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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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(XXII) EÇA E A GERAÇÃO DE SETENTA

 

Esta célebre fotografia foi tirada no Palácio de Cristal na Cidade do Porto e reúne cinco amigos da geração de 1870: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. A imagem está ligada a um mítico almoço e à compra de um leque para oferecer a D. Emília, noiva de Eça, autografado com uma pena de cozinha, entre a pera e o queijo: “quem muito ladra, pouco aprende” (Antero), “escritor que ladra não dorme” (Oliveira Martins); “dentada de crítico, cura-se como pelo do mesmo crítico” (Ramalho), “cão lírico ladra à lua; cão filósofo abocanha o melhor osso” (Eça), “cão de letras, cachorro!” (Junqueiro). E a matilha escreveu um “envoi”: “São cinco cães sentinelas / De bronze e papel almaço; / De bronze para as canelas, / De papel para o regaço”… Esta é uma das últimas expressões felizes do tempo em que Antero pôde ser feliz na costa de Vila do Conde.

Eça de Queiroz confessa o seu “temperamento conspirador”, a sua costela socialista, a sua admiração pela Comuna, mas em “As Farpas” afirma: “Detestamos o facho tradicional, o sentimental rebate a sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário – um tanto de mais!”… No fundo, defendia uma revolução pacífica, “preparada na região das ideias e da ciência”, influenciada por uma “opinião esclarecida”, numa palavra, uma “revolução pelo governo”. Contudo, ao longo das páginas das “Farpas”, encontramos o que designa como um “panfleto revolucionário”, que punha “a ironia e o espírito ao serviço da justiça”, enquanto causas semelhantes às dos Gracos, de Spartacus, de Moisés ou de Cristo… E, dez anos passados sobre o movimento revolucionário de Paris, nos anos oitenta, dirá: “os vencidos de então são hoje cidadãos formidáveis, armados não de uma espingarda revolucionária, mas de um legal boletim de voto, e que, em lugar de erguer barricadas nas ruas, fazem deputados socialistas nas eleições”.

Proudhon, o autor lido e venerado no Cenáculo de S. Pedro de Alcântara, entre a fumarada dos cigarros dos jovens amigos de Antero, continuará bem presente no pensamento inconformista do autor de “A Relíquia”. E não se preocupava ainda o Fradique tardio com a “miséria das classes – por sentir que nestas democracias industriais e materialistas, furiosamente empenhadas na luta pelo pão egoísta, as almas cada dia se tornam mais secas e menos capazes de piedade”? E não disse o próprio Eça, com apenas 22 anos de idade, no “Distrito de Évora” que “as revoluções não são factos que se aplaudam ou que se condenem? Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade”? O certo é que esta mesma preocupação (pela justiça e pela igualdade) vemo-la projetada, mais tarde, desde o conto “S. Cristóvão” à crónica “Um Inverno em Paris”, para não falar nos ecos do poderoso ensaio de Antero de Quental sobre as “Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX” que Eça glosa, aludindo ao “Bem Supremo, fim verdadeiro de toda a vida, fim divino a que tende o Universo. Em resumo, a lei moral do homem é o constante aperfeiçoamento e progressiva santidade”.

Misteriosamente, encontramos em “A Ilustre Casa de Ramires” algo que o brasileiro Álvaro Lins descobre com perspicácia: “mais do que em João da Ega, é em Gonçalo Ramires que Eça pode ser encontrado. João da Ega será uma imagem da sua mocidade, dos seus projetos, das suas ‘blagues’, do seu tipo exterior e convencional – de tudo o que ele seria se tivesse falhado. Mas em Gonçalo, a mais analisada e a mais conhecida das suas personagens, é onde Eça está. Onde estão, pelo menos, alguns dos seus sentimentos mais fortes, da sua maneira de ser, da sua posição em face da vida. E é curioso que Gonçalo, ao contrário de Fradique, sendo Portugal, sendo Eça, sendo o homem-português, permaneça ainda Gonçalo Ramires. Nem o sectarismo, nem o sentimento, nem o patriotismo, em Eça de Queiroz – nada, nem ele mesmo – perturba a criação artística”. Beatriz Berrini falará, por isso, de um “intelectual discrepante”. E nesta discrepância está o paradoxo que leva Eça (e os seus amigos) a serem considerados como “Vencidos”, quando de facto são vencedores, quer pela influência decisiva que se estende aos nossos dias, quer pela mensagem, a um tempo crítica e mobilizadora, de recusa terminante de derrotismo ou desistência, já que eles, de facto, não baixaram os braços. E a contradição de Gonçalo é claríssima, sabendo que a História, mais do que um motivo de orgulho retrospetivo torna-se demonstração de que a responsabilidade fica do lado da ação…

Para entender, basta ler Antero em “A Província” no texto “Expiação”, na sequência do Ultimatum inglês: “o nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo, falso e criminosamente vaidoso, pode afirmar o contrário. Declamar contra a Inglaterra é fácil: emendarmos os defeitos gravíssimos da nossa vida nacional será mais difícil, mas só essa desforra será honrosa, só ela salvadora. Portugal ou se reformará política, intelectual e moralmente ou deixará de existir”.

GOM

 

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MÁRIO DE SÁ CARNEIRO COMO DRAMATURGO E DOUTRINADOR DE TEATRO

 

Sem querer, de modo algum, transformar esta série de artigos exclusivamente numa evocação histórico-dramatúrgica em datas referenciais, não deixamos de referir os 130 anos do nascimento de Mário de Sá Carneiro (1890-1916), tendo em vista por um lado a indiscutível relevância do autor como tal e, por outro lado, a qualidade das peças que até nós chegaram. Em sucessivos artigos e em livros, tivemos ensejo de analisar a sua dramaturgia, mas importa agora e aqui referir outras abordagens e análises vindas aliás de autores de grande relevância e independência cultural e política, o que merece destaque.   

 

Isto, porque em si mesmo Sá Carneiro amplamente justifica toda a projeção poética e literária que efetivamente lhe é reconhecida: mas a sua obra não se concretizou especialmente na literatura dramática. E mais: das peças que escreveu, apenas duas chegaram na íntegra até hoje e ainda por cima, em ambas, Sá Carneiro foi coautor com outo parceiro.

 

Referimo-nos a “Amizade”, escrita com Tomaz Cabreira Junior e “Alma”, escrita com Ponce de Leão.

 

Nem as peças nem os co-autores deixaram marcas assinaláveis na cultura teatral portuguesa: mas obviamente o mesmo se não diz de Sá Carneiro, não obstante o pouco que é conhecido da sua criatividade dramatúrgica em si mesma. Ficou a memória de peças desaparecidas ou ignoradas, como “O Vencido” (1905), “Gaiato de Lisboa “ (1906), “Feliz pela Infelicidade” (1908), “A Farsa” (1913), “Irmãos” (1913).

 

Em 1987, Luís Francisco Rebello escreveu um prefácio à edição da “Alma” e citou um texto datado de 1913, onde Sá Carneiro analisa o fenómeno teatral na sua assumida conjugação de texto-espetáculo. Transcrevemos então algumas referências determinantes dessa análise acerca do fenómeno teatral, feitas por Sá Carneiro:


«A obra-prima teatral completa lança mesmo duas arquiteturas: Um exterior, mera armadura, outra interior.

 

A arquitetura exterior é um arcaboiço material – a carpintaria. Os trabalhos de um Sardou contêm esta arquitetura, mas só esta. Por isso não deixam de ser obras falsas. Não são obras imperfeitas. São obras falsas até à pacotilha máxima.

 

A arquitetura interior, que é a lama, a garra de ouro, consiste no ambiente que a grande obra dramática – a obra imortal – cria em torno de si: de maneira que nós temos a sensação nítida de que a sua máxima beleza não reside nem nas suas palavras, nem na sua ação (arquitetura exterior) mas em qualquer outra coisa que se não vê: uma grande sombra que se sente e se não vê» (fim de citações de Sá Carneiro; cfr. Luís Francisco Rebello - Prefácio à edição de “Alma” 1987).

 

No que se refere à “Amizade”, como vimos escrita em colaboração com Tomaz Cabreira Junior, tivemos ocasião de referir aspetos e características literárias que parecem indicar a criatividade de Sá Carneiro: será o caso, como tivemos já ocasião de escrever, do mito de uma Paris brilhante, sede da arte e do pensamento, ou a personagem do pintor Cesário, providencial no apoio a amigos.

 

Pois como já temos referido, trata-se de uma abordagem ambiental e psicológica que em muitas outras obras de Sá Carneiro assumem a maior relevância... Como também assumiu em tantas e tão variadas criações/intervenção da sua vida e atividade pública e/ou criativa!

 

E, para terminar esta evocação analítica, citamos David Mourão-Ferreira, que, no grande ensaio intitulado “Hospital das Letras” (Guimarães Editores 1966), escreveu:

 

«Mais tarde, a poesia de Mário de Sá Carneiro orienta-se predominantemente, como observou Urbano Tavares Rodrigues, “para uma segunda fase confessional e niilista, mais disposta à aceitação do banal, do concreto”. É já o começa da “queda”, a sensação da “desistência” nos “Últimos Poemas”».

 

David Mourão-Ferreira cita detalhadamente diversas obras de Sá Carneiro. E termina a análise com uma clara e categórica apreciação:

 

«Já então, na Europa, a psicologia analítica começava a divulgar isto mesmo: que a loucura se “mede” por míticos padrões. O de Sá Carneiro tinha forçosamente de ser “alado”. De qualquer forma, um voo de frustração que no “Quase” ficara definido: “Asa que se enlaçou mas não voou...” Por outas palavras: o mito de Ícaro.”»

 

DUARTE IVO CRUZ