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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

(XIX) MAGISTRAL HERCULANO

 

O magistral Alexandre Herculano foi alguém que se singularizou como um português de horizontes largos, um historiador probo e moderno, fiel às provas e à ciência, fundador da historiografia contemporânea, um cidadão comprometido e exemplar.

Escritor de perfil clássico, foi dos mais dotados no manejo da língua e uma enorme figura moral – “homem de um só parecer. Dum só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer…”, da têmpera de Francisco Sá de Miranda. Ouvimos ainda os ecos da sua prosa militante: “Que o país seja governado pelo país é a nossa divisa. Como realização deste princípio, temos pugnado pela verdade do sistema parlamentar, apesar do descrédito a que a reação europeia o tem levado no continente; temo-nos esforçado por incutir aos nossos concidadãos a ideia de que só nele sinceramente respeitado pode estar a nossa marcha segura no caminho do progresso. Por isso temos pelejado contra os que, a troco de promessas de melhoramentos materiais, fecharam os olhos aos atentados dirigidos contra o dogma essencial das nossas crenças políticas. Por isso temos fulminado os escândalos, as malversações eleitorais, os diplomas de representante da nação passados por portaria, e o desprezo calculado dos princípios parlamentares erigidos em sistema pelo Governo atual” (1853).

Filho de um recebedor da Junta dos Juros e sobrinho por parte mãe de António Gil, o construtor que deu nome ao célebre Pátio onde nasceu, Alexandre Herculano é um símbolo forte do seu tempo. Estudou na Congregação do Oratório de S. Filipe Néri, nas Necessidades, e depois seguiu estudos na Aula do Comércio, não tendo tido possibilidade, como era seu desejo, de cursar na Universidade de Coimbra, por vicissitudes da guerra civil. A partir de 1829, vemo-lo a defender a causa liberal, participando na sublevação de 21 de agosto de 1831 do Infantaria 4, que o levou para o exílio, primeiro em Inglaterra e depois em França, juntando-se, em 1832, nos Açores, à causa da regência de D. Pedro. Nesse mesmo ano, desembarca na praia do Pampelido, entre os bravos do Mindelo, como Garrett. No Porto, é dispensado do serviço militar ativo, para ser bibliotecário na Biblioteca Pública e para reorganizar os fundos das livrarias monásticas, a começar em Santa Cruz de Coimbra. Na Revolução de Setembro de 1836, mantém-se fiel à Carta, que jurara, e escreve “A Voz do Profeta”, onde critica a nova situação, afirmando o seu cristianismo, contraditório não com a liberdade, mas com o despotismo, não com o novo, mas com o antigo regime, e procurando uma plataforma onde se encontrem o livre exame e a autoridade. Na redação da revista “O Panorama” (1837) e na direção do “Diário do Governo” demonstra as suas qualidades de pensador e cidadão. É um homem dividido entre o respeito da tradição e a rejeição das idolatrias. Para ele, o soldado liberal deveria hastear a cruz sobre o pendão da liberdade e tornar-se apóstolo da “fraternidade espiritual”. Em “O Pároco da Aldeia” (1844) procura conciliar as antigas formas rituais com a liberdade, o tradicionalismo e o reformismo. Concorda com a Constituição de 1838 por entender como positivo o compromisso alcançado. É o tempo da “Harpa do Crente”. D. Fernando II, seu amigo e admirador, nomeia-o diretor das bibliotecas reais da Ajuda e das Necessidades. Sob influência de Rodrigo da Fonseca, é eleito deputado pelo Porto, em 1840. Não é um orador, mas trabalha intensamente no campo do ensino popular com Vicente Ferrer do Neto Paiva. Com a restauração cartista de 1842, assume posição critica relativamente ao consulado de Costa Cabral. A sua residência da Ajuda torna-se centro de conspirações. Os anos quarenta são, no entanto, um período fecundo da sua criação literária e das suas reflexões históricas.

“Eurico, o Presbítero” é de 1844 e o primeiro volume da “História de Portugal” sai em 1846. Aí, recusa as interpretações providencialistas e encontra “a verdadeira origem da independência de Portugal” na ideia de nacionalidade, “que amadurecera e radicara nos ânimos de modo indestrutível e que sucessivamente se apoderara dos espíritos do Conde D. Henrique, de D. Teresa e do filho deles”.

A clara desafeição em relação à política de Costa Cabral por parte do próprio rei D. Fernando II leva Herculano a romper em 1850 com a neutralidade, assinando à cabeça o protesto dos intelectuais portugueses contra a lei das rolhas. Pode dizer-se que a alma da Regeneração de 1851 está em Alexandre Herculano. O movimento impor-se-á graças ao penhor moral do historiador, que depressa compreendeu que não eram as suas ideias ou o seu grupo que prevaleciam. Rodrigo domina o novo partido Regenerador, e Herculano considera ser isso negativo, sendo fundamental criar um polo político de alternância, que será o partido histórico, em cuja criação e concretização se empenha.

Nasce primeiro “O País”, e depois “O Português”, jornais críticos da lógica situacionista. O escritor torna-se um militante ativo da reforma nacional no sentido da concretização da legislação de Mouzinho da Silveira, da liberdade económica, do fim dos constrangimentos políticos e sociais do antigo regime, da concretização do programa municipalista contra o centralismo. Numa palavra, deveriam criar-se condições para que o país governasse o país. E D. Pedro V seria o primeiro homem moderno que houve em Portugal, mas morreria na flor da idade. Alexandre Herculano manter-se-ia fiel ao espírito de sempre: da procura de uma síntese entre a tradição e a modernidade, com um empenhamento intenso pela reforma do país, de modo combater o atraso e a intolerância.

A partir de 1867 tornar-se-á agricultor de sucesso em Vale de Lobos, num gesto moral de recusa do conformismo. No entanto, nesse período final da vida Herculano seria procurado pela juventude intelectual como referência e exemplo. Que magnífico sinal de vitalidade intelectual e cívica!

 

GOM

 

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BENTO XVI. UMA VIDA (2)

Padre Ratzinger no Concílio.jpg

 

Estudante de Teologia, J. Ratzinger destacou-se entre todos e viveu esses anos mergulhado na grande ebulição teológica que se seguiu à Guerra, preparando um novo futuro para a Igreja. A orientação era o diálogo entre a fé e a razão, a racionalidade e a beleza, o diálogo ecuménico, a “Teologia Nova”..., seguindo a verdade, porque “a renúncia à verdade não resolve nada, pelo contrário, leva à ditadura do arbitrário”.

 Foi ordenado padre  com o irmão a 29 de Junho de 1951. Tornou-se capelão, ouvindo confissões aos Sábados durante 4 horas e aos Domingos celebrando duas Missas e duas ou três pregações. Doutorou-se em Julho de 1953 com uma dissertação sobre “Povo e Casa de Deus na doutrina de Agostinho sobre a Igreja”.  Ficou uma palavra marcante de Santo Agostinho, ao definir a Igreja como “Povo de Deus espalhado pela Terra”.

Para poder realizar o seu sonho de fazer carreira como Professor de Teologia, preparou uma tese de habilitação (Habilitationsschrift) sobre a revelação: Offenbarung und Heilsgeschichte nach der Lehre des heiligen Bonaventura (Revelação e história da salvação segundo a doutrina de São Boaventura). Os dois exemplares exigidos foram entregues na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Munique no Outono de 1955. Aí, começou um drama de abismo. Michael Schmaus comunicou de modo seco, “sem qualquer emoção”, que tinha de rejeitar a tese. Foi tal o choque que da noite para o dia o cabelo de Ratzinger ficou grisalho. Teria de deixar a Universidade e, pensando sobretudo nos pais, “seria uma catástrofe, se tivesse de deixá-los na valeta”. Razões para a rejeição, por parte de Schmaus e outros professores: Ratzinger sabe “ligar fórmulas floridas, mas onde está o cerne da questão?”, “evita definições precisas”, é “demasiado emocional”; mais: foi considerado “quase perigoso”, “um modernista”, “progressista”, acabando numa “compreensão subjectivista da revelação”...

No meio da tempestade, o seu orientador de tese, Gottlieb Söhngen, conseguiu que o trabalho não fosse rejeitado, mas devolvido para melhoria. “Joseph, que quer Schmaus?”, brincam os colegas, gozando. Resposta: “Ser importante.” Naquelas semanas dramáticas, não se zangou com Deus, mas “pediu-lhe suplicantemente auxílio”. E pôs-se ao trabalho, passando a tese de 700 para 180 páginas. No dia 21 de Fevereiro de 1957, depois do debate no Grande Auditório da Universidade Ludwig-Maximilian de Munique, ouviu a palavra salvadora: “Aprovado”. O que é facto é que tanto a sua dissertação de doutoramento sobre a Igreja “Povo de Deus” como a tese de habilitação sobre a revelação encontrarão forte eco nos documentos do Concílio Vaticano II. Entretanto, “era muito estimado entre os estudantes, como uma ‘voz da linha da frente’, pois o que fazia era quase uma revelação.”

O Papa João XXIII foi eleito no ano seguinte, 28 de Outubro de 1958, e, em Janeiro de 1959, teve a ideia de convocar um Concílio ecuménico, dando cumprimento a uma necessidade que já vinha do tempo de Pio XII. Desta vez, não era para condenar heresias, “não se tratava de resolver nenhum problema determinado”, mas do todo. “O cristianismo, que tinha construído e formado o mundo ocidental, parecia perder cada vez mais a sua força formativa, parecia cansado”, sublinhou Ratzinger. Ele tinha, portanto, de “erguer-se no Hoje, outra vez, para poder tornar-se de novo formativo para o Amanhã”. Ratzinger ousa olhar para o futuro e torna-se, em pouco tempo “um autêntico fã” de João XXIII: “ele fascinou-me desde o início, também por causa do seu modo não convencional, por ser tão directo, tão simples, tão humano”.

Entretanto vai-se procedendo à formação das Comissões preparatórias do Concílio.  O cardeal J. Frings, de Colónia, era membro da Comissão Central. Ora, pasme-se, ele que se tinha comprometido com um discurso em Génova, foi ter com Ratzinger, já Professor da Universidade de Bona: “Senhor Professor, pode prepará-lo?” O discurso foi feito e publicado e, numa audiência, diz João XXIII a Frings, abraçando-o: “Eminência, tenho que agradecer-lhe. Li esta noite o seu discurso. Que feliz coincidência do pensamento! Disse tudo o que eu penso e queria dizer, mas que eu não saberia dizer.” Frings: “Santo Padre, não fui eu que o fiz, mas um jovem Professor.” João XXIII: “A minha última encíclica também não fui eu que a escrevi, mas um perito.” O biógrafo, Peter Seewald, confronta então o discurso de abertura do Concílio, a 11 de Outubro de 1962, de João XXIII, e o discurso de Frings, isto é, de Ratzinger, para mostrar as coincidências.

No seu texto, Ratzinger apresenta as exigências do Concílio face às mudanças sociais do mundo, que vê marcado por três grandes movimentos: a globalização, a tecnicização e a crença na ciência. Uma das causas principais do ateísmo moderno está na “autodivinização da humanidade”. Mas a ciência não pode dar resposta à “necessidade da luta ética”, pois não toma a sério o homem enquanto ser moral, com liberdade e consciência. Missão do Concílio tem, portanto, que ser, em diálogo com a modernidade, formular a fé cristã como uma alternativa autêntica, vivível e digna de ser vivida. A Igreja como Povo de povos tem que ter em conta a pluralidade de formas da vida humana. Num mundo global, o catolicismo tem de ser verdadeiramente católico, plural, concretamente a liturgia “tem que ser tanto um espelho da unidade da Igreja como uma expressão adaptada das particularidades dos respectivos povos.”

(Continua)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 15 AGO 2020