Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Foi a 20 de Julho de 1895 que Ramalho Ortigão, Joaquim de Vasconcelos, José Queiroz e o Arcebispo de Mitilene D. Manuel Baptista da Cunha, numa visita a S. Vicente de Fora, descobriram as tábuas que constituem o políptico de S. Vicente atribuído a Nuno Gonçalves, pintor régio de D. Afonso V.
A face do Infante D. Henrique permitiu uma importante identificação por Vasconcelos, por exata semelhança com a que se encontra na “Crónica dos Feitos da Guiné” de Zurara na Biblioteca Nacional de Paris. As tábuas teriam sido reencontradas em 1882 por Columbano, acompanhado por sua irmã Maria Augusta Bordalo Pinheiro (que teria chamado a atenção para as pinturas) e pelo Monsenhor Elviro dos Santos, estando aparentemente esquecidas entre os materiais das obras que aí decorriam.
No verão de 1895 Joaquim de Vasconcelos escreveu dois artigos no “Comércio do Porto” sobre os painéis nos quais exprimia admiração pela força expressiva da pintura constituída por figuras que representariam diversos estratos sociais, convergindo numa figura central duplamente figurada. Joaquim de Vasconcelos chamava a atenção da opinião pública para a necessidade de as tábuas serem removidas para um lugar mais seguro, com vista a uma melhoria das condições de conservação. Dizia Joaquim de Vasconcelos: “Nas quatro taboas não há vestígios de paisagem ou de arquitetura. Todo o espaço era pouco para tantas figuras de tamanho quase natural. Nada há de acanhado, de soi-disant gótico no desenho; panejamentos esplendidos, sentindo-se a anatomia sempre por debaixo. A pintura é sempre a óleo, o desenho de uma firmeza exemplar, a perspetiva bem estudada e até atrevida. O pintor caracteriza segundo os preceitos do grande Van Eyck, e poderia muito bem ser um dos muitos portugueses que acompanharam a duquesa de Borgonha à Flandres, e lá estudaram a fundo a arte”.
Francisco de Holanda (1517-1585) tem referências ao altar de S. Vicente na Sé Catedral, o que tem servido de ajuda no estudo dos mistérios dos painéis.
Em 1909 e mercê dos muitos esforços feitos desde 1905, o historiador José de Figueiredo e futuro fundador do Museu de Arte Antiga, assiste, em sessão da Comissão Executiva da Academia Real de Belas-Artes, à apresentação da disposição do Conde dos Olivais e Penha Longa para custear os trabalhos relativos à conservação das tábuas. Luciano Freire foi nomeado como responsável pelo trabalho de tratamento e integração das pinturas, com a autorização do Cardeal Patriarca D. António Mendes Belo e despacho do Ministro da Fazenda. Numa oficina do Convento de S. Francisco, Luciano Freire levou a cabo a tarefa essencial de restauro, concluída na Primavera de 1910. E logo que os quadros ficaram libertos das repinturas sucessivas e de enegrecidos vernizes, verificou-se que se tratava de dois trípticos. Apareceu então a obra de arte no seu esplendor inicial de conjunto.
Os Painéis apresentam-nos um agrupamento de 58 personagens em torno da dupla figuração de S. Vicente, solene e monumental assembleia representativa da Corte e de vários estados da sociedade portuguesa da época, com destaque para a Cavalaria e para a Igreja nas suas diversas hierarquias, em ato de veneração a S. Vicente, patrono e inspirador da expansão militar quatrocentista no Magreb. Tais personagens, poderosamente caracterizadas pela concentração expressiva dos rostos e atitudes e pela requintada definição pictórica dos trajes e seus adereços, aliam, nesta encenação cerimonial, a intenção de uma evocação narrativa a uma visão contemplativa.
Embora permaneça envolta em mistério esta representação, na ausência de testemunhos claros relativamente à sua criação, intenção e significado da obra, ela está associada a uma dupla função, votiva e evocativa, provavelmente respeitante aos triunfos militares da dinastia de Avis no norte de África. É um singular “retrato coletivo” na história da pintura europeia, e uma obra de grande importância simbólica na cultura portuguesa. Daí os desafios interpretativos, quase policiais e com efeitos por vezes trágicos, que tem suscitado nomeadamente no domínio das identificações iconográficas, exercício mais ou menos imaginativo que tem alimentado uma polémica secular e até ao momento inconclusiva. Temos assim: os painéis: dos frades, dos pescadores, do Infante, do Arcebispo, dos Cavaleiros e da Relíquia – sobre os quais há basta literatura e muita especulação.
Conhecemos o facto de três dos nossos modernistas, Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso e Santa Rita Pintor terem afirmado a sua própria militância artística em frente aos Painéis – bem como a circunstância de a ordenação e apresentação da obra corresponder à proposta de Almada Negreiros considerando as linhas apresentadas no chão da pintura. A obra não estará, no entanto, completa. Estamos, porém, perante uma das grandes referências da cultura portuguesa, com projeção universal.
No dia 11 de outubro de 1962, foi a inauguração solene do Concílio Vaticano II, o maior acontecimento em número de participantes na História da Igreja e de consequências mais significativas também — o general De Gaulle considerou-o o maior acontecimento do século XX. De 133 países seguiram para Roma 2540 Padres conciliares; o seu número ascendia a 2908, mas muitos não puderam comparecer. Pela primeira vez, houve mulheres convidadas e também observadores protestantes e ortodoxos.
Nos Concílios anteriores, a finalidade era um tema concreto e para condenar heresias. Neste, tratava-se do aggiornamento (actualização e abertura) da Igreja, não para condenar, mas para ir ao encontro do mundo moderno, estabelecendo pontes. Como disse João XXIII, para quem o Concílio devia ser um “novo Pentecostes”, a Igreja “julga satisfazer melhor as necessidades de hoje mostrando a validade da sua doutrina do que renovando condenações”. Nos documentos conciliares, afirma-se que a Igreja é Povo de Deus, a hierarquia vem depois; afirma-se a colegialidade episcopal, promove-se o apostolado dos leigos; a revelação não é uma herança enregelada, mas viva e dinâmica; reformou-se a liturgia e introduziu-se o vernáculo; renovou-se a formação do clero; afirmou-se a liberdade religiosa; aprofundou-se o ecumenismo e o diálogo inter-religioso; a Igreja é um serviço a toda a Humanidade... Pergunto a mim mesmo muitas vezes o que seria hoje a Igreja sem o Concílio.
A festa da abertura terminou com um acontecimento “inesquecível”, segundo Ratzinger. Ao anoitecer, uma multidão de meio milhão de pessoas com tochas na mão concentrou-se na Praça de São Pedro e, com o luar, formou uma cruz imensa. João XXIII veio à janela, acenando: “Quando voltardes para casa, dai aos vossos filhos um beijo de boa noite e dizei: é um beijo de boa noite do Papa. Que saibam que o Papa sobretudo nas horas mais tristes e duras está junto dos seus filhos. Ele é um irmão que, por vontade de Nosso Senhor, se tornou pai.”
Os trabalhos conciliares começaram, e estava tudo preparado pela Cúria para que se mudasse alguma coisa ficando tudo na mesma. À frente, o cardeal Ottaviani, o chefe da então Inquisição, que disse: “eu peço a Deus para morrer antes de o Concílio terminar, assim posso morrer católico”. Mas um conjunto de cardeais da Europa central e do norte exigiu mudanças, liberdade para discutir livremente, e começou a revolução conciliar que “mudou a Igreja para sempre”, escreve Peter Seewald, que acrescenta: “o Cardeal Frings, de Colónia, e o seu conselheiro Ratzinger viraram o Concílio”. A revista Der Spiegel escreveu então que Frings, que era um conservador, tinha dado o tom no discurso de Génova. “Nele, pela primeira vez na sua vida, disse que a Igreja tinha de rever formas tradicionais, como o Index (dos livros proibidos), e a sua respectiva praxis, pois as pessoas são tremendamente críticas e hostis contra todos os sinais totalitários de comportamento. Exigiu também que se tinha de dar suma importância à ideia de tolerância, de atenção à liberdade dos outros. E sublinhou ainda o tema que no Concílio afirmou como central: a Igreja precisa de uma intensificação do poder episcopal.” O que a revista não sabia é que o texto completo do discurso provinha de Ratzinger.
Frings tornou-se “um herói” e Ratzinger, “o mais jovem perito da maior e mais importante assembleia eclesial de todos os tempos”, “uma estrela”. O Concílio terminou em 1965 e Ratzinger, com 38 anos, encontra-se no cume da carreira, “tinha atingido tudo o que um professor pode querer: notoriedade, reconhecimento, influência.” Em 1966, ascende à Universidade de Tubinga, “o Olimpo da Teologia alemã”, onde reencontra o seu colega e amigo Hans Küng. Mas pouco depois deixa Tubinga que troca por Regensburg (Ratisbona). Que se passou? Este é o tema da próxima crónica.
De qualquer forma, em 1970, apontando para a Igreja do ano 2000, ainda se pronunciou de modo aberto sobre temas complexos, em relação aos quais voltaria atrás mais tarde. A “Igreja tornar-se-á pequena. Com o número dos seus membros, perderá muitos dos seus privilégios... Conhecerá também certamente novas formas do ministério e ordenará como padres cristãos que deram provas, que têm a sua profissão... Juntamente com estes é indispensável o padre oficial como até agora. O futuro da Igreja não virá daqueles que só têm receitas... O processo será longo e difícil..., mas de uma Igreja interiorizada e simples sairá uma grande força. Porque as pessoas num mundo totalmente planificado sentir-se-ão indizivelmente sós. Com o desaparecimento de Deus, experimentarão a sua total e terrível pobreza. E descobrirão então a pequena comunidade dos crentes como algo completamente novo. Como uma esperança, como uma resposta pela qual secretamente sempre suspiraram, como pátria que lhes dá vida e esperança para lá da morte.”
Também o celibato foi um tema debatido: “por um lado, a defesa do celibato, mas, por outro, deixar a questão em aberto.” Quanto era para ele importante o tema da ordenação dos chamados viri probati (homens de fé provada, casados ou não), mostra-se numa carta de 1971: “Ouço dizer que os bispos alemães se terão pronunciado contra; infelizmente, pois parecia-me ser o caminho para, com sentido e sem quebra da tradição, criar novas possibilidades.” Em 1972, Ratzinger manifestou-se também aberto a novas soluções para a possibilidade da comunhão para divorciados recasados.
(Continua)
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 22 AGO 2020