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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

OS PRAZERES DA COMIDA E DO SEXO: “DIVINOS”

 

1. Quando se fala da Igreja e do sexo, entra-se numa história muito complexa e pouco edificante.


Significativamente, não é com a Bíblia que há dificuldades. De facto, no Antigo Testamento, lê-se, logo no primeiro livro, o Génesis, que Deus criou também a sexualidade e viu que era boa. Do mesmo Antigo Testamento faz parte um dos livros mais belos a cantar o amor erótico: o Cântico dos Cânticos.


Já no Novo Testamento, Jesus raramente se referiu ao sexo, aliás nunca por iniciativa própria, mas para responder a perguntas que lhe foram feitas a propósito do divórcio e para defender a mulher.


2. Factor decisivo para o envenenamento da relação foi a gnose, a primeira grande heresia com que o cristianismo teve de confrontar-se e que, desgraçadamente, não terminou. Segundo a gnose ou gnosticismo, a salvação não se alcança pela fé, mas pelo conhecimento, que é secreto e, em última análise, acessível apenas aos iniciados. Elemento essencial desta doutrina é que o Deus do Antigo Testamento, que é o criador do mundo, não é o mesmo que o Pai de Jesus Cristo. Este mundo, que é o mundo material, procede de uma queda e é mau. Os membros desta heresia insistiam concretamente, na continuação do platonismo, num dualismo radical de alma e corpo, matéria e espírito, sendo o corpo apenas uma espécie de “contentor” da alma: necessário, mas sempre inferior e indesejável.


A gnose pretendia essencialmente explicar a existência do mal no mundo. O maniqueísmo situa-se neste mesmo quadro de compreensão, distinguindo no fundamento de tudo um duplo princípio, um princípio do bem e um princípio do mal; a História é uma luta entre estes dois princípios, com a esperança do triunfo final do Bem. Santo Agostinho era maniqueu, mas, ao tornar-se cristão, teve de abandonar o maniqueísmo, pois, segundo o cristianismo, Deus é o único princípio e fundamento de tudo e tudo fez bem. Ficava um  problema gigantesco: como explicar o mal no mundo, se Deus é bom? Santo Agostinho, a partir de uma experiência pessoal negativa da sexualidade e de uma exegese errada — ele não sabia grego e, por isso, seguiu a tradução latina de um passo célebre da Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo V, versículo 12: Adão, “no qual” todos pecaram, quando o original grego diz “porque” todos pecaram —, apresentou como solução para o problema do mal a doutrina do pecado original, embora os Evangelhos não falem dele. O que é facto é que, com esta doutrina, Santo Agostinho, que é, por outro lado, um dos maiores génios da Humanidade, envenenou a sexualidade e tudo quanto de um modo ou outro com ela se relaciona. De facto, esse pecado foi entendido não como o primeiro de todos os pecados, porque todos os seres humanos são pecadores, mas como um pecado herdado de Adão e transmitido por geração, portanto, no acto sexual.


A lei do celibato obrigatório para o clero e sobretudo a misoginia têm também aqui assento. As mulheres são, por um lado, fonte da tentação e, por outro, devem ter filhos, mas sabendo que durante nove meses transportam consigo o pecado. A confissão dos pecados ficou quase exclusivamente centrada no sexo, de tal modo que o confessionário em vez de ser o lugar da libertação se transformou na realidade em câmara de tortura. Segundo o historiador Guy Bechtel na sua obra A carne, o diabo e o confessor, desde o século XVIII muitos terão iniciado o abandono da Igreja, precisamente porque a confissão, patologicamente centrada no pecado sexual, esmiuçado até à exaustão, começou a ser sentida como invasão indevida da intimidade de cada um, ferindo inclusivamente os direitos humanos, de que se começava a ter uma consciência mais viva.


3. Foi neste contexto que provocaram a merecida atenção da opinião pública mundial declarações do Papa Francisco sobre o tema do prazer da comida e do sexo, que vem de Deus, feitas a Carlo Petrini, um jornalista e gastrónomo italiano, e publicadas recentemente no seu livro Terrafutura. Dialoghi con Papa Francesco sull’ecologia integrale (Terra futura. Diálogos com o Papa Francisco sobre a ecologia integral).


O jornalista provocou o Papa, dizendo-lhe que “a Igreja católica sempre anulou o prazer, como se fosse algo a evitar”. Francisco não está de acordo e respondeu que “a Igreja condenou os prazeres desumanos, grosseiros e vulgares, mas sempre aceitou os prazeres humanos, sóbrios, morais”. Francisco opõe-se a “uma moralidade beata, fanática”, que rejeita o prazer. Essa rejeição existiu na história da Igreja, mas constitui “uma má interpretação da mensagem cristã” e “causou enormes danos, que ainda hoje se fazem sentir fortemente em alguns casos.” E, para que não houvesse equívocos, declarou textualmente: ”O prazer vem directamente de Deus. Não é católico, não é cristão ou outra coisa, é simplesmente divino. O prazer de comer serve para que ao comer se mantenha uma boa saúde, tal como o prazer sexual existe para tornar o amor mais belo e garantir a continuação da espécie.”


4. Não nos vivemos dualisticamente: de um lado o corpo, do outro a alma; mesmo se em tensão, o ser humano é uma unidade corpóreo-espiritual. Dada a complexidade do Homem, que pode até levar a confundir a felicidade com a soma de prazeres e a anomia, não é fácil levar uma vida humana na dignidade livre e na liberdade com dignidade para todos. Mas saúda-se a intervenção de Francisco, abençoando o prazer, que não pode ser nem tabu nem ídolo, um deus falso e enganador. “Simplesmente divino”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 SET 2020

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Acerca do Espaço Organizado de Fernando Távora.

“...o espaço é algo em que o que se deixa é tão importante como o que se preenche.” (Távora, 1999)

No texto Dimensões, Relações e Características do Espaço Organizado do livro Da Organização do Espaço, Fernando Távora escreve que a noção de espaço começa, assim, que marcamos um ponto num papel branco. Mas haverá que acrescentar uma quarta dimensão, que é o tempo, sempre que o ponto se movimenta no espaço. Falar, pois, em espaço organizado só a duas ou três dimensões não corresponde à realidade. Os volumes, as superfícies e as linhas, constituem, tal como os pontos, acontecimentos de organização do espaço aos quais se dá o nome de formas. E, segundo Távora, o espaço é também forma. É o espaço que, simultaneamente, separa e liga. E a forma do espaço é uma noção fundamental, pois é ela que nos permite ganhar consciência de que não existem formas isoladas e que existe sempre uma relação - quer entre as formas que ocupam o espaço, quer entre elas e o espaço, que, embora não o vejamos, sabemos constituir a forma das formas aparentes.

À escala da pessoa humana, pode distinguir-se a existência de formas naturais (ou puras, que são aquelas cuja criação não é humana) e formas artificiais (cuja existência depende ativamente de intervenção humana). Mas, segundo Távora, não se pode esquecer que a relação entre as formas naturais e artificiais é por vezes tão íntima, infinita e inesgotável que não é possível saber onde umas acabam e outras começam.

“Deslocando o seu corpo, construindo a sua casa, arroteando um campo, escrevendo uma carta, vestindo-se, pintando, conduzindo o seu automóvel levantando uma ponte, poderíamos dizer - vivendo - o homem organiza o espaço que o cerca, criando formas, umas aparentemente estáticas, outras claramente dinâmicas.” (Távora, 1999)

Na palavra organizar, para Távora, vê-se um desejo, uma manifestação de vontade, um sentido, uma criação de harmonia (que é o jogo exato entre consciência e sensibilidade). Távora, refere-se à pintura, à escultura e à arquitetura como sendo as artes do espaço. A pintura é a duas dimensões, dado que em princípio o pintor organizar um espaço, que possui duas dimensões, e dentro delas encontra os limites espaciais da sua atividade (mas também há tentativas de representar a terceira dimensão, a pespetiva, e até quarta dimensão, como por exemplo com o cubismo). A escultura é arte das três dimensões. O escultor cria volumes envolvidos por espaço e a quarta dimensão aparece nela como resultado do observador que, se desloca para encontrar os seus vários perfis. Ora, a arquitetura difere da escultura pela criação de um espaço interno. Espaço esse que deve ser vivido, percorrido e preenchido e a existência do tempo é a sua grande medida – não apenas como dimensão de observação, mas como dimensão da própria obra. Um edifício tem uma vida, tal como uma pintura ou uma escultura, mas neste caso, uma vida mais dinâmica.

Uma característica fundamental do espaço organizado é a sua continuidade. O espaço contínuo não pode ser organizado com uma visão parcial. Todas as formas lhe pertencem (as positivas e as negativas). Tudo tem importância na organização do espaço - as formas em si, a relação entre elas, o espaço que as limita - e esta é a verdade que resulta do espaço ser contínuo. O espaço é contínuo, e porque o tempo é uma das suas dimensões, o espaço é também irreversível e dinâmico. Um espaço nunca pode vir a ser o que já foi.

Para Távora, existem dois tipos de participação na organização do espaço: uma participação horizontal, que se realiza entre pessoas de uma mesma época, e uma outra vertical, que se realiza entre pessoas de épocas diferentes. Para que o espaço organizado seja harmónico, haverá que transformar a participação em colaboração. As formas criadas são profundamente condicionadas por uma soma infinita de fatores (naturais e humanos), que Távora designa por circunstância. O espaço organizado é condicionado, mas uma vez concretizado passa a ser condicionante. A forma mais compreensível para o observador, será assim, aquela que melhor o retrate, aquela que com ele melhor se identifique e com ele partilhe uma natureza comum.

Para organizar o espaço, é necessário entender que as formas revestem a vida das pessoas, e como consequência cada pessoa tem como responsabilidade organizar o espaço que a cerca. A organização do espaço deve ter sempre como base uma atitude de escolha face à circunstância (mesmo se a tiver de negar, não deve pô-la à margem). Uma forma só possui significado na medida em que representa ou satisfaz para além de uma só pessoa, e se satisfaz toda uma sociedade.

A criação de formas afeta a pessoa humana, na sua vida física e espiritual, na medida em que as formas criadas servem para o prolongar, servir, enriquecer, valorizar o seu ambiente físico e melhorar aspetos múltiplos da sua existência.

“O espaço é um dos maiores dons com que a natureza dotou os homens e que, por isso, eles têm o dever, na ordem moral, de o organizar com harmonia.” (Távora, 1999)

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

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  De 28 de setembro a 4 de outubro de 2020

 

Ao celebrarmos o centenário do nascimento de Ray Bradbury (1920-2012), o autor de Farenheit 451, de 1953, podemos neste tempo refletir sobre o sentido autêntico dos temas do destino dos livros e da força da memória.

 

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CONTINUAREI A LER LIVROS

Há uns anos numa das suas crónicas Javier Marías afirmava isto mesmo, para demonstrar que o debate tantas vezes repetido sobre o fim do livro em papel deveria ser considerado com especiais cautelas e sem simplificações. Presenciamos uma evolução muito rápida e profunda sobre a comunicação. A comunicação digital sofreu nos últimos meses um extraordinário progresso, ditado pelo confinamento e pelos efeitos da pandemia. É verdade que muito do que se assistiu, já estava em curso, e se não tivesse havido antes avanços tecnológicos tão significativos, não teria sido possível com tanta rapidez, pôr as pessoas em diálogo, através das redes de informação e comunicação. As conferências “em linha”, os “webinars”, o ensino a distância tornaram-se uma realidade nova, com virtualidades e limitações. E as redes sociais prosseguiram, com as enfermidades conhecidas, com circuitos fechados e microcosmos empobrecedores, mas longe de terem esgotado as suas vantagens… E a leitura? Curiosamente, há sinais vários e até contraditórios, sobre a sua importância, bem como muitas dúvidas e perplexidades. Houve muitas interpretações sobre o sentido do conto “Bright Phoenix” (1947) e o livro que se lhe seguiu e o escritor passou uma boa parte do tempo a desmentir muitas das interpretações pseudopolíticas, dizendo apenas que idealizou e escreveu a obra na Universidade da Califórnia, na biblioteca Powell, com uma máquina de escrever alugada, com o objetivo de prevenir a sociedade de consumo para risco do fim dos livros e das bibliotecas e para um consequente suicídio da humanidade. Contra os riscos totalitários, contra o esquecimento da importância do tempo e da reflexão, o que animou Bradbury foi um profundo amor pelo livro, pela leitura e pelas bibliotecas – como fatores de liberdade. Muito do que afirmou no livro e em comentários subsequentes tornou-se uma realidade quase profética – e o certo é que, nesta última emergência pandémica, houve pequenos sinais (como o escritor também encontrou na sua narrativa) que apontam para que o livro e a leitura são fatores essenciais que asseguram a liberdade e a responsabilidade e podem prevenir contra a manipulação, a simplificação e a emergência de novas formas de servidão. Mas a grande vantagem do livro e da leitura está na demonstração da imperfeição humana. De facto, podem trazer-nos o melhor e o pior, a qualidade e a mediocridade, como na vida.

 

COMO ERRADICAR O ANALFABETISMO?

O primeiro país a erradicar o analfabetismo foi a Noruega, porque a igreja reformada luterana proibiu o casamento de mulheres analfabetas, para que todos pudessem ler a Bíblia. Assim passou de 80% de analfabetos no início do século XIX para zero por cento, geração e meia depois… Quando em 1990 a UNESCO proclamou o objetivo da “Educação para todos” deu especial ênfase à educação das mulheres – e onde os programas têm sido postos em prática a generalização da leitura tem permitido combater a fome, a doença e a miséria. Ler um poema, contar uma história, cultivar a memória, conhecer os programas de vacinação, as bulas dos medicamentos e as regras da maternidade responsável, salvam vidas humanas. Compreendo o amor de Bradbury aos livros e à leitura, sendo suspeito porque nasci e tenho vivido rodeado de livros, mas não se trata apenas de um gosto egoísta pelo calor e pelo cheiro dos livros. Trata-se do cerne da cultura. Os livros, porém, como as pessoas são diferentes, com qualidades e defeitos. Quando em pequeno me ofereciam um livro novo, desembrulhava-o, a tinta nova inebriava-me e recebia-o como uma visita. Já disse tantas vezes que os Dicionários e as Enciclopédias foram a minha perdição na biblioteca de meu avô. Passei dias esquecidos com eles. Aí conheci Garrett e Herculano, mas também Plutarco, o grande mestre da biografia na coleção inesquecível dos “Cadernos Culturais” da Editorial Inquérito, de Eduardo Salgueiro. Aí encontrei uma verdadeira enciclopédia ao alcance da mão – Licurgo, Sólon, Péricles, Cícero. Mas nos cadernos havia também António Sérgio, Sílvio Lima, José Régio, Nemésio, Casais Monteiro. Foi Agostinho da Silva (bom amigo, graças a Mário Soares) que me deu a conhecer Fernando Pessoa, na coleção de filosofia dos Guimarães. Só mais tarde encontrei Eduardo Lourenço, graças a António Alçada na “aventura da Morais”. Era o tempo dos pequenos cadernos. Os da “Seara Nova” traziam-nos a melhor literatura. O amor da poesia vem de lermos e decorarmos. Ah! Os clássicos: Camões, Vieira, Bocage (tão esquecido), Cesário, Antero, Camilo Pessanha, Sebastião da Gama, Daniel Filipe… E há o gosto pelo teatro, e em especial por Gil Vicente. Maria Germana Tânger ensinar-me-ia a dizer e não a declamar. E Rómulo de Carvalho leva-nos até à “Ciência para Gente Nova”. A “História do Átomo” ou a “História dos Balões” foram lidas e relidas com um prazer enorme… Depois as enciclopédias francesas, a começar no imprescindível Larousse com as ilustrações de uma edição do princípio do século XX. E o vício dos pequenos livros continuou com o “Que sais-je?”. Era puro prazer, e a exigência correspondia, no fundo, ao conhecimento pela narrativa, que nos permitia entender questões complexas – e aprendi que a clareza é a melhor pedagogia, por passos sucessivos e seguros…

 

LER DE COR

Devorávamos livros porque eram pequenos e acessíveis. E ganhávamos treino para ler Júlio Dinis, Camilo e Eça – e tudo o mais… Poderia dar mil exemplos. O design dos livros originava verdadeiras obras de arte – Sebastião Rodrigues, Daciano Costa, Emmérico Nunes, Fernando Lemos, Mily Possoz, Paulo-Guilherme, José Brandão… De que falo, afinal? Do amor da leitura e dos livros, que é algo dificilmente definível. Hoje o vício de leitura chega, naturalmente, às versões digitais e aos e-books. Ler é ler e para quem tem o vício, ele chega a toda a parte. Sei que as publicações em papel terão um futuro condicionado. Mas os livros continuarão a ser fundamentais. Vai mesmo nascer um tempo em que a digitalização das obras e a sua disponibilização ao grande público criará um interesse redobrado pelas edições em papel de qualidade. Haverá livros de que não poderemos prescindir, aptos a ser folheados e sublinhados. E haverá obras de referência disponíveis através das redes digitais. E continuaremos a ter a biblioteca como mito, segundo o entendimento de Alberto Manguel. De facto, “a Biblioteca de Alexandria foi concebida para fazer mais do que somente imortalizar. Devia registar tudo o que tivesse existido e pudesse ser registado, e esses registos deviam originar mais registos, num infindável rasto de leituras e glosas, que produziriam, por sua vez, novas glosas e novas leituras. Devia ser uma oficina de leitores, não apenas um local onde os livros fossem preservados para todo o sempre”… (A Biblioteca à Noite, Tinta da China, 2016).  

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

O PATRIMÓNIO CULTURAL COMO MAIS-VALIA…


Nos anos oitenta do século XX, a França criou as Jornadas de Portas Abertas dos monumentos históricos que o Conselho da Europa adotou com o apoio da União Europeia em 1991 como Jornada Europeias do Património, que Portugal coordenou no início dos anos 2000 graças a Helena Vaz da Silva no Centro Nacional de Cultura. Este ano o tema é “Património e Educação – Aprender para a Vida” com os objetivos de fazer conhecer melhor a riqueza e a diversidade culturais da Europa, suscitar o interesse pelo património cultural, lutar contra o fechamento e a xenofobia e encorajar a abertura ao outro e a outras culturas e informar os cidadãos e a sociedade sobre a necessidade de proteger o património cultural como realidade viva – de acordo com a Convenção Cultural Europeia, assinada em Paris a 19 de dezembro de 1954 e hoje bem viva na Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea assinada em Outubro de 2005 em Portugal. Cada presente reconstrói o passado histórico como sinal perene da cultura e da dignidade humana. Está em causa não a invocação do passado, mas a compreensão da memória como sinal de humanidade e de aprendizagem, enquanto emancipação e desenvolvimento.

A mais antiga Convenção sobre proteção de monumentos refere-se a conflitos armados. De facto, a Conferência Internacional da Paz, realizada em Haia em 1899, estabelece acordos ou convenções sobre a resolução pacífica de conflitos internacionais, dispondo que em caso de “cercos e bombardeamentos” devem ser “tomadas todas as medidas necessárias para poupar os edifícios dedicados à religião, à arte, à ciência, à assistência e hospitais”. Estas convenções de 1899 viriam a ser revistas e aumentadas em 1907. 


Então passa a referir-se, expressamente, além dos edifícios citados, os ”monumentos históricos”, devendo em caso de conflito ou bombardeamento naval haver sinais, definidos em formas e cores, a colocar nos edifícios a proteger. O que se passou no outono de 1991 em Dubrovnik, cidade classificada como património da humanidade pela UNESCO, em 1979, é ilustrativo da grande dificuldade na concretização das medidas de proteção. Apesar da missão de paz levada a cabo por Jean d’Ormesson, André Glucksmann e Bernard Kouchner, a missão tentada com a guerra em curso não teve sucesso. Os bombardeamentos continuaram. O mesmo se diga das bárbaras destruições de agosto de 2015, em Palmira, classificada pela UNESCO em 1980, com a trágica morte por decapitação do arqueólogo Khaled al-Asaad, que entregou toda a sua vida ao estudo de uma das mais importantes estações arqueológicas do mundo. A grave destruição de monumentos de valor incalculável foi acompanhada do assassinato do cientista que melhor conhecia a história do lugar. Visou-se, assim, uma destruição simultânea quer do bem material, mas também da base do conhecimento que existia.


Apesar das convenções internacionais serem explícitas, não tem sido possível intervir positivamente nas situações mais graves e dramáticas. O 6.º Congresso Internacional de Arquitetos, realizado em Madrid em 1904, com uma ampla representação portuguesa, distinguiu monumentos mortos e monumentos vivos, devendo os primeiros ser conservados para evitar que caiam em ruínas e os segundos continuar a servir. Prevaleceu, então, a ideia de que deveria ser respeitado o “estilo primitivo do monumento”, sem prejuízo da salvaguarda doutros estilos “sempre que tenham mérito e não destruam o equilíbrio estético do monumento. No imediato pós-guerra, depois de 1945, houve importantes desenvolvimentos. As diversas Cartas de Atenas tiveram grande influência nos domínios patrimonial e arquitetónico. Além da Carta referida de 1931 (sobre conservação e restauro), deve citar-se a que foi aprovada no mesmo ano pela assembleia geral do 4º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, em Atenas (julho-agosto de 1933), dedicado à cidade funcional. Durante este congresso, que contou com a liderança de Le Corbusier, foi elaborada a Carta sobre o urbanismo moderno, não confundível com a Carta dedicada ao restauro de monumentos. Mesmo assim, o capítulo 5º da Carta de 1933 sobre urbanismo e a cidade moderna trata do património histórico das cidades, referindo que os valores arquitetónicos devem ser salvaguardados, quer sejam edifícios isolados ou conjuntos urbanos. Importa ainda lembrar que a tentativa de elaborar uma Convenção Internacional para a proteção de monumentos e obras de arte em tempo de guerra (1936) não pôde ser aprovada em virtude da precipitação dos acontecimentos internacionais que culminaram na tragédia de 1939-45. Vindo, porém, a constituir a base da Convenção de Haia (de 1954) para a proteção dos bens culturais em caso de conflito armado.


Com a criação, com sede em Paris, da UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, que sucedeu à Comissão Internacional de Cooperação Intelectual, o património cultural assume um papel de maior importância – nascendo, no seu âmbito: o Conselho Internacional de Museus (ICOM), em Paris, organização não-governamental criada a 16 de novembro de 1946, que sucede ao Serviço Internacional de Museus; o Centro Internacional de Estudos para a Conservação e o Restauro dos Bens Culturais (ICCROM), com sede em Roma e fundado em 27 de abril de 1957; bem como o Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS) criado, com sede em Paris, a 21 de junho de 1965. Importa referir que, após a realização da Conferência de Washington D.C. em 1965, foi feita uma recomendação no sentido da aprovação da Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, que viria a ser assinada a partir de 1972, englobando hoje 1121 referências culturais, 213 naturais e 39 mistos, localizados em 167 países, e num total de 39 transfronteiriços, estando 53 estão em perigo. A Itália é o país com maior número de sítios classificados, com 55, tal como a R. P. da China, também com 55, seguida da Espanha com 48, da Alemanha com 46 e da França com 45. No diz respeito à distribuição por grandes áreas geográficas, verificamos que na Europa localizam-se 529 bens classificados em 50 países, em África 96 em 35 países, na América Latina e Caraíbas 142 em 28 países, na Ásia e Pacífico 268 em 36 países, nos Estados Árabes 86 em 18 países. Neste contexto, Portugal tem 17 bens na lista do Património Mundial. A Convenção considera a cultura humana e a natureza como valores indissociáveis e parte da ideia de que há património cultural ou natural de uma região ou de um país que tem um valor excecional, não só para a comunidade, mas também para todos os povos do mundo. Daí a ideia de uma lista onde são inscritos monumentos, conjuntos, paisagens e elementos do património imaterial, considerados mais significativos, segundo critérios previamente definidos. Em 2003, a UNESCO aprovou a Convenção para a Proteção do Património Imaterial, destacando o património vivo que abrange outras tipologias de bens culturais, como tradições e expressões orais, lugares de memória, saberes e manifestações tradicionais. Neste âmbito, inserem-se 7 bens imateriais no território português, como o fado, a dieta mediterrânica e o figurado de Estremoz.


Definido ao longo do tempo pela ação humana, o património cultural, longe de se submeter a uma visão estática e imutável, passa a ter de ser considerado como um “conjunto de recursos herdados do passado”, testemunha e expressão de valores, crenças, saberes e tradições em contínua evolução e mudança. O tempo, a história e a sociedade estão em contacto permanente. Nada pode ser compreendido e valorizado sem esse diálogo extremamente rico. Usando a expressão de Rabelais, estamos sempre perante “pedras vivas”, já que as “pedras mortas” dão testemunho das primeiras. O património surge, nesta lógica, como primeiro recurso de compromisso democrático em prol da dignidade da pessoa humana, da diversidade cultural e do desenvolvimento durável. E constitui um capital cultural resultante do engenho e do trabalho de mulheres e homens, tornando-se fator de desenvolvimento e incentivo à criatividade. Quando falamos de respeito mútuo entre culturas e as diversas expressões da criatividade e da tradição estamos, assim, a considerar o valor que a sociedade atribui ao seu património cultural e histórico ou à sua memória como fator fundamental para evitar e prevenir o “choque de civilizações”, mas, mais do que isso, para criar bases sólidas de entreajuda e de entendimento.


A esta luz se entende o apelo da Convenção de Faro à “reflexão sobre a ética e sobre os métodos de apresentação do património cultural, bem como o respeito pela diversidade de interpretações”, aos “processos de conciliação a fim de gerir, de modo equitativo, as situações em que são atribuídos valores contraditórios ao mesmo património cultural por diferentes comunidades”, ao “conhecimento do património cultural como um modo de facilitar a coexistência pacífica, promovendo a confiança e compreensão mútua, tendo em vista a resolução e prevenção de conflitos” e à integração destes desígnios “em todos os aspetos da educação e formação ao longo da vida”. E tudo se liga ao enriquecimento dos “processos de desenvolvimento económico, político, social e cultural”, bem como ao ordenamento do território, aos estudos de impacto do património cultural e às estratégias de redução dos danos.

 

Agostinho de Morais

DAVID MOURÃO FERREIRA E O TEATRO


Como já aqui escrevemos, David Mourão Ferreira, é um exemplo flagrante deste grupo escolhido de talentos multiformes. Escritor inconfundível e ímpar na obra, em extensão, variedade e qualidade, deixou escritos memoriais onde evoca a sua participação direta, como ator e como dirigente de iniciativas que marcaram a renovação cultural do teatro- espetáculo ao longo dos anos 50-60. Isto, conciliado, no que respeita ao teatro, com a escrita e a produção de algumas peças de notabilíssima qualidade, no ponto de vista poético-literário e no ponto de vista técnico-dramatúrgico.

Cito, nessa área específica da criação teatral, “Isolda”, estreado em 1948 no Teatro Estúdio do Salitre, grupo percursor da renovação modernizante do teatro português, a que se seguiu “Contrabando”, (1956) e “O Irmão”, esta escrita originalmente em 1955 e sucessivamente ampliada e alterada, até à versão e edição definitiva em 1988.

E nesta dramaturgia breve conciliam-se aspetos estruturais da obra vasta e variada de David, no teatro, na poesia, na ficção e no ensaio e docência: designadamente, nos contextos dramáticos contemporâneos, uma referencia permanente a padrões e paráfrases que percorrem desde a tragédia grega ao realismo social dos dias de hoje. Tudo isto num termo de modernidade e qualidade ímpar da escrita: e não por acaso a vida e a obra surgem diretamente ligadas a versões cinematográficas da sua ficção.

Mas voltemos ao teatro. Em 1997, a revista Colóquio/ Letras da FCG (nº145/146) publicou um vasto memorial sobre David Mourão Ferreira, que abre com uma extensa entrevista de vida e obra concedida por David. A edição inclui em destaque a reprodução fac-similada do manuscrito não datado mas claramente dos primeiros anos do autor David Ferreira, de uma pequena peça intitulada “O Intrujão - peça em dois atos” (8 páginas) com a seguinte anotação: “esta peça é dedicada à Ex.ma Srª Professora D. Carmen”.

E justamente: este escritor de obra imensa e variada, mas limitada no teatro a quatro textos, sendo um esquecido (“O Irmão)”, outro nunca publicado (“Isolda”) os outros publicados mas profundamente e sucessivamente alterados até às versões finais, foi ator no Teatro Estúdio de Lisboa, companhia referencial. da renovação do teatro português – e foi ainda ator esporádico em outas produções e em outros espetáculos.

Lembremos as suas recordações na entrevista citada:

“Comecei por participar num grupo de teatro da própria faculdade (…) Depois, em 1948, tinha vinte e um anos, comecei a representar (…) num grupo de teatro que teve grande importância nesses anos em Portugal, e que tem muito a ver com a Itália porque tinha a sede no Instituto Italiano de Cultura. Tratava-se do Teatro-Estúdio do Salitre dirigido por Gino Saviotti, também diretor do Instituto e que era uma figura muito interessante (…). O repertório de peças que nós representávamos era basicamente italiano e português mas levaram-se à cena autores portugueses que nunca tinham sido representados, alguns muito jovens como era o meu caso; representaram-se duas pequeninas peças minhas (…) “Isolda” e “Contrabando”. Entrei como ator em peças da Comedia dell Arte e dum autor do século XVII. (…) No começo dos anos 50 ainda tive uma certa atividade como ator”…

Em artigo que publiquei na revista Colóquio citada, identifiquei pelo menos duas intervenções de David Mourão Ferreira no TES: “Florina” de Angelo Beolco, e “O Rei Veado” de Carlo Gozzi.  

E mais uma nota pessoal: em conversas com David Mourão Ferreira, a propósito de estudos que publiquei sobre o seu teatro, David referiu-me a intenção de escrever uma peça inspirada na vida e obra de Garrett. Ora, bem podemos dizer que há afinidades entre estas duas grandes figuras da cultura portuguesa – cada um na sua época, no seu estilo, na sua biografia pública, literária e até política –ambos integraram governos, ambos marcaram a cultura e a sociedade – há realmente paralelismos e convergências.

Mas sobretudo ambos foram profundamente renovadores da época respetiva, e como tal continuam ambos profundamente modernos.

 
DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

 

13. DARC COSTA (II)

 

1. Resta a mágica da tolerância, tida como a grande mágica do mundo lusófono, sinónimo de cordialidade, tolerância com o diferente, com o estranho, com o incomum, com o inusitado, mas também tolerância capaz de mudar o mundo.

Escreve Darc Costa: “Devemos nos orgulhar e glorificar os valores do mundo luso, nossa tolerância, a brandura de nossos costumes, o nosso eclético venerar, a alegria simples que todos que vivem no mundo luso têm mesmo na miséria, e um certo “savoir vivre”, que jamais perdemos nas piores circunstâncias e cuja visão e conhecimento deixam perplexos e atónitos qualquer estrangeiro. Do mundo luso se tem uma mensagem única de esperança: o sinal que a inteligência humana é capaz de saltar por cima das adversidades e se integrar na compreensão do universo total. Do mundo luso vem a possibilidade que temos como género de ousar, aventurar. Somos diferentes e somos especiais. Nós fomos, somos e seremos a mundialização. Este é o nosso destino manifesto” (ibidem, p. 103).

Conclui que o discurso atual da globalização procura impor uma dominação das ideias, dos mercados e das culturas, pela ideia do espaço único. Globalização tida como um discurso de dominação, um discurso que se manipula ou pode manipular, contrário à mundialização, embora seja a versão corrente da mundialização. O que se vê hoje é “uma ideologia, a chamada globalização, revestida num mesmo, monótono e único discurso” (ibidem, p. 109). Por sua vez, a identidade cultural, como a que existe e subsiste no mundo lusófono, tem um passado comum como forma de criar solidariedade, ao contrário da identidade global que não tem quaisquer lembranças para convocar ou reivindicar a consciência formadora de um grupo, pelo que não existe identidade global. Assim, ao invés da globalização, a mundialização não afetou as relações primitivas, continuando a existir as relações centro e periferia sem mudanças nos paradigmas.

Sintetizando: “a mundialização é, antes de tudo, um processo de convivência, …de tolerância, …libertação, de construção de um mundo cada vez melhor. Um processo que continua avançando, apesar do seu uso por um discurso falso, o discurso da globalização. Contudo, o seu término, ou seja, a construção de uma única pátria humana, exige tempo e um demiurgo com características especiais que, no mundo atual, reafirmamos só existe no nosso mundo, o mundo luso” (ibidem, p. 112). 

2. Trata-se de uma visão bondosa, bem intencionada, romântica e utópica, algo mitificada, que tem os seus défices, a começar pela ausência de espaço e mentalidade do atual mundo lusófono, entre muros, desde o político, à liberdade de expressão, informação e pensamento, carência de sentido crítico, fenómenos de resistência à mudança, com culto do autoritarismo, do temor reverencial, compadrios e corporizações não tolerantes da criatividade, inovação, evolução e exercício do contraditório, fazendo jus do posso, quero e mando, em desabono da alegada mágica da tolerância, mais patente porque usualmente não posto em causa o poder instituído e a segurança em detrimento da liberdade pela liberdade, gerando um pacifismo per si saudável, é certo, mas limitado.

No país do autor, o Brasil, do mesmo modo que se gosta de o apresentar, por vezes mitificar, como aberto à cordialidade, lhaneza, generosidade, hospitalidade, à diversidade, ao jeitinho afetuoso e informal brasileiro, um idílio, terra de oportunidades e da promissão, uma nação avessa a conflitos, de convivência de géneros, etnias e raças, convém não omitir que tais generalizações nem sempre sobrevivem a um confronto com a violência estrutural (urbana e no campo), ao autoritarismo de vestígios  escravocratas, ao mandonismo, coronelismo, desigualdade social e de intolerância,  atingindo dos mais altos índices mundiais a nível de insegurança, criminalidade violenta e prisional, desde roubos, furtos, assassínios, latrocínio, narcotráfico, apagamento de populações indígenas, numa epidemia de violência que é o inverso da mágica da tolerância.

Mas é bom, para o futuro, tentarmos superar a fase de estarmos permanentemente malcontentes com aquilo que somos, sabendo valorizar capacidades com potencial positivo em termos de recebimento, absorção, integração e de exportação.

 

25.09.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

O passado que tenho por mais próximo, é o de ler e escrever sobre livros ao longo dos tempos em que os leio e releio, os descubro e redescubro, os vivencio com diferentes paixões, e da experiência de todos, o elo de equilíbrio sempre se moveu, muitas vezes, conflito.

 

Sempre aprendi e aprendo no movimento e no todo.

 

Tenho para mim que não há equilíbrio sem mobilidade, nem há equilíbrio sem uma totalidade.

 

Aprendi e aprendo, o encontro e o perder na viagem de um livro.

 

Julgo saber que há trilhos irreversíveis para enfim, tentarmos chegar aos vestígios, à passagem pelo meio; à passagem que busco na experiência do livro.

 

Tempos houve em que me surpreendia com o ângulo tão diferente em que se oferecia um livro já lido. Foram tempos que me trouxeram um outro tempo de aprendizagem: refiro-me ao falar com a escrita, qual criatura terrena.

 

Tempos do livro arquétipo, dos metalivros, do êxtase, desde o palimpsesto que sempre me provocou de imediato o amor desejado por outros livros, até ao que bebeu da fonte das fontes, entre polo e polo, e eu sempre muito me reconheci e reconheço, deslumbrada, neste cerco aberto.

 

Tempos de olhar para a frente e para o antes das palavras, sentindo-lhes a resistência, a aceleração, é tempo de com elas sentir uma espécie de cumplicidade com o dom de iluminar as coisas.

 

Tempos da descida das arribas às povoações quando os livros, soalheiros à interpretação dos sentires das narrativas, nos esclarecem num atalho, no verso e reverso da escrita que leio na solidão que me conhece, e sei, que nem o silêncio é súmula, mas a primeira vontade de existir segue no golfinho veloz.

 

E é outro livro.

 

Teresa Bracinha Vieira

CONVERSA COM HANS KÜNG. 2

 

Continuo a conversa com Hans Küng em 1979, incidindo sobre a esperança para lá da morte.

Para si, Jesus Cristo é o determinante na vida e na morte, o Filho de Deus. Pergunto-lhe: é Deus que nos salva ou é Cristo?

É o próprio Deus que nos salva através de Cristo. Não podemos de modo nenhum ver Cristo sem Deus. De contrário, não teria sentido para nós. Como também não podemos, enquanto cristãos, ver Deus sem Cristo. Caso contrário, Deus torna-se vago para nós.

Mas somos nós, os cristãos, que somos salvos através de Cristo ou são todos os homens? Isto é, mesmo aqueles que pertencem a outras religiões são salvos através de Cristo?

É claro que os homens que pertencem a outras religiões se podem salvar. E é evidente que só se podem salvar através do único Deus, pois há um só Deus. Em terceiro lugar, só se podem salvar através do Deus que nos foi revelado em Cristo, que, portanto, é o Deus da misericórdia, o Deus da graça, que Cristo nos revelou.

A ressurreição de Cristo é essencial no cristianismo...

Se Cristo não tivesse ressuscitado, a nossa fé seria vã, diz o apóstolo Paulo. E esta é também a minha convicção.

Mas é necessário não tomar à letra e como narrações históricas todas as representações que se referem à vida nova de Cristo. O importante e decisivo é concentrar-se no essencial da Boa Nova da Ressurreição. Ora, o que é o essencial da Boa Nova da Ressurreição? A Boa Nova da Páscoa significa isto: este Crucificado, que realmente morreu, não morreu para o nada, mas foi assumido na vida eterna de Deus. Ele vive com Deus seu Pai, através dEle e nEle. E isto significa para nós uma esperança.

Ele vive como pessoa?

Ele vive como pessoa, ele vive enquanto identicamente o mesmo que viveu na Terra. Caso contrário, não significaria nada para nós.

Ele vive como esperança para nós: nós também enquanto pessoas continuaremos a viver. Todos os que o seguirem com perseverança viverão também. Ele vive como desafio e estímulo para nós. Daí que o nosso dever seja fazer com que o seu caminho seja o nosso caminho, o seu modo de viver e morrer seja o nosso.

Hoje, para nós, o problema da imortalidade torna-se muito complicado, pois tínhamos o esquema dualista, que era talvez simplista, mas servia de ajuda. Ora, hoje todos esses esquemas estão ultrapassados. Portanto, sobre que é que podemos apoiar a ressurreição e a vida eterna?

Eu diria que cada pessoa, crente ou não, está perante uma alternativa. Mesmo o não crente perguntar-se-á: o que é que significa para mim a morte? Significa que todo o meu pensamento, toda a minha acção, todo o meu sofrimento, todo o meu amor, tudo aquilo que realizei, tudo aquilo por que me bati, tudo isso vai parar ao nada? Esta é uma alternativa.

Frente a esta alternativa só há uma outra: esta realidade que nós aqui captamos, tudo aquilo que nós podemos captar e manipular, tudo isso não é a Realidade última. Há a possibilidade — eu acentuo: a possibilidade — que o Homem, em vez de morrer para o nada, morra para a Realidade última, que é também a Realidade primeiríssima.

Quando perguntamos qual é o fundamento para isso, eu digo: confio que é assim. Eu confio, pois não se pode provar. Mas quem diz que morre para o nada, também não pode prová-lo. Esse tem uma desconfiança radical no Fundamento último e Sentido último da realidade. Eu, pelo contrário, tenho uma confiança radical no Fundamento e no Sentido último da realidade. Eu posso apenas afirmar que a desconfiança radical não apresenta qualquer racionalidade, que, em última análise, ela é não racional, pois, sem esta confiança radical, tudo se torna não racional e absurdo.

A minha solução, a minha resposta é, pois, uma confiança radical racional. A racionalidade mostra-se no próprio acto de confiar: com ele e nele, tudo se torna mais razoável, iluminado. Eu tenho todas as razões para ter esta confiança. De facto, tudo aquilo que há milhares de milhões de anos acontece na História e que talvez ainda continue por milhares de milhões de anos para o futuro, tudo isso não provém do nada nem vai para o nada. Provém de um Fundamento último, que é também Fim último, não só do cosmos, mas também da minha vida.

A este Fundamento último e Fim último do cosmos e da nossa existência chamamos Deus.

Do ponto de vista antropológico-metafísico, não pode demonstrar que haja em si qualquer coisa que exija a imortalidade...

Eu não posso demonstrar nem o nada nem Deus. Se pudesse demonstrar Deus, já não seria Deus. A fé é como o amor. O amor não se pode demonstrar. Se um homem disser à mulher: tu deves demonstrar que me amas, então o amor não é possível. No amor, é necessário colocar em primeiro lugar a confiança. Na fé, passa-se a mesma coisa: é necessário avançar com a confiança. Eu devo confiar-me e, na medida em que confio, vejo que se trata de uma resposta plena de sentido e que a vida tem sentido.

Havia filósofos que através de argumentos filosóficos afirmavam que há em nós qualquer coisa que ontologicamente é imortal. Não pode dizê-lo...

Eu não me preocupo muito com essas coisas, com a ideia platónica da imortalidade da alma. Creio que são representações de algum modo simplistas, e hoje, com o avanço das ciências biológicas, antropológicas, etc., já não nos é permitido separar tão facilmente alma e corpo.

Como é que se deve esclarecer o problema da vida eterna não nos compete a nós. Isso é mistério para nós, como o próprio Deus é mistério, que nem com a ontologia podemos tornar claro.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 SET 2020

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Definição de Espaço segundo Georges Perec.

 

“We live in space, in these spaces, these towns, this countryside, these corridors, these parks. (…) We can touch. We can even allow ourselves to dream.” (Perec, 2008)

Em Species of Spaces, Georges Perec acentua o lado humano na vida dos espaços. Espaço não é o vazio, é o que está à volta do vazio. É o que acontece dentro desse vazio. Para Perec, não existe um único, perfeito e belo espaço, mas existem imensos, pequenos, múltiplos e divisíveis espaços, de tamanho diverso e de usos diferentes - um desses bocados de espaço pode ser um corredor que liga ao metro e outros, podem ser, por exemplo, o espaço da cama, ou o espaço do quarto, ou ainda o apartamento, a cidade e até mesmo o espaço determinado por uma linha que define a fronteira de um país. Mas, a principal preocupação de Perec, é entender o espaço como sendo a circunstância mais direta que permite a existência de interações humanas. Em termos de estrutura lógica, Perec distingue entre espaços existentes (descritos pela geografia), espaços inventados (feitos por seres humanos) e espaços virtuais (que existem apenas mentalmente ou no papel). Por exemplo, para Perec, o início do espaço inventado pode começar num desenho, numa folha de papel vazia: “This is how space begins, with words only, signs traced on the blank page” (Perec, 2008)

Os espaços podem também ser vistos como um inventário para os humanos. O espaço está sempre vinculado à atividade e ao seu uso, por exemplo no campo, o espaço é preenchido com animais, as ruas das cidades são preenchidas com carros e com pessoas, nas florestas com lenhadores. O espaço é, assim, um cenário idealizado, é uma garantia.

Como ponto de partida e para descrever os vários espaços que fazem parte da vida das pessoas, Perec começa por escrever sobre a cama (na qual passamos mais de um terço de nossas vidas) depois escreve sobre o quarto (e coloca a questão se, por exemplo, a cama muda, o quarto também?). Logo a seguir, descreve a casa com os seus diferentes espaços, que têm funções fixas baseadas no seu uso ao longo do dia e que se estabelecem naturalmente.

Perec, escreve também sobre portas, que fazem parar, que separam, que marcam transições, que partem mas que também juntam e que possibilitam a aproximação do espaço privado e do espaço público. Já as paredes permitem só dividir o espaço. Os edifícios de habitação formam alinhamentos e determinam a rua, que não pertence a ninguém, mas que liga uma casa à outra e que dá lugar ao contacto entre pessoas. A vizinhança é a porção de cidade mais acessível a pé a partir de casa e é diferente do lugar onde se trabalha.

“We live somewhere: in a country, in a town in that country, in a neighborhood, in that town, in a street, in that neighborhood, in a building in that street, in an apartment in that building (…) What quantity of space can our eyes hope to take in between our birth and our death?” (Perec, 2008)

Perec explica que é o campo de visão do ser humano que determina os limites do espaço e dá a ilusão de relevo e de distância. No fundo, espaço é o que prende o olhar. Espaço é sempre que existe um ângulo, onde existem arestas e existe sempre que duas linhas se juntam no infinito. Para Perec, a pura sensação do espaço real, que cada um de nós ocupa, poderá fazer esquecer o nosso rumo, o nosso estado de espírito, o nosso quotidiano, as nossas ambições, as nossas crenças e a nossa razão de ser. Perec gostaria que o espaço fosse uma entidade simplesmente estável, imóvel, impalpável, intocável. Mas, o espaço é uma constante pergunta, não é evidente, não pode ser incorporado, nem apropriado: “Space is a doubt: I have constantly to mark it, to designate it. It's never mine, never given to me, I have to conquer it.” (Perec, 2008)

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

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   De 21 a 27 de setembro de 2020

 

“Colheita de Inverno” de Vítor Aguiar e Silva (Almedina, 2020) reúne Ensaios de Teoria e Crítica Literárias da maior importância, não só pela diversidade de temas, mas também pela grande qualidade dos textos, pela sentido pedagógico e pela importância científica.

 

cnc - Colheita de Inverno de Vítor Aguiar e Silva

 

APETECÍVEL VOLUME DE ENSAIOS

Quando recebi este apetecível volume de ensaios, disse ao autor que se tratava de uma verdadeira colheita de Primavera, pela diversidade de temas, fecundidade do respetivo tratamento e pistas tão estimulantes apresentadas. É evidente que a melhor garantia estava no autor, e em tudo quanto nos tem dado, mas é sempre bom podemos verificar como as literaturas da língua portuguesa oferecem extraordinários elementos para conhecermos o melhor que a cultura nos reserva. Sente-se a “humanitas” dos clássicos na presença dessas referências perenes. No livro, encontramos três suculentas partes – Ensaios de Teoria Literária, Ensaios Camonianos e Ensaios sobre Literatura Portuguesa. Em regra, quando temos em mãos uma reunião de textos de proveniência vária podemos temer que reencontremos o que já conhecemos e que reafirma mais do que renova. Não é isso que ocorre com Vítor Aguiar e Silva e em particular com esta obra – e o conjunto permite um saudável efeito de novidade, e devo dizer que neste caso, estamos perante um livro fundamental para quem queira compreender a atualidade e a força da língua portuguesa, na sua diversidade e no seu potencial criativa e artístico. Afinal, reunidos os textos de diversas proveniências, a sua complementaridade fá-los ganhar uma vida que permite olhar sob uma luz resplandecente a vitalidade da criação cultural. Voltando a jogar com estações do ano, leia-se e releia-se “Primavera e Inverno da Filologia Românica”. Aí se explica como se chegou à má imagem da filologia, confundida com saber de antiquários e de eruditos fora do mundo, com reservas contaminadas ideologicamente. Vão longe a ideia de “scienza nuova” de Giambattista Vico a partir das criações humanas, linguagem, poesia, mito, até à religião e ao direito, e a clarificação de Carolina Michaëlis de Vasconcelos sobre a filologia da palavra, da língua e da literatura. Houve um longo caminho, mas a hermenêutica dos textos precisa dos fundamentos filológicos. Daí o autor falar da necessidade de uma filologia pós-imperial, capaz de entender os efeitos do seu banimento, devendo articular-se com a linguística, a hermenêutica, a teoria da literatura e literatura comparada… Afinal, temos sempre de entender o que permanece e o que muda – e a realidade histórica depende sempre do entendimento das duas perspetivas. Lembramo-nos da querela dos Antigos e dos Modernos, e o autor recorda-nos a metáfora usada por Jonathan Swift, ele mesmo defensor ativo dos Antigos. Abelhas e aranhas confrontam-se na “Batalha dos Livros” (1704), as abelhas representam o labor interminável dos poetas enquanto as aranhas, reclusas de si mesmas, não têm memória e constroem a sua astuciosa e letal teia. Estaria em causa o perigo da amnésia total da tradição, na arte como na ciência, que nos condenaria ao silêncio. No entanto, a rutura com a tradição e a absoluta originalidade das Vanguardas são mitos desmentidos pela própria dinâmica da literatura, que levou Fernando Pessoa a escrever que em qualquer poema deverá haver “qualquer coisa por onde se nota que existiu Homero”. Culturalmente, jamais existirá originalidade pura. Pelo que a fábula das abelhas e das aranhas é uma simplificação sem correspondência com a realidade humana…

 

METÁFORAS E ALEGORIAS

Mas a verdade é que “a metáfora não pode deixar de ser lida e interpretada como metáfora, ao passo que a alegoria pode ser lida não alegoricamente”. E ao longo dos diferentes ensaios, vamos encontrando a preocupação de entender, como afirmou Octavio Paz, que “o mundo começa por ser um conjunto de palavras. Mais exatamente: o mundo é um mundo de nomes. Se nos tiram os nomes, retira-nos o nosso mundo”. Mas o mundo em que se move Fernando Pessoa é irremediavelmente “sem centro e sem horizonte, com múltiplas verdades, com deuses diversos e contraditórios, desesperadamente vazio”. Contudo, Aguiar e Silva lembra em Romarigães com Aquilino, a terra fecundada pelas chuvas e pelo sol, por entre a alegria dos trabalhadores minhotos. E Ruy Belo invoca o requiem por Portugal, que depois de Camões se tornou um tema recorrente - “as lágrimas da elegia orvalham piedosa e melancolicamente essa interrogação, mesmo quando a utopia e o messianismo parecem incendiá-la”. David Mourão-Ferreira faz da crítica literária “um exercício de amor e um espaço de dialógica compreensão e admiração que nunca as diferenças ideológico-políticas vieram a turvar ou perturbar”. Manuel Alegre é lembrado na expressão reflexiva e meditativa. Albano Martins, Francisco d’Eulália, António José Saraiva ou Vasco Graça Moura ajudam-nos no caminho da compreensão das culturas da língua portuguesa, como marcas de emancipação e de vitalidade. Na busca de um cânone literário para a língua portuguesa, podemos encontrar a génese do termo “clássico”, como relacionado com as classes das escolas, passando a designar o autor lido e estudado nas classes das instituições de ensino, por ser excelente e modelar. E o cânone ganha o significado característico que David Ruhnken atribuiu à palavra, universalizando-a, como conjunto de textos ou de escritores selecionados pela sua qualidade e prestígio duradouro e exemplaridade linguística e literária. E, em falando de cultura, a tradição é um património com continuidades e descontinuidades, que vai sendo confirmado, alterado, redescoberto e reinventado: “cada presente histórico reconstrói um passado literário que justifica e legitima este presente”. Daí que “não se deva impor uma norma exclusiva e excludente” – o cânon literário terá “como destinatários ideais os alunos do ensino secundário”, devendo “ser elaborado por uma instituição como o Instituto Internacional de Língua Portuguesa, a partir de proposta de entidades nacionais escolhidas para o efeito pelo Ministério da Educação de cada país da CPLP e será plasmado em antologias, contendo adequada informação linguística, histórico-literária e comparatista, que concedam representação maioritária aos autores do país a que especificamente se destinem como livro escolar e que deem representação equitativa aos autores dos outros países”. Na cronologia das literaturas africanas pós-coloniais deverá considerar-se os séculos XX e XXI, sem esquecer os autores portugueses e brasileiros do século XIX que foram, e são mestres da língua, como Eça de Queiroz e Machado de Assis, além de Camões e Vieira a quem o idioma comum deve tanto da constituição e irradiação do seu património. Longe de paternalismos ou preconceitos, importa lembrar Celso Cunha, que fala de uma “unidade superior da língua portuguesa”, dentro da sua diversidade que nos cabe preservar…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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