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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CADA ROCA COM SEU FUSO...

 

 

LEMBRAR ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA.

António José Saraiva disse um dia que «todas as fronteiras são culturais». As fronteiras funcionam como linhas de distinção e de aproximação, que delimitam as identidades. «O que separa as nações é a nacionalidade, não são os rios nem os montes. Estes podem favorecer a defesa ou a expansão de uma nação mas não podem criá-la». O ensaísta falava (num texto de 1971, republicado em Crónicas, organização de Maria José Saraiva, p. 369) das nossas raízes e fronteiras, encontrando a origem de Portugal num «processo orgânico de cruzamento e integração de dois focos de autonomia dentro da Hispânia, os quais existiam já antes da ocupação romana» – um galego e outro lusitano. O resultado foi uma fusão, «tão perfeita que este novo ser cultural tem resistido de forma homogénea» a diversas investidas externas ao longo dos séculos. Fomo-nos afirmando perante as dificuldades, em sucessivos estados de necessidade. Desenganem-se os que julgam que as incertezas de hoje são inéditas.


A língua e a cultura geradas no ocidente peninsular demonstram como a nossa identidade se fez não exclusivamente por um ato político de vontade, mas também graças a condições próprias que têm perdurado ao longo do tempo. E são significativos os exemplos dados pelo escritor ligados à formação de Portugal, como fatores de afirmação de autonomia e de resposta aos desafios históricos mais exigentes e problemáticos - desde o condado de Coimbra do moçárabe Sesnando (1064-92) ou da resistência dos senhores de Portucale, no território que é hoje o de Entre Douro e Minho, passando pela nomeação de Raimundo de Borgonha como «senhor de Coimbra e do resto da Galiza» e depois pela designação de Henrique de Borgonha como senhor de Coimbra e de Portugal, numa evolução incerta, entre dois mundos políticos diferentes, com fronteiras oscilantes, entre os reinos cristãos e a influência muçulmana e islâmica , até à criação do reino de Afonso Henriques e ao início da consolidação de Portugal como resultado da convergência entre as influências atlântica e mediterrânica do ocidente peninsular.


Assim A.J. Saraiva procurou sustentar e justificar, completando o raciocínio de Alexandre Herculano, que «a velha língua em que Afonso Henriques aprendeu a falar a língua dos senhores e campónios da Galiza e dos guerrilheiros da Beiras teve um destino raro e privilegiado. Foi por ela que os galego-portugueses se sentiram diferentes dos castelhanos muito antes de Afonso Henriques ter assentado a capital do reino de Portugal em Coimbra, que já fora do estado do conde Sesnando» (op. cit., p.430). E deste modo a realidade cultural portuguesa apresenta origens anteriores à fundação do Estado português. Esta ideia de fronteira cultural e linguística não impede, porém,  António José Saraiva de afirmar que «os valores dominantes da cultura portuguesa são hispânicos», gerados na «guerra comum da chamada reconquista» - ainda que o português nunca tivesse sido um dialeto do castelhano.. Eis como as fronteiras culturais distinguem e aproximam. «A hombridade, a honra cavaleiresca, que depois se contaminou a todas as camadas sociais, a liberdade individual que roça pelo anarquismo e que se combinou durante muito tempo com o valor da lealdade ao rei, que era uma ligação pessoal, com direitos e deveres, e que nunca se confundiu com a mera submissão passiva a uma tirania não abstrata, são comuns a Portugal, Leão, Galiza e Castela» (p.535). É o que o autor designa por «hispanidade de Portugal», expressão que suscitou incompreensões, mas que, para Saraiva, mais não significava do que o reconhecimento de um facto, incapaz de comprometer a distinção cultural e a independência. No fundo, Portugal não se afirma plenamente a não ser através da compreensão de que as fronteiras culturais peninsulares levam à tomada de consciência de uma herança comum, que permite a abertura de diversos caminhos e identidades, que se fortalecem pela complementaridade e não pela fragmentação.


A semente galega construiu a originalidade cultural portuguesa. Em 1147, quando Afonso Henriques chegou a Lisboa, falava-se na cidade um romance hispânico, moçárabe, que depois cedeu perante o galaico-português. E assim o idioma português faz-se numa convergência de norte para sul e de sul para norte – daí que as palavras arábicas se tenham espalhado por todo o território ocidental. A poesia dos trovadores é tão galega como portuguesa e Afonso X, o Sábio, é antepassado da nossa própria língua. Fernão Lopes, Gil Vicente e Camões são expoentes da cultura hispânica num sentido amplo e esse facto não impediu o pendor nacional dos seus temas, a começar no empenhamento do autor da Crónica de D. João I na defesa da causa nacional, como portuguesa, insuspeita de qualquer ideia de subalternidade ou de conciliação em relação a Castela. E veja-se que D. Quixote salva na sua biblioteca dois livros assaz portugueses, Amadis de Gaula e Palmeirim de Inglaterra. No entanto, para AJS, Eça de Queirós e Fernando Pessoa foram mais claramente portugueses, nos seus temas e modos de os tratar. Afinal, há diferenças que nos distinguem, desde a teatralidade castelhana ao intimismo galaico-português, desde o contraste de Castela ao sombreado de Portugal, desde o distinto e redundante da língua do centro peninsular aos meios-tons, elipses e sílabas mudas do português. «El Cristo español está siempre en su papel trágico» - dizia Unamuno, citando o nosso Guerra Junqueiro – enquanto «el Cristo português anda por costas y prados y montañas, jugando com la gente del pueblo, se ríe com ellos, merienda, y de vez en cuando, para llenar su papel, se cuelga un rato de la cruz». Nada disso permite falar de divórcio ou de separação. Há uma raiz cultural comum que dá lugar a sensibilidades diferentes e a uma distinção, que resulta da singular convergência que caracteriza a nossa identidade. Por mais suspicácia que haja, o certo é que existe uma base comum de que partimos, sendo diferentes…

 

Agostinho de Morais

DOIS GRANDES TEATROS ROMANOS EM PORTUGAL

 

Como é evidente, já aqui referimos, em textos diversificados, dois grandes teatros romanos de Portugal, o de Braga e o de Lisboa: aliás, temos obviamente evocado em diversíssimas ocasiões, esta monumental tradição da arte do espetáculo, que vem portanto das origens da história e da cultura do nosso país. E citamos designadamente esses dois monumentos, chamemos-lhes assim, o primeiro aqui referido e analisado em 2015, o segundo em 2014 e novamente em 2019. E se hoje retomamos o tema, isso deve-se à relevância desta tradição de espetáculo, que não pode ser esquecida.  

Como dissemos, as ruínas do Teatro Romano de Braga foram descobertas em 1999 no contexto de trabalhos de reconversão urbana da cidade. A partir dessa data, têm avançado trabalhos notáveis de recuperação, descritos no estudo intitulado “A Construção do Teatro Romano de Bracara Augusta”, da autoria de Manuela Martins, Ricardo Mar, Jorge Ribeiro e Fernanda Magalhães.

O estudo acima citado permite avaliar esse trabalho notável de recuperação. Há muito a descobrir nas ruínas do teatro romano de Braga, o qual teria uma lotação de 4000 a 4500 espetadores, o que dá a dimensão dos trabalhos em curso e do muito que ainda há a descobrir na região, que na época se chamava Bracara Augusta, já fora dos limites históricos da Lusitânia.

Os trabalhos de expansão urbana da cidade atual puseram a descoberto, em 1999, o conjunto do teatro e anfiteatro. A Câmara Municipal e a Universidade do Minho desenvolveram, em parceria, um trabalho de recuperação arqueológica e de divulgação histórica digno de registo, sobretudo porque, como temos visto em artigos publicados no CNC, são poucos os recintos de espetáculo oriundos do período da civilização romana que chegaram até nós.

Aliás, como se sabe, a Lusitânia romana não abrangia o território português a norte do Douro. Estendia-se pela Península, e a capital era Augusta Emerita, hoje Mérida, diz-nos Carlos Fabião. E evoca-se o Anfiteatro de Mérida, capital que foi da Lusitânia e hoje o mais imponente, significativo e utilizado recinto/monumento de espetáculos de origem romana da Península.

O estudo já referido refere que “a intenção política terá residido no estabelecimento de uma relação privilegiada do edifício com o fórum que se situava a nascente do teatro”: e destaca designadamente “a construção de termas públicas anexas que se dispõe a sul do teatro, sendo de sublinhar que existem numerosos exemplares de uma estreita relação entre os teatros, os equipamentos termais e os jardins”.

Ora bem:

Já aqui temos referido o Teatro Romano de Lisboa.  E a esse respeito citamos novamente um artigo de Susete Francisco, publicado no DN em janeiro deste ano, que refere declarações de Lídia Fernandes, coordenadora do Museu de Lisboa – Teatro Romano, onde se descreve o histórico deste teatro e se anuncia a intenção da CML no sentido de as ruínas serem classificadas como monumento nacional e entrarem em nova fase de recuperação e ampliação dos trabalhos de pesquisa.

Já tivemos ocasião de referir o que resta deste teatro, evocando o longo processo de recuperação das ruínas que até hoje sobrevivem. Trata-se efetivamente de um conjunto de vestígios da construção clássica, vestígios esses redescobertos em 1798, e desde aí sujeitos a variadas intervenções. Desde logo a partir dos anos 60 do século passado, quando se foi procedendo a trabalhos de recuperação e valorização histórica.

Tal como tivemos ensejo de assinalar em “Teatros de Portugal” (ed. INAPA – 2005) o teatro seria datável da era de Augusto, remodelado no tempo de Nero (século I) mas posteriormente vandalizado para aproveitamento de materiais na reconstrução de Baixa Pombalina. E tal como aí referimos, só a partir dos anos 60 do século passado, e mesmo assim com interrupções, se procedeu à recuperação possível. O Teatro seria pois um edifício central, mas nada se sabe da sua atividade e não muito da sua configuração.

O artigo de Suzete Francisco, que aqui citamos, assinala que os primeiros trabalhos de recuperação se devem ao arquiteto italiano Francisco Xavier Fabri, e decorrem da recuperação de zonas destruídas no terramoto de 1755 e que não foram então devidamente recuperadas. De tal forma que a “sobrevivência” do Teatro Romano terá ficado a dever-se aos Professores Fernando de Almeida, sobretudo a partir de 1964, e mais tarde de trabalhos dirigidos por Irisalva Moita (ambos professores da Faculdade de Letras de Lisboa),  que prosseguiriam a partir de 2001.

E os trabalhos de recuperação da Lisboa Romana duram até hoje!...

Daí, o interesse do projeto de qualificação e prosseguimento desses trabalhos de recuperação do Teatro Romano  de Lisboa como monumento nacional, a que se refere o artigo de Susete Francisco.


DUARTE IVO CRUZ 

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

 

12. DARC COSTA (I)

 

O estratega e neoluso-tropicalista brasileiro Darc Costa, após distinguir entre mundialização (o facto, aquilo que se constata) e globalização (um discurso, aquilo que se pode manipular), defende que os lusos e seus descendentes são os únicos artesãos possíveis da verdadeira mundialização.

Aponta como mágicas mais relevantes da cultura lusa, que lhe permitirão levar adiante a mundialização: a mágica da antropofagia, da mestiçagem, do sincretismo e a da tolerância (“Mundialização, Mundo Luso e Globalização”, Revista de Relações Internacionais da Universidade do Porto, n.º 4, 2003).

Mágica da Antropofagia - “é a propriedade que possuímos, no mundo luso, de apropriarmos, transformando, toda a manifestação cultural exógena”.

Vê como reducionista a explicação de que se trata do resultado da arte que a cultura lusa desenvolveu de adaptar valores e técnicas europeias aos trópicos em geral. Tem-na como uma caraterística única da cultura lusa, dado que nenhuma outra a detém, pelo menos em tal grau. Após afirmar que o lusitano era ibero, celta, fenício, cartaginês, grego, romano, judeu, suevo, visigodo, mouro, cruzado francês e inglês, numa progressiva e paciente assimilação das suas realizações, conclui que este amálgama progressivo dotou os portugueses dos elementos precisos para processar o diferente e torná-lo o igual, quando não o comum”. Dá como exemplo a constituição da cultura luso-brasileira. E acrescenta: “A capacidade de deglutir, de adaptar, de transformar de forma criativa e criadora o que lhe é apresentado, ou lhe é imposto, constitui-se no maior património hoje do povo brasileiro. ... No Brasil, assim como no mundo luso, nada se perde, tudo se transforma em algo que se utiliza. No futuro, assim como o foi no passado, ser mundializado é ser antropofágico” (ibidem, pp. 100, 101).

Mágica da Mestiçagem - é a propriedade que têm os lusófonos do mundo luso de deter diferentes graus de morenidade, em que surge como exemplo paradigmático o Brasil e em que foi e é referência incontornável o contributo de Gilberto Freyre.

Mágica do Sincretismo - é a completa permissividade religiosa. Embora o espaço da lusofonia seja um dos maiores espaços católicos do mundo, detendo o Brasil o lugar cimeiro da catolicidade mundial como país, não somos arrebatados pela mística católica, nem pela santidade. O catolicismo, e respetiva religiosidade, expressa-se no mundo lusófono muito mais por manifestações externas, por procissões e festas populares, dos S. Joões folgazeiros do Porto, dos Santo Antónios casamenteiros de Lisboa, dos Impérios do Espírito Santo, dos amuletos que trazemos, dos bentinhos espalhados pelas gavetas ou trazidos na mala. Com este catolicismo caminham juntos o espiritismo, o candomblé, a quimbanda e os evangélicos protestantes, tudo se miscigenando num caudal de credos e de fé onde impera a mais ampla tolerância religiosa e o mais claro sincretismo religioso. Este sincretismo aceita, quando não incentiva, o esoterismo, ou pretensamente premonitórias do futuro, tipo astrologia, o taro e os búzios.

Trata-se de um mundo luso como que detentor da fé universal, a que, em relação a Portugal, não será porventura alheio o facto de o nosso santo mais popular ser, ao mesmo tempo, o mais internacional (Santo António de Lisboa, é mais conhecido internacionalmente como de Pádua, porque por Itália se santificou, embora nascido em Portugal).

 

18.09.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.
Cora Coralina

 

A cápsula do tempo contém segredos, e um deles é o que nos permite saber até onde chegámos: até onde a nossa filosofia da felicidade fez justiça a princípios antitéticos.

 

Construímo-nos através do pensamento e do agir e, tanto mais, quanto tivermos sido certeiramente ecléticos, mutáveis, nessa construção do crescer, sendo certo que neste domínio, tudo afinal pode ser inventado se não nos sujeitarmos a um modelo assegurado.

 

Não é tarefa fácil, a de encontrar o caminho de transferir o que aprendemos e de aprendermos com o que ensinamos, se formos conscientes de que percorremos um horizonte que se vai evaporando a cada vez que o julgamos mais próximo.

 

Se soubermos que por aqui também o ecletismo da felicidade, a procura da terra prometida, sem que se chegue a possuir as chaves que abrem a sua porta, mas, para nós, um valor de luta e referência, e que tanto baste!

 

Afinal, é do nosso conhecimento que sempre que o homem se reduz, o mundo mirra, e o farol que guia a navegação das ideias, amarelece.

 

Então, retificar trajetórias, refletir nas dúvidas, convocar o paradigma de um dia sermos um pouco de nós, num noutro, é igualmente crer que esse outro vença mais medos por sempre próximo de David Hockney!, na capacidade de fazer face à institucionalização arbitral dos valores.

Teresa Bracinha Vieira

CONVERSA COM HANS KÜNG. 1

 

Na sequência das crónicas sobre J. Ratzinger/Bento XVI, revisitei a conversa que tive em 1979, em Estugarda, com o célebre teólogo Hans Küng sobre o Deus de Jesus. Foi assim:

Continua fascinado por Cristo. Quero perguntar-lhe: o que pode, na sua opinião, significar hoje o cristianismo?

Dou-lhe uma resposta simples. Para mim, ser cristão tem ainda hoje sentido, pois, com o cristianismo, pode-se ser Homem num sentido mais profundo e radical.

Esta afirmação já não é suspeita, pois foi feita também — é com alegria que o digo — pelo novo Papa (João Paulo II). Escrevi um livro com o título Ser cristão. Ora, alguns criticaram-no, porque diziam que nele se falava demasiado do Homem. Mas hoje vê-se cada vez melhor que o cristianismo não é uma pura ideologia para si mesmo. A Igreja não tem a sua finalidade em si mesma. O cristianismo deve ajudar o Homem a ser Homem melhor e mais radicalmente.

Mais radicalmente em que sentido?

Creio que, mesmo neste tempo da secularização, é claro para o Homem que ele é mais do que aquilo que pode ver, calcular, manipular. O Homem tem em si mesmo dimensões que vão para lá da satisfação das exigências materiais primárias. Ele procura um sentido em qualquer parte. O Homem quer transcender-se a si mesmo, para além daquilo que tem, que sabe, que ama. Ele quer ir sempre mais além.

Esta dimensão do Homem está sempre presente. E mesmo pessoas que não estão de modo nenhum satisfeitas com a Igreja nem têm a ver com ela querem cada vez mais ouvir falar desta outra dimensão. Ora, esta dimensão é, se quiser, a dimensão de Deus em todas as coisas. É com isto que o cristianismo tem que ver. E é com isso que a Igreja e a teologia devem ter que ver.

Para si, Cristo revelou-nos o Homem, porque ele tinha uma relação íntima com Deus. É assim?

Não podemos separar Deus e o Homem. Todos sabemos, desde que em crianças aprendemos o Pai Nosso, que Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, anunciou a vontade de Deus: “Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu”. Mas se nos perguntarmos o que é a vontade de Deus — e muitas pessoas de facto perguntam: o que é que isso significa para mim? —, recebemos a resposta clara, a partir das suas comparações e parábolas: a vontade de Deus é a realização e a felicidade do Homem. Deus quer a felicidade do Homem. É assim que a História é apresentada, desde a primeira página do Génesis até ao fim do Apocalipse. Deus quer sempre e só o bem do Homem, e o Homem deve também, se quiser fazer a vontade de Deus, colocar-se ao lado dos irmãos.

A mensagem central do cristianismo é esta: A vida do Homem apenas tem sentido se, por um lado, se orientar no sentido de Deus e se, por outro lado, se orientar no sentido do Homem, não egocentricamente, mas para os outros. Dito na linguagem tradicional: amar a Deus e amar o próximo.

Mas hoje as coisas complicam-se, porque, por um lado, o cristianismo deveria ser o absoluto, mas, por outro, o cristianismo enquanto absoluto estava de tal modo unido ao eurocentrismo que entrou em crise. E há também outros humanismos, religiões, etc.

O cristianismo representa para si o absoluto e em que sentido?

O absoluto do cristianismo foi muitas vezes entendido de modo falso, concretamente quando se entendeu como exclusividade, isto é, atribuiu-se exclusivamente ao cristianismo a verdade, os valores, as normas, a beleza, etc. Hoje devemos reconhecer que mesmo para os católicos, depois do Vaticano II, se tornou claro que também nas outras religiões há verdade, moral, oração, culto de Deus.

Devemos, por conseguinte, reclamar, não exclusividade, mas unicidade, carácter único. E quando se pergunta que unicidade, então deve-se dizer que o que é único no cristianismo é o próprio Cristo. Quando o vejo como figura concreta, tal como foi, então não pode ser comparado nem permutado com Buda, Maomé, nem com Marx ou Freud. Ele é único para nós, por causa do que ele quis, devido à causa por que se bateu, e definitivo, porque, sendo o Crucificado-Ressuscitado, ele é o enviado de Deus e a sua revelação, não exclusiva, mas definitiva.

É por isso que, face às outras religiões, ideologias e cosmovisões, devemos ser ao mesmo tempo tolerantes e críticos. Devemos estar de acordo com tudo o que nelas vai ao encontro de Cristo e estar atentos e até recusar tudo o que nelas contradiz Jesus Cristo.

Diz que Cristo é a revelação definitiva de Deus. Ele é realmente Deus?

Quando se diz que ele é realmente Deus, pode haver equívocos. Mesmo na teologia tradicional da Trindade, fez-se sempre distinção entre o Pai e o Filho. E, quando na Bíblia se fala de Deus (em grego ò Theós: o Deus pura e simplesmente), pensa-se sempre no Pai.

Cristo é, na Bíblia, designado como Filho de Deus. Filho de Deus é a expressão correcta para ele. E esta expressão deve hoje ser cada vez mais entendida a partir do Antigo Testamento. De facto, ele próprio era judeu, a mãe, os primeiros discípulos, os evangelistas e os primeiros que transmitiram a tradição eram judeus. O povo de Israel era designado como Filho de Deus, filho de Javé. O rei de Israel também.

Neste sentido, o próprio Jesus, enquanto Senhor Ressuscitado, é designado como Filho de Deus, isto é, como representante de Deus, Seu plenipotenciário, como aquele que foi investido em dignidade divina, como mediador (representante de Deus junto dos homens, representante dos homens junto de Deus, em sentido pleno e definitivo). Neste sentido, ele é “o Caminho, a Verdade e a Vida”. (continua)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 12 SET 2020

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna por Josep Maria Montaner.

No livro, A modernidade superada. Arquitectura, arte e pensamento do século XX, no texto Espaço e antiespaço, lugar e não-lugar na arquitetura moderna, Josep Maria Montaner escreve que a sensibilidade ao lugar por parte da arquitetura é um fenómeno recente, já que o grande esforço do movimento moderno se deu, no sentido, de criar uma nova conceção de espaço (ao utilizar-se o apoio de novos avanços tecnológicos). Montaner considera a existência de dois tipos de espaço: o espaço tradicional e o antiespaço. O espaço tradicional diferencia-se volumetricamente, tem uma forma identificável, é descontínuo, delimitado, específico, cartesiano (a três dimensões) e estático. O antiespaço, corresponde à nova conceção espacial criada pelas novas vanguardas, e é um espaço livre, fluído, leve, contínuo, aberto, infinito, secularizado, transparente, abstrato, indiferenciado e newtoniano (a quatro dimensões). O antiespaço, também denominado por espaço-tempo, foi gerado por contraposição e dissolução do tradicional espaço fechado e delimitado e é um espaço que gira em torno de um protagonista estrutural e formal: o pilar.

Para Montaner, a conceção de espaço infinito como continuidade natural e como recetáculo de toda a criação e de tudo o que é visível tem uma raiz ideal platónica - segundo Platão, o espaço é o terceiro componente básico da realidade, junto ao ser e ao acontecer. Montaner explica que Aristóteles, pelo contrário, relaciona o conceito genérico de espaço com um outro mais empírico e delimitado que é o conceito de lugar. Aqui cada corpo ocupa um lugar concreto e o lugar é entendido como um singular contentor dos corpos. Já na arquitetura moderna - desde J. N. L. Durand até Louis Kahn, passando pelos mestres do movimento moderno e pelos postulados do International Style - a sensibilidade ao lugar é irrelevante, porque todo o objeto arquitetónico surge através de uma autonomia.

No movimento moderno, os conceitos de espaço e de lugar são diferenciados claramente. Espaço é uma construção mental e tem uma condição ideal, teórica, genérica, indefinida e ilimitada. Lugar é definido pelas qualidades das coisas e tem um carácter concreto, empírico, existencial, articulado, detalhado, exalta valores simbólicos, históricos e ambientais e está relacionado fenomenologicamente com o corpo humano.

Para Montaner, foi na obra de Frank Lloyd Wright e na obra de Alvar Aalto que se introduziu “...com força definitiva a relação da arquitetura com o lugar.” (Montaner, 2001, p.34)

Montaner escreve, que dentro da arquitetura moderna, existem duas tradições distintas e opostas, no que diz respeito à relação da arquitetura com o lugar: a cidade-jardim de Ebenezer Howard e as primeiras Siedlungen alemãs integradas na paisagem; e o racionalismo, a nova objetividade e os primeiros projetos urbanos de Corbusier (que, mais tarde, teria a Carta de Atenas como resultado) e que, sobretudo, acentuam o domínio da arquitetura em relação a qualquer lugar. Por isso, a revalorização da ideia de lugar, recuperou valores que o antiespaço rejeitava, como a história e a memória.

Para Montaner, a ideia de lugar diferencia-se da ideia de espaço pela presença da experiência do mundo por parte do corpo humano. E o pensamento de Maurice Merleau-Ponty encontra aqui expressão, no sentido em que trata da experiência corporal do ser humano e do espaço existencial - a consciência do lugar é sempre uma consciência posicional.

Nas últimas décadas, o lugar pode ser entendido como: uma qualidade do espaço interior, capaz de criar um lugar que não existe - que se materializa na forma, na textura, na cor, na luz natural, nos objetos e nos valores simbólicos (como por exemplo se verifica nas obras de Heinrich Tessenow e Louis Kahn); em grande escala o lugar é interpretado como genius loci - que se manifesta na capacidade de fazer referência e articular preexistências específicas; uma última e mais profunda relação entenderia o conceito de lugar precisamente como a correta relação entre pequena escala do espaço interior e a grande escala da implantação.

Nas obras dos arquitetos modernos da chamada ‘terceira geração’ (Luis Barragán, José Antonio Coderch, Fernando Távora, Jørn Utzon e Roberto Burle Marx), em sintonia com o interesse à sensibilidade pelo lugar, renasce o interesse pela arquitetura vernacular. Nestes casos, ocorre uma ressonância às conceções de Martin Heidegger, onde os espaços recebem a sua essência não do espaço, mas sim do lugar - os espaços onde se desenrola a vida são primeiro que tudo lugares. Montaner refere ainda que Christian Norberg-Shulz opõe-se a toda a teoria da mobilidade e dos espaços transitórios e chega mesmo a afirmar que se se eliminar o lugar elimina-se também a arquitetura - o espaço da existência consiste sempre no lugar. Giedion estabeleceu, nos seus últimos escritos, duas atitudes que a arquitetura pode assumir em relação à circunstância: a do contraste (pirâmides e templos gregos) e da amalgamação (templos de pedra na Índia, teatros semicirculares e as obras de Wright).

Para Montaner, a capacidade de integração ao lugar varia drasticamente entre as propostas modernas tardias e as primeiras propostas pós-modernas. E é, a partir dos anos 1970, precisamente no momento em que se consolida a celebração da arquitetura como arte do lugar, que se inicia uma realidade totalmente nova em relação ao espaço. Aqui os espaços, já não são interpretados como contentores existenciais permanentes, mas são entendidos como intensos focos de acontecimentos, concentrações de dinamismo, torrentes de fluxos de circulação, cenários de factos efémeros, cruzamentos de caminhos e momentos energéticos.

Dentro deste panorama, das novas realidades espaciais, podemos identificar os espaços mediáticos. Nestes espaços, não existe predominância do espaço físico - a arquitetura transforma-se num contentor neutro, e por vezes transparente, com sistemas de objetos, máquinas, imagens e equipamentos que definem interiores modificáveis e dinâmicos. Aqui os limites espaciais físicos tornam-se impercetíveis no interior do contentor e dependem da experiência percetiva relacionada com as imagens, reproduções, instalações, monitores, mecanismos e virtualidades - este fenómeno tem como antecedente o projeto de Robert Venturi, para o concurso do National College Hall of Fame, em New Brunswick (1967).

Montaner termina o texto referindo que as qualidades do lugar e da magia das heterotopias (conceito definido por Michel Foucault) deixaram de ser mencionadas e que a definição de não-lugar - fenómeno que Marc Augé, com o livro Não-lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade, de 1994, introduziu - é o espaço da supermodernidade, do anonimato, da superabundância e do excesso.

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

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   De 14 a 20 de setembro de 2020

 

O júri do Prémio da Feira Internacional do Livro de Guadalajara distinguiu a carreira literária de Lídia Jorge, realçando a sua “originalidade e subtileza de estilo”, a independência da sua obra e a “imensa humanidade” da escritora portuguesa.

 

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RARA QUALIDADE

No calor algarvio, rodeado de livros acolhedores, preparava-me para voltar a escrever sobre a importância da leitura, como fator essencial de cultura, quando recebi a bela notícia de que em Guadalajara foi reconhecido o valor da obra de Lídia Jorge e o seu “nível literário” de rara qualidade, cuja novelística “retrata a forma como os indivíduos enfrentam os grandes acontecimentos da História”. Lídia Jorge é assim apontada pelo prestigiado júri internacional como “uma das principais autoras de língua portuguesa, por uma obra não só novelística mas também poética, ensaística e teatral”. Deste modo, o júri realça um especial sentido humanista, “na forma de se aproximar tanto dos temas tratados na sua obra – adolescência, descolonização, lugar da mulher, emigração, agentes da História -, assim como na apresentação das personagens que a protagonizam”. Cícero designava, por isso, de “humanitas” o que hoje chamamos cultura. Como Lídia Jorge salientou, num ensaio marcante: “Fiz o meu contrato sentimental com os livros que se parecem com as árvores, aqueles que são da sua matéria, leio cada um desses livros à vez, e cada folha é lida uma após outra…”.  De facto, é esta atitude que fica bem evidenciada no percurso intelectual, cultural e ético que se espelha numa obra multifacetada, que nos permite compreender a realidade humana como procura e compreensão do outro, do múltiplo e do diferente. E o certo é que se vivemos numa sociedade eminentemente urbana, consumista e homogeneizadora, “quando, entre nós, se fala de uma sociedade multicultural, e nos referimos à hipótese de virmos a ser uma população colorida, no sentido vital da expressão, estamos porventura a invocar o nosso mais fundo instinto de sobrevivência”. Mas será que poderemos preservar o que é próprio contra a onda predadora da harmonização e da despersonalização? Precisamos, sim, de “uma relação habitada com decência, respeitando o ambiente e a casa, uma atitude de preservação que não se confunda com um respeito museológico, mas impeça as incursões criminosas e a devassa”. E eis-nos perante a “imensa humanidade” da escritora que põe na sua obra o essencial de uma incessante procura do sentido da vida e de uma noção de identidade como ponto de encontro de diferenças e exigência de abertura e de enriquecimento mútuo.

 

O SENSÍVEL E O INTELIGÍVEL

Há alguns anos, Maria Graciete Besse salientou, com inteira justiça, que «a escrita de Lídia Jorge se caracteriza por um movimento de disseminação que faz evoluir o leitor através de uma notável experiência do tempo quebrado. Com efeito, o estudo da configuração temporal nas suas narrativas revela amiúde a invenção de um modo de narração não linear que, longe de abolir o tempo, condensa-o em poesia e espessura. Toda a sua obra distingue-se pela articulação sustentada do sensível e do inteligível, o que permite reconfigurar a experiência temporal e transmitir uma maior compreensão do mundo, graças à representação axiológica das experiências humanas» (Magazine Littéraire, agosto de 2013). Esse tempo quebrado é, no fundo, o tempo real, vivido no dia-a-dia por cada um, com encontros e desencontros, em que o sentimento e a razão se completam naturalmente. Daí a forte dimensão ética, não como um receituário ou como ambição de uma sociedade perfeita, mas como aceitação da imperfeição e como exigência de não condescender na compreensão mútua e na necessidade de podermos ser melhores. O sentido mágico que encontramos em O Dia dos Prodígios corresponde a esse diálogo entre o que se é e o que se deseja, entre o que se quer e o que se pode, tendo como pano de fundo uma realidade animada pelo sonho. A utopia não é um absoluto, mas um horizonte de esperança e de entendimento da dúvida. Por exemplo, em Estuário, voltamos, de algum modo, a O Dia dos Prodígios, não para repetir um certo tempo ou modo, mas para retomar noutra perspetiva um certo sentido profético ou até litúrgico na consideração do tempo. Se o primeiro romance, justamente celebrado, nasceu da urgência libertadora, e se Os Memoráveis procuraram uma reflexão sem ilusões, feita a partir da relatividade dos acontecimentos, das pessoas e das coisas, Estuário parte da crise portuguesa e procura reencontrar “o carácter estoico e a honradez antiga” – perante a incapacidade de uma resposta que permita uma “sobrevivência digna”. E o que é aqui o homem ou a mulher na modernidade? Alguém que não sendo capaz de salvar o mundo, procura a ficção como modo de tentar consegui-lo. Imperfeição e sonho encontram-se para entender a humanidade.

 

NECESSIDADE DE LER

Perante as incertezas de uma pandemia que continua a resistir, mas relativamente à qual encontraremos certamente soluções, importa compreender como os livros e a literatura, o romance, a poesia ou o ensaio, como a educação e a ciência desempenharão um papel fundamental – a dizerem que não estamos sós.  Não está apenas em causa o conhecimento, mas a compreensão das relações humanas, e da dignidade da pessoa humana. E por estes dias, tive o gosto de partilhar com Lídia Jorge a alegria de vermos o largo principal de Boliqueime com vida e prudência, o reencontro de pessoas que tinham saudades umas das outras. De facto, teremos de regressar paulatinamente à convivialidade, em que a distância não põe em causa a fundamental relação olhos nos olhos. A confiança de um saudável aperto de mão tem de ser ligada ao cuidado necessário. Por isso, na vida das escolas, quando elas vão reabrir, as relações pessoais e próximas são condição necessária da boa aprendizagem – e podemos garantir, por experiência antiga, que será na vida escolar saudável que começaremos a ver pelas costas a ameaçadora pandemia. E nesta recordação, lembrei o que o meu avô Mateus contava sobre o seu Professor do Ensino Primário. Quando o tempo permitia, o mestre-escola fazia rumar, em dia certo todas as semanas, os seus discípulos ao campo e aí se dedicava a ensinar peripateticamente os segredos do Borda d’Água, as noções de meteorologia, de orografia e de hidrografia, os nomes das árvores, das plantas e das aves, os tempos certos das culturas, a prevenção contra os animais perigosos ou contra a malária que por ali ainda grassava… E a caminhar ia contando histórias e lendas, e sobretudo com a experiência e o exemplo, falava da formação das pessoas e dos princípios da liberdade e da justiça. E aproveitava para lembrar um algarvio poeta, que se fizera apóstolo da leitura para todos – João de Deus. E, andando nesse adro da Igreja, ali mesmo, podemos ver ainda na identificação dessa rua o nome do velho professor, que os seus discípulos não esqueceram, José Jorge Rodrigues. Foi tão bom, Lídia Jorge, termos celebrado a leitura e os livros com o justíssimo reconhecimento de Gualajara. Não há mais palavras, senão ler…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

LODO NO CAIS…

Quando  demos a notícia da morte de A. P. Duchâteau, dissemos que publicaríamos um dos seus problemas policiais, adaptado por Adolfo Simões Müller, ilustrado por Tibet, e dado à estampa no “Foguetão” número 4 (25 de Maio de 1961). De facto, o relato era de Ric Hochet, ainda que nessa altura agisse anonimamente. O Comissário Esteves era, nem mais nem menos que o inspector Boudon. O prometido é devido e eis um enigma surpresa. Pedimos aos nossos leitores que nos digam a solução até ao final de amanhã, segunda feira – e reservaremos uma pequena surpresa para quem acertar…

 

“Naquela terça-feira 20 de outubro, um inquérito tinha-nos conduzido, ao Comissário Esteves e a mim, a um pequeno porto de pesca na região do Douro. Um inquérito sem história que terminara com a prisão do larápio que perseguíamos. Eram então nove horas da noite, muito tarde para regressarmos ao Porto. E assim decidimos passar a noite no hotel da terra. Depois do jantar, tínhamos passeado à beira-mar, entrando de vez em quando nas tabernas das ruelas vizinhas, pelo prazer de bebermos uma caneca de vinho verde, ao mesmo tempo que apreciávamos o ambiente local. Seria meia-noite quando nos encontrámos no “Cantinho dos Pescadores”. E de repente, um grito rouco ressoou lá fora, um verdadeiro grito de agonia. Corremos para a rua e aí descobrimos na semiobscuridade duas sombras enlaçadas que gesticulavam. Uma faca subiu e desceu… Ouviu-se um novo grito, desta vez abafado. Uma das sombras tombou no solo, enquanto a outra fugia em direção à enseada onde os barcos de pesca estavam ancorados. Vendo que o Comissário Esteves corria para socorrer o ferido, lancei-me na perseguição do fugitivo. Mas, uma vez no cais, perdi-o de vista. Decerto tinha-se escondido por trás dos caixotes vazios… Avancei com prudência. Um silvo… e mal tive tempo de me atirar ao chão. Uma faca foi cravar-se na madeira apodrecida de um dos caixotes… Depois, vi o homem que partia de novo, correndo. Para lhe estender uma armadilha, conservei-me imóvel, como se estivesse ferido. E vi-o saltar para o convés de um barco encostado ao cais. Entrou na cabina e desapareceu… Momentos depois, eu próprio estava a bordo do barco e batia à porta da cabina. Apareceu-me um marinheiro de camisola de lã – exatamente como o homem que eu perseguia.

- Que quer? – perguntou.

Sem responder, empurrei-o. Dentro da cabina, sentado a uma mesa, outro marinheiro da mesma corpulência, vestindo uma camisola idêntica escrevia a lápis uma carta.

- Mas fale! – exclamou o homem que abrira a porta – Que quer?

- Estão só os dois a bordo?

- Sim, senhor. Eu sou José Sardinha e aquele (apontou o homem que escrevia) o meu irmão Raul. Que quer o senhor?

- Um de vocês agrediu um homem há pouco…

- Impossível – replicou Raul, largando a carta – Nem eu nem o meu irmão saímos daqui.

- Em que empregaram o tempo esta noite?

-  Eu tenho estado a escrever à rapariga.

Debrucei-me sobre a carta, que dizia assim: “ X – 21 de outubro – Querida Teresa. Espero que ao receberes esta, te encontres bem. Eu, Zé e o barco estamos ótimos. Fico muito contente por me dizeres que em breve nos veremos, tomara esse dia…”.

Havia mais algumas frases no mesmo estilo, mas a carta estava por acabar.

- A que horas começou a escrever?

- Eram onze e quarenta e cinco.

- E você o que fez ? – perguntei a José Sardinha.

O homem apontou-me algumas cartas de jogar sobre a mesa.

- Estava a fazer paciências?

- Parece que sim… - resmungou ele.

- Bom! Agora já sei quem foi que deu as facadas.

Caro Leitor, um dos dois irmãos mentiu de forma flagrante para assegurar o seu álibi.

Foi o José? Foi o Raul? Respondam por favor…

 

Agostinho de Morais

OS 200 ANOS DA ATRIZ EMÍLIA DAS NEVES

 

Emília das Neves marcou de forma ainda hoje assinalável a qualidade e a projeção, na época, do teatro português. Já tivemos aliás ocasião de evocar o prestígio indiscutido desta atriz que, durante anos, cultivou e valorizou a arte do espetáculo.

 

Ocorrem agora os 200 anos do seu nascimento (1820): falecida em 1883, a imprensa e o meio cultural em geral assinalaram, de forma indiscutivelmente sentida, esta morte, algo prematura mesmo para a época...

 

A sua atuação deixou marcas mesmo no contexto histórico do teatro português, e já tivemos ensejo de diversas vezes o referir. Em qualquer caso, estes 200 anos agora assinalados merecem referência pois reassumem a projeção, na época, de uma atriz que marcou o meio teatral do seu tempo, e justificou uma consagração vinda designadamente de grandes nomes da cultura e do espetáculo, de tal forma que muitos chegam até hoje, como já tivemos ocasião de referir: mas os dois séculos entretanto decorridos mais justificam essas evocações.

 

E importa salientar que Emília das Neves fez parte do elenco que estreou em 15 de agosto de 1838 o garretteano “Um Auto de Gil Vicente”, estreado no Teatro da Rua dos Condes em 15 de agosto de 1838. Vale a pena novamente assinalar que esta peça de certo modo marca a convergência do historicismo com a renovação garrettiana do teatro histórico, e que terá no “Frei Luís de Sousa”, estreado em 1843, a sua expressão mais alta e como tal sempre reconhecida.

 

Já tivemos ensejo de referir, Garrett era grande e grato admirador de Emília das Neves.  Em carta escrita em 1849, não hesita em declarar, como aliás já temos referido: “bem sabe que sou e sempre serei seu verdadeiro admirador”. E o mínimo que se pode dizer é que Garrett não era muito aberto a afirmações deste género: quem mais admirava era ele próprio!...

 

E faremos agora uma coletânea de citações sobre Emília das Neves.

 

Sousa Bastos, no “Diccionário do Teatro Portuguez” refere quase 100 peças elencadas por Emília das Neves.  E, tal como já tivemos ensejo de escrever, é citado e devidamente documentado aquilo que referimos como a transição do romantismo para o realismo.

 

E nesse sentido, pode citar-se o contrato celebrado por Emília das Neves com a Sociedade Artística do Teatro de D. Maria II, datado de 30 de dezembro de 1846.

 

Em 1955, Gustavo de Matos Sequeira, na “História do Teatro Nacional de D. Maria II” refere a obrigatoriedade de pelo menos 14 peças em 10 meses de repertório, com facilidades na partilha do camarim, a dispensa de intervenções de canto, mas sobretudo o valor dos honorários, muito significativos para a época.

 

Escreve Matos Sequeira: “só a Srª Emília recebia por ano, pelo seu contrato especialíssimo, 2.500.000 reis por dois benefícios de 500.000 reis cada um (isto rendendo a casa quatrocentos) afora outras condições que correspondiam a outros encargos”... o que, na época, era muito dinheiro para pagar a uma atriz na época com 26 anos de idade!

 

Por seu lado, Luis Francisco Rebello, na “História do Teatro Português” (1967) refere-se a Emília das Neves como pertencendo desde a estreia ao “escol dos artistas de teatro”, desde logo como “estreante” (sic) em 1838 no Teatro da Rua dos Condes, seguindo-se outras referências: “grande atriz”, “uma das maiores trágicas do seu tempo”...

 

E no texto aqui publicado em 2015, citamos ainda Ana Isabel de Vasconcelos, que em “O Teatro em Lisboa no Tempo de Almeida Garrett” (2003) refere Emília das Neves “cuja vida percorreu praticamente todo o século XIX” e cujos admiradores “não poupavam esforços para a ver representar tendo mesmo comportamentos de adulação!...

 

Mas acrescente-se, para terminar esta nova referência, uma prestigiosa citação que foi feita por Luciana Stegagno Picchio na sua hoje clássica “História do Teatro Português” (ed. 1964).

 

Cita Garrett: e diz que “chegou mesmo a desempenhar papéis secundários ao pé de fascinantes atrizes como Emília das Neves”, nada menos!...

 

DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

LXV - VIAGENS, VIAJANTES E O FATOR LÍNGUA (VII)   

 

Se a linguagem falada, é um produto da evolução biológica, e a linguagem escrita exige instrução, sendo um fenómeno cultural, destinado a vencer o tempo e o espaço, através da imprensa e do livro, a que acrescem os meios eletrónicos e digitais atuais, um ser humano civilizado e qualificado tem de saber ler e escrever, enquanto o homem natural pode viver com a linguagem oral, como sucede em tribos primitivas.

 

Mas o potencial de universalidade e a dimensão de estratégia e de vanguarda de uma língua decorre ainda de ter tido capacidade de atravessar e penetrar em vários espaços geográficos deslocalizados territorialmente por continentes, através da descontinuidade linguística.                                                 

 

O que sucedeu com o nosso idioma, através da sua disseminação, o que é corroborado pelas suas caraterísticas de língua intercontinental, transnacional, transoceânica, transatlântica, pluricêntrica, internauta e de comunicação global.

 

Ser partilhada por várias culturas que a democratizaram, enriqueceram e moldaram com novas colorações e mais valias, embelezando-a e nobilitando-a, como língua absorvida, apropriada, miscigenada, incorporando novos vocábulos africanos e ameríndios, formando crioulos ou protocrioulos, tornou-a dinâmica, migratória, mestiça, dotando-a de uma maior flexibilidade e plasticidade, permitindo-lhe permanecer atuante e viva, o que a diáspora portuguesa, lusófona e contemporânea consolidou.

 

As quatro línguas europeias mais faladas (inglês, espanhol, português e francês), fruíram da primeira fase da globalização iniciada com a expansão portuguesa.

 

Tomando como referência a economia, um dos fatores mais decisivos para a utilidade funcional de uma língua, o nosso idioma sofre, de momento, algum défice, dado que a maioria dos países de língua oficial portuguesa ficam em África, continente deficitário em termos de desenvolvimento (embora também aí fiquem a maioria dos países de língua oficial francesa e uma parte significativa dos de língua inglesa).

 

Em contrapartida, tem melhor representação no continente americano, pelo Brasil, país de dimensão continental, maior número de falantes e potência emergente, sendo a língua mais falada do hemisfério sul, com grande potencial de crescimento demográfico, atenta a taxa de natalidade e população essencialmente jovem dos jovens países lusófonos.

 

Sendo o português uma língua de comunicação global enquanto materna e oficial de vários países de quatro continentes, associando um bloco linguístico global e internacional, corporizado e institucionalizado na CPLP, ultrapassado por uma comunidade linguística mais ampla que é a lusofonia, tem uma margem de crescimento superior, por exemplo, à do alemão, francês, italiano, russo, japonês. 

 

No caso da língua portuguesa, transitou-se de uma conceção lusista, lusíada, nacionalista e patrimonialista, para uma conceção não patrimonialista, partilhada, transcontinental, transnacional, lusófona e de exportação.

 

Sendo imperioso que seja útil ser usada por falantes de outras línguas, como segunda, terceira ou outra opção, apropriada, aceite, escolhida e querida como de exportação, informática e internauta, pois se servir apenas os seus nativos e maternos, não será um idioma internacional de comunicação global, antes sim uma língua internacional regional do ponto de vista global.     

 

É também tida como uma língua bipolar, assumindo o estatuto de língua global a nível mundial e o de “pequena língua” na Europa, sendo cada vez mais, em termos estatísticos, essencialmente não europeia, apesar da sua génese.

 

No dizer de Ivo de Castro, e sem esquecer a sua matriz galega: “a história da língua portuguesa pode ser resumida numa frase: falamos uma língua que nasceu fora do nosso território (de nós, portugueses) e cujo futuro será em larga medida decidido fora das nossas mãos. A língua portuguesa, numa visão temporal ampla, acha-se de passagem por Portugal”.                                   

 

Segundo Fernando Venâncio: “A experiência do português como instrumento de contactos alargados é não apenas uma surpresa: pode provar-se um deslumbramento. Isto deve-se, decisivamente, à abertura que sempre o português patenteou, à sua característica de bom aproveitador de quanto, à sua volta, achava de útil”. Uma língua em circuito aberto, acrescentando: “Mas, se fomos sobretudo um idioma importador, alguma coisa produzimos, também, de proveitoso para o largo mundo” (Assim nasceu uma língua, Guerra e Paz, 2019).       

 

Sucede que o mundo é cada vez menos eurocêntrico, há um ocidente em crise,  uma Europa em declínio, ausência de liderança europeia, sendo-nos preferencialmente favorável uma visão europeísta e atlantista, e a ter como exemplo evolutivo, no mundo ocidental, a liderança atual dos Estados Unidos da América, pode concluir-se que são e serão os descendentes da velha Europa imperial os novos impérios linguísticos do futuro o que, por analogia, está a suceder com a nossa língua.                

 

11.09.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício