existencial é a definição do ser do tempo, creio que esta só poderá reencontrar-se na ontologia da saudade, que é a do tempo sem ser – ontologia negativa ou transcendida que determina a eliminação do tempo, precisamente porque em verdade o completa» (A. Botelho). Para Pascoaes: “O existir cria a ilusão do tempo. O que passou e o que há de vir eis a matéria, o corpo da saudade. O eterno compõe-se de coisas transitórias”. Vulgarmente ou mesmo culturalmente, pensa-se que “o Saudosismo é o mais acabado dos passadismos, mas assim não é. De facto, na saudade-saudade, segundo Afonso Botelho, o passado vale tanto como o futuro – “pois um e outro nela se acordam ou se eliminam, o que é o mesmo”. As saudades do futuro do Padre António Vieira são isso mesmo. Pascoaes diria, poetando, “A folha que tombava / Era a alma que subia” e Fernando Pessoa interpretaria: “A queda da folha é materialmente a subida da alma”. Leonardo põe a tónica na alma que sobe, enquanto Pascoaes interroga a folha que tomba… E a Renascença Portuguesa representa a procura destes dois movimentos paradoxais, equivalentes ao “poder convergente da Saudade, que se opõe a qualquer interferência do tempo exterior ou heterogéneo”…

No romance de Baltazar Lopes da Silva “Chiquinho”, o autor explica que a palavra “morabeza” significa amorabilidade. Segundo Brito-Semedo: “Este sentimento, que é mais visível e praticado nos meios rurais, manifesta-se, contudo, de forma particular em cada uma das ilhas. Por exemplo, em Santo Antão havia (…) o hábito de convidar os viajantes que faziam as suas jornadas a pé a entrar nas casas ao longo do caminho e secar o calor, que é, como quem diz, beber um cálice de aguardente (o grogue) e descansar um pouco. Nas outras ilhas agrícolas, nomeadamente em Santiago, nunca se vai fazer uma visita sem levar um agasalho, ou seja, uma prenda para os donos da casa, que pode ser um lenço de amarrar (lenço de cabeça), uma garrafa de grogue, algum rapé, ou um palmo de tabaco enrolado. O visitante, para além de ser bem recebido, normalmente regressa com um cabrito, um frango, ovos, leite coalhado ou queijo fresco, ou um saco contendo banana, papaia, mandioca, batata-doce, enfim, os produtos hortícolas que estiverem disponíveis no momento. Ser morabi (a expressão é da ilha Brava), afável e gentil, é a expressão do sentimento da morabeza, que é, afinal, a forma de o Cabo-verdiano estar no mundo”.

 

 GOM

 

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EM REBUSCA DO JAPÃO X

 

   Shintoísmo é palavra japonesa datada do século VIII, já depois da introdução do budismo no Império do Sol Nascente, para designar o conjunto de crenças nativas que compunham e sustinham, nas mentes nipónicas, a visão do universo e do ser humano que o habitava e lhe pertencia.  Etimologicamente, formara-se das expressões sínicas shin (divino) e tao (via). Até então e desde tempos imemoriais,essa  popular conceção passara-se de qualquer designação, doutrina ou organização, tendo sido apenas registada pela tradição japonesa mais antiga que, no século VIII, foi fixada em escrita, quando esta entrou no Japão, vinda da China, pela Coreia. Refiro o Nihonji e o Kojiki, de que várias vezes falei noutros escritos. Por já tê-lo feito, não volto aqui à análise das duas coletâneas, e apenas ressalto o facto de ser, no momento do seu registo escrito, já imemorial a sua origem, e fabulosa a sua composição e tradição oral. Para o que agora nos interessa, é de realçar que o Kojiki (ou registo de coisas antigas) foi fixado de cor por uma tal Hiyeda no Are, à ordem do imperador Temmu, cuja sucessora, imperadora Gemmyo, por volta do ano 712, decretou que essas tradições orais fossem transcritas em caracteres chineses recentemente introduzidos no Japão, para estabelecimento da linhagem imperial. As Nihon Shoki (ou crónicas do Japão) contam as histórias da origem divina do Império do Sol Nascente.

 

   Recorde-se que a época destes escritos, além de corresponder  -  e se explicar  -  pelo aparecimento da escrita no Japão, coincide com a introdução do budismo e a imitação da filosofia e organização política chinesa no nascente império nipónico, onde vai surgir a primeira capital residencial fixa (Nara), logo seguida por Heyan (Kyoto). Ainda assim, a autoridade política e administrativa dos sucessivos imperadores nunca se terá tornado verdadeiramente incontestável no tempo e no espaço, aos antigos reinos tendo sucedido domínios feudais que, mesmo quando mais controlados pelo poder central, designadamente sob o shogunato Tokugawa foram configurando um mosaico social e regional de fidelidades. Será, pois, a chamada "Restauração Meiji", no último quartel do século XIX, a erguer (ou restaurar...) a efetiva instituição política do poder imperial no tempo real da vida japonesa. Assim, símbolo visível da origem divina da terra e da gente do Japão, a figura do Imperador se tornará também na incarnação do chefe político que é o Filho do Céu: o Tenno, como ainda hoje é designado. E pelos reinados de Meiji, Taisho e Showa (este mais conhecido por Hirohito), o shintoísmo será a religião oficial e protocolar do Império do Sol Nascente, até à derrota do Japão em 1945.

 

   Tal Shintoísmo de Estado é certamente um aproveitamento ideológico e político, militar e bélico, de crenças populares profundamente enraizadas na alma da gente nipónica, crenças que, aliás, sustentam também a própria expressão de uma identidade pessoal imersa no acontecimento do mundo como natureza naturada e naturante. Eis uma achega importante ao entendimento da impessoalidade que tanto impressionou Wenceslau no estudo da linguagem nipónica. E que, ainda mais dramaticamente, nos levarão a outra iluminação de fenómenos como o harakiri ou seppuku e a bravura sacrificial dos "kamikaze" que, ao autodestruirem-se em combate, gritavam  "Longa vida ao Imperador!"

 

   Voltaremos a estes temas e a outros, como o dos fantasmas que povoam o teatro NÔ. Na verdade, para se compreender o shintoísmo é imprescindível entender os Kami (termo que significa alto ou superior, até na nomenclatura topográfica, mas é, na esfera das religiões e crenças, traduzido por espírito ou espíritos. Contrariamente às religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo, islamismo), por exemplo, o shintoísmo não tem um deus único, mas nem tampouco será propriamente uma religião politeísta, cujos deuses sejam transcendentes e habitem um qualquer olimpo. O shintoísmo não estabelece qualquer distinção entre a divindade e a natureza, os kami sendo simples espíritos que partilham com os humanos a habitação do universo. Este não foi criado, mas simplesmente sempre existiu. Seria inicialmente uma espécie de vasto oceano, imensa superfície ou massa líquida e oleosa. A partir daí se formou uma corrente contínua de criação, desde deuses em planaltos celestiais até às árvores e rochas e poeira na terra e abaixo dela. Os humanos tampouco foram especialmente criados, apenas são parte do universo, tal como todas as outras coisas.

 

   Assim, os kami estão em toda a parte, todas as coisas têm espírito e falam por elas: fenómenos naturais (rochas, árvores, montanhas, rios, quedas de água, animais, tempestades) tudo pode ser kami. Somos todos essencialmente idênticos, partes do mesmo, e o mais humilde calhau - como no belíssimo La Strada, de Fellini - em qualquer momento pode revestir-se de espírito. Daí serem os ritos de purificação, designadamente pela água, ou pelo sal, os gestos litúrgicos mais importantes do shintoísmo. E tudo isso nos diz muito sobre a alma japonesa.

  

Camilo Martins de Oliveira