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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CADA ROCA COM SEU FUSO...

 

 

LEMBRAR ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA.

António José Saraiva disse um dia que «todas as fronteiras são culturais». As fronteiras funcionam como linhas de distinção e de aproximação, que delimitam as identidades. «O que separa as nações é a nacionalidade, não são os rios nem os montes. Estes podem favorecer a defesa ou a expansão de uma nação mas não podem criá-la». O ensaísta falava (num texto de 1971, republicado em Crónicas, organização de Maria José Saraiva, p. 369) das nossas raízes e fronteiras, encontrando a origem de Portugal num «processo orgânico de cruzamento e integração de dois focos de autonomia dentro da Hispânia, os quais existiam já antes da ocupação romana» – um galego e outro lusitano. O resultado foi uma fusão, «tão perfeita que este novo ser cultural tem resistido de forma homogénea» a diversas investidas externas ao longo dos séculos. Fomo-nos afirmando perante as dificuldades, em sucessivos estados de necessidade. Desenganem-se os que julgam que as incertezas de hoje são inéditas.


A língua e a cultura geradas no ocidente peninsular demonstram como a nossa identidade se fez não exclusivamente por um ato político de vontade, mas também graças a condições próprias que têm perdurado ao longo do tempo. E são significativos os exemplos dados pelo escritor ligados à formação de Portugal, como fatores de afirmação de autonomia e de resposta aos desafios históricos mais exigentes e problemáticos - desde o condado de Coimbra do moçárabe Sesnando (1064-92) ou da resistência dos senhores de Portucale, no território que é hoje o de Entre Douro e Minho, passando pela nomeação de Raimundo de Borgonha como «senhor de Coimbra e do resto da Galiza» e depois pela designação de Henrique de Borgonha como senhor de Coimbra e de Portugal, numa evolução incerta, entre dois mundos políticos diferentes, com fronteiras oscilantes, entre os reinos cristãos e a influência muçulmana e islâmica , até à criação do reino de Afonso Henriques e ao início da consolidação de Portugal como resultado da convergência entre as influências atlântica e mediterrânica do ocidente peninsular.


Assim A.J. Saraiva procurou sustentar e justificar, completando o raciocínio de Alexandre Herculano, que «a velha língua em que Afonso Henriques aprendeu a falar a língua dos senhores e campónios da Galiza e dos guerrilheiros da Beiras teve um destino raro e privilegiado. Foi por ela que os galego-portugueses se sentiram diferentes dos castelhanos muito antes de Afonso Henriques ter assentado a capital do reino de Portugal em Coimbra, que já fora do estado do conde Sesnando» (op. cit., p.430). E deste modo a realidade cultural portuguesa apresenta origens anteriores à fundação do Estado português. Esta ideia de fronteira cultural e linguística não impede, porém,  António José Saraiva de afirmar que «os valores dominantes da cultura portuguesa são hispânicos», gerados na «guerra comum da chamada reconquista» - ainda que o português nunca tivesse sido um dialeto do castelhano.. Eis como as fronteiras culturais distinguem e aproximam. «A hombridade, a honra cavaleiresca, que depois se contaminou a todas as camadas sociais, a liberdade individual que roça pelo anarquismo e que se combinou durante muito tempo com o valor da lealdade ao rei, que era uma ligação pessoal, com direitos e deveres, e que nunca se confundiu com a mera submissão passiva a uma tirania não abstrata, são comuns a Portugal, Leão, Galiza e Castela» (p.535). É o que o autor designa por «hispanidade de Portugal», expressão que suscitou incompreensões, mas que, para Saraiva, mais não significava do que o reconhecimento de um facto, incapaz de comprometer a distinção cultural e a independência. No fundo, Portugal não se afirma plenamente a não ser através da compreensão de que as fronteiras culturais peninsulares levam à tomada de consciência de uma herança comum, que permite a abertura de diversos caminhos e identidades, que se fortalecem pela complementaridade e não pela fragmentação.


A semente galega construiu a originalidade cultural portuguesa. Em 1147, quando Afonso Henriques chegou a Lisboa, falava-se na cidade um romance hispânico, moçárabe, que depois cedeu perante o galaico-português. E assim o idioma português faz-se numa convergência de norte para sul e de sul para norte – daí que as palavras arábicas se tenham espalhado por todo o território ocidental. A poesia dos trovadores é tão galega como portuguesa e Afonso X, o Sábio, é antepassado da nossa própria língua. Fernão Lopes, Gil Vicente e Camões são expoentes da cultura hispânica num sentido amplo e esse facto não impediu o pendor nacional dos seus temas, a começar no empenhamento do autor da Crónica de D. João I na defesa da causa nacional, como portuguesa, insuspeita de qualquer ideia de subalternidade ou de conciliação em relação a Castela. E veja-se que D. Quixote salva na sua biblioteca dois livros assaz portugueses, Amadis de Gaula e Palmeirim de Inglaterra. No entanto, para AJS, Eça de Queirós e Fernando Pessoa foram mais claramente portugueses, nos seus temas e modos de os tratar. Afinal, há diferenças que nos distinguem, desde a teatralidade castelhana ao intimismo galaico-português, desde o contraste de Castela ao sombreado de Portugal, desde o distinto e redundante da língua do centro peninsular aos meios-tons, elipses e sílabas mudas do português. «El Cristo español está siempre en su papel trágico» - dizia Unamuno, citando o nosso Guerra Junqueiro – enquanto «el Cristo português anda por costas y prados y montañas, jugando com la gente del pueblo, se ríe com ellos, merienda, y de vez en cuando, para llenar su papel, se cuelga un rato de la cruz». Nada disso permite falar de divórcio ou de separação. Há uma raiz cultural comum que dá lugar a sensibilidades diferentes e a uma distinção, que resulta da singular convergência que caracteriza a nossa identidade. Por mais suspicácia que haja, o certo é que existe uma base comum de que partimos, sendo diferentes…

 

Agostinho de Morais