Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

De 30 de novembro a 6 de dezembro de 2020

Manuel Ivo Cruz (1935-2010), autor de “O Essencial sobre a Ópera em Portugal” (INCM, 2008), é uma referência na musicologia portuguesa contemporânea, tendo tido uma muito relevante presença como maestro e como estudioso e divulgador da história da música em Portugal. Com uma assinalável presença na cidade do Porto, tornou-se aí um fator de prestígio e de afirmação de uma cultura musical de qualidade, em coerência com a história muito rica da cidade nesse domínio.


UMA FAMÍLIA DE ARTISTAS

Originário de uma família na qual as Artes tiveram sempre um papel muito importante, Manuel Ivo Soares Cardoso Cruz era filho do maestro Ivo Cruz (1901-1985) e formou-se em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Recorde-se que o Pai do Maestro teve uma longa carreira no Conservatório Nacional, onde trabalhou com Vianna da Mota, a quem sucedeu na direção da instituição (1938-1971), tendo iniciado a sua formação musical em Lisboa com António Tomás Lima e Tomás Borba, tendo estudado depois em Munique Composição, Direção de Orquestra, Estética e História da Música. Fundou a Sociedade Coral Duarte Lobo, para a execução da música portuguesa pré-clássica, tendo ainda promovido as primeiras audições modernas de compositores como Carlos Seixas (1704-1742) e João de Sousa Carvalho (1745-1798). Entre vasta produção, inclusive literária na revista “Contemporânea” (1915-26) e “Música” (1924-25), sua obra é vasta, sendo porventura a mais conhecida a Sinfonia de Amadis, estreada em Lisboa em 1953. É assinalável a coleção bibliográfica que reuniu e se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal, na qual se inclui o maior conjunto conhecido de autógrafos de João Domingos Bomtempo (1775-1842). Lembra-se este percurso, uma vez que o filho, com grande autonomia de estilo e de cultura, desenvolveu o conhecimento e a divulgação da história da música portuguesa, em especial quanto à sua projeção internacional. É, aliás, fundamental a bibliografia que Manuel Ivo Cruz (filho) produziu e que é fundamental para o conhecimento da História da Música em Portugal – como “O Teatro Nacional de S. Carlos” (Lello, 1992) e “O Essencial sobre a Ópera em Portugal” (INCM. 2008). O conhecimento da ação de D. João V no desenvolvimento da cultura musical em Portugal, em especial com a fundação em 1713 da Escola de Música do Seminário da Patriarcal mereceu da parte do Maestro Manuel Ivo Cruz um interesse especial, que permite compreendermos melhor a importância da música na cultura portuguesa. Não esquecemos, por outro lado, no seu ambiente familiar, a obra que tem sido desenvolvida no domínio da História do Teatro pelo irmão do Maestro, Duarte Ivo Cruz, dirigente do Centro Nacional de Cultura, em tantos domínios complementar da de Manuel Ivo Cruz.   

UM TALENTO REVELADO DESDE CEDO
Com sólida formação musical, deu o seu primeiro concerto ainda estudante, com 19 anos, tendo sido bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo-se diplomado com distinção, como maestro, na Academia de Mozart da Universidade de Salzburgo, na Áustria. Regressado a Lisboa, foi diretor musical e chefe da Orquestra Filarmónica de Lisboa, tendo dirigido programas de música na Radiotelevisão Portuguesa (RTP), colaborando nas temporadas de ópera do Teatro da Trindade, em Lisboa, e nos concertos das orquestras sinfónicas da então Emissora Nacional. Foi ainda maestro-diretor do Teatro Nacional de São Carlos, sendo o grande animador dos Cursos Internacionais da Costa do Estoril, e maestro convidado, com grande sucesso, em Espanha, Alemanha, França, Grécia, Itália, Brasil, Estados Unidos da América, Rússia e Venezuela. Foi presidente e diretor artístico do Círculo Portuense de Ópera, no Porto, e da Ópera de Câmara do Real Teatro de Queluz. Como grande pedagogo, foi estudioso e divulgador de obras musicais portuguesas menos conhecidas, fazendo, para isso, investigação na área da musicologia histórica portuguesa e apresentando um vasto reportório documentado e publicado pela EMI, Numérica, Tecla, Jorsom e Solemio. Em 1969, Manuel Ivo Cruz recebeu o Prémio Moreira e Sá do Orfeão Portuense e foi distinguido pela França com o título de Oficial de Mérito Cultural e Artístico, pelo Brasil com a Ordem do Rio Branco e em Portugal com o Grande Oficialato da Ordem do Infante D. Henrique. Em 2004, nas comemorações do 50.º aniversário da carreira artística, com a Medalha Municipal de Mérito, grau ouro, entregue pela Câmara Municipal do Porto.

UMA REFERÊNCIA CULTURAL
O Maestro ministrou cursos na Universidade do Pará e em S. Paulo. Foi sócio honorário da Sociedade Brasileira de Musicologia, Sócio Correspondente da Academia de Letras e Música do Brasil, Membro do Conselho Português da Música, da Associação Portuguesa de Ciências Musicais, Fundador e Vice-Presidente da Conferénce Européenne de la Musique e do Observatoire Européen des Sciences, des Techniques et de l’Economie de la Musique.

Ao longo dos 50 anos de carreira, o Maestro Manuel Ivo Cruz  dirigiu a maior parte das obras que se inscrevem no reportório da música sinfónica. É porventura o Maestro português que mais óperas dirigiu, em quantidade e em diversidade. Também dirigiu primeiras audições de obras de compositores como António Victorino d’Almeida, Cláudio Carneyro, João Domingos Bomtempo, ou João Pedro Oliveira. A par da sua longa atividade artística, o Maestro Manuel Ivo Cruz cultivou uma rica bibliofilia musical que lhe permitiu reunir o acervo documental que serviu de base ao protocolo estabelecido entre o Maestro e o Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa. O destaque desse espólio refere-se a fontes relevantes do Património Musical Português dos finais do século XIX e primeira metade do Século XX, entre as quais se encontram a obra integral do compositor Ivo Cruz (Pai) e peças de Miguel Ângelo Pereira, Ciríaco de Cardoso e de João Arroyo entre outros. O espólio abrange ainda partituras de orquestra, óperas, música de câmara portuguesa, muitas delas dirigidas em primeira audição pelo próprio maestro. O acervo é ainda enriquecido por libretos dos séculos XVIII e XIX, gravuras, discos, coleções de postais e programas de concerto e ainda por inúmeros livros de referência.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CADA ROCA COM SEU FUSO...

 

UMA DATA PARA LEMBRAR…


Quando há alguns anos houve alguém, decerto por menos conhecimento (é o menos que pode dizer-se), acabou com o feriado do Primeiro de Dezembro, houve um justo coro de vozes a recordar que se tratava de tentar esquecer uma primeira data da nossa identidade histórica e por isso primeiro feriado civil da República. De facto, logo no ano de 1910, a primeira comemoração profana foi a da libertação da Pátria de 1640. E esse momento foi tão importante que, por exemplo, do alto de uma guarita no Largo do Carmo, Francisco de Sousa Tavares afirmou que a libertação de 25 de abril de 1974 era a data mais importante depois do Primeiro de Dezembro de 1640. A 1 de dezembro de 1910, simbolicamente, também nasceu o que viria a ser a origem da “Renascença Portuguesa”, através da revista “A Águia” de Álvaro Pinto, na continuidade da qual Raul Proença e Teixeira de Pascoais protagonizariam o debate essencial sobre o patriotismo – para um, prospetivo e futurante, para o outro, saudoso e poético, mas para ambos crucial para a definição da cultura portuguesa: lírica ou trágica, mas igualmente picaresca… Se a Revolução de 1820 invocou a Regeneração, que em 1851 daria lugar a um compromisso de acalmação política para quase sessenta anos, a República de 1910 arvoraria a ideia de Renascença, que viria (depois do interregno ditatorial) a tornar-se raiz da democracia do último quartel do século XX. Eis por que faz sentido a lembrança da Restauração da Independência invocada neste Primeiro de Dezembro! Sim, sobretudo quando a fragmentação das autonomias ibéricas do Reino de Espanha demonstra o bem fundado da decisão da independência do ocidente peninsular. Senão vejamos sete pontos sacramentais: 1) O caráter marítimo do ocidente ibérico (“terras de Espanha, areias de Portugal”) e a vontade dos portugueses, para usar a explicação de Herculano, dão a Portugal uma identidade própria que se projeta universalmente; 2) Filipe I, nas Cortes de Tomar, teve consciência disso mesmo ao reconhecer expressamente a independência e o estatuto de Portugal, que se perderia com Olivares; 3) Na guerra dos trinta anos (1618-1648), a casa de Habsburgo que governava a Espanha, levou-nos para um conflito europeu e global que contrariou claramente o interesse estratégico de Portugal; 4) O apoio da França de Richelieu a Portugal no conflito seiscentista permitiu romper com um caminho inexorável de agravamento da decadência através de uma Corte tornada de Aldeia; 5) Perante a ameaça global da Holanda, havia que romper com a tentação de Conde-Duque de Olivares de unificação peninsular num só reino, sem as prerrogativas da independência antiga de Portugal; 6) Os conjurados de 1640 recusaram assim a tal “Corte na Aldeia” e ao dar o golpe sabiam que iriam iniciar uma longa luta de sobrevivência nacional, que começou na tentativa de mobilizar recursos para fazer uma política colbertiana - ouvindo Luís Mendes de Vasconcelos, Conde da Ericeira, Severim de Faria, Ribeiro de Macedo, e seguindo as diligências diplomáticas na Holanda junto dos Cristãos-novos do Padre António Vieira) e terminou na exploração do ouro e dos diamantes do Brasil, sem o investimento na fixação, o que muito nos atrasou… ; 7) O certo é que Portugal seguiu um curso de independência, de acordo com a sua “maritimidade” e o desenvolvimento de uma língua, que se tornaria elemento congregador de várias culturas e alfobre de várias nações… Ao lermos alguns dos nomes dos quarenta conjurados, compreendemos que havia uma resistência, que se tinha solidificado perante a lógica autoritária de Madrid e a insensibilidade de Filipe III. Do mesmo modo, havia uma tomada de consciência de que o império iria desfazer-se, não só o do Índico (já fortemente enfraquecido), mas sobretudo o do Atlântico Sul e do Brasil. Eis os nomes: Antão Vaz de Almada, António Luís de Meneses (Marquês de Marialva), Francisco de Noronha, Francisco de Sousa (Marquês das Minas), D. Jerónimo de Ataíde (filho de D. Filipa de Vilhena e por ela armado cavaleiro com seu irmão Francisco Coutinho), Dr. João Pinto Ribeiro, João Sanches de Baena, Luís de Almada, Martim Afonso de Melo, Pedro Afonso Furtado, D. Rodrigo da Cunha (Arcebispo de Lisboa), Tomás de Noronha (Conde dos Arcos), Tomé de Sousa, Tristão da Cunha de Ataíde… Os nomes envolviam o clero, a nobreza e o povo – e reconstituíam a resistência que tinha levado ao trono o Mestre de Avis em 1385. Eis por que não se trata de uma celebração isolada, mas da afirmação perene de uma vontade de emancipação. E lembremos o que disse António Sérgio no pós Alcácer Quibir:  «Perante a vaga do trono português, sucedeu-lhe Filipe II de Espanha, que nas cortes de Tomar jurou as condições em que reinaria: a sua ideia não foi a absorção de Portugal, mas uma monarquia dualista, em que tínhamos perfeita autonomia, no mesmo pé do que Castela. Cumpriu religiosamente o que prometera; e foi seu neto Filipe IV, ou melhor o conde-duque de Olivares, quem, iludindo-as, provocou mais tarde a revolta dos Portugueses». Regressa à lembrança o sonho do Príncipe Perfeito, de um Império de base ibérica, com um rei português e Lisboa como centro de gravidade dessa realidade universal. Como salientou Vítor Sá:  «A restauração da independência de Portugal trouxe ao primeiro rei da nova dinastia, João IV, inimigos poderosíssimos, dificuldades diplomáticas e militares, que acabaram por ser vencidas nas linhas de Elvas, com o exército português já instituído por bons mestres (Schomberg). «Mostrou-se o povo, mais uma vez, como boa matéria-prima quando enquadrado por boa élite» — concede António Sérgio. Na conjuntura restauracionista teve lugar a primeira tentativa para se «assentar em bases firmes a economia da metrópole», com a política do conde da Ericeira. Mas essa tentativa resultou frustrada pela «sorte grande» que foi a descoberta das minas do Brasil».
 

Agostinho de Morais

EVOCAÇÃO HISTÓRICA DOS TEATROS DO PARQUE MAYER

 

Aqui retomamos referências que ao longo de dezenas de anos fizemos aos teatros do Parque Mayer, tendo em vista a concentração histórica de sucessivos ou/e simultâneos centros de espetáculo no coração de Lisboa. Não é pois obviamente a primeira vez que o fazemos, e seria aliás no mínimo estranho que assim fosse: mas tenha-se presente que ali foi urbanizado e estabelecido e desenvolvido, ao longo de dezenas de anos, um centro de espetáculos que ainda hoje, de certo modo, marca e caracteriza a cultura urbana de Lisboa e do país.


Insista-se, já aqui evocámos a estrutura e a atividade teatral, no âmbito global do termo, dos teatros do Parque Mayer. E já tivemos ensejo de, em textos variados, referir as origens deste centro cultural que o Parque Mayer, a partir dos anos 20 do século passado, constitui. Pois podemos então recordar que foi em 1922 que se estreou no Parque Mayer um espetáculo: concretamente, a revista ”Lua Nova” de Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos, no que na época se chamou “um teatro provisório”, ao qual foi dado o nome evocativo da então ainda célebre atriz Maria Vitória.


Hoje o nome artístico já nada diz: mas na verdade, o chamado Teatro Maria Vitória constituiu a primeira grande iniciativa teatral do Parque Mayer. E será oportuno invocar a rede de edifícios de espetáculo, que tanto marcaram e de certo modo ainda hoje marcam a vocação público-cultural do coração de Lisboa...


E nesse aspeto, importa ter presente a tradição de espetáculos, sobretudo de teatro, que o Parque Mayer desenvolveu, e isto praticamente desde há um século. É realmente extraordinário, tendo em vista designadamente a inovação que, no quadro epocal, representou esta concentração de edifícios e de atividades de vocação cultural, cénica, musical e cinematográfica.


Para além, note-se, de outras expressões de congregação de público, de arte e de cultura ou de recreação social.


Tenha-se aliás bem presente que este conjunto de edifícios, bem no centro de Lisboa, constituiu como que uma área de renovação das artes de espetáculo, no coração da cidade. Mas importa recordar que a zona constituiu desde há séculos, uma zona urbana de vocação de espetáculo e de cultura. No Parque Mayer, recordamos então os Teatros Maria Vitória, Variedades, Capitólio, este também cinema durante décadas, e até o Teatro ABC, que foi o primeiro a desaparecer.


E importa então ter presente a relevância que, neste conjunto arquitetónico-cultural, assumiu o arquiteto Luís Cristino da Silva (....) desde logo porque a ele se deve o pórtico de entrada do Parque Mayer. Mas também, e não é pouco, o então Cineteatro Capitólio que, durante décadas constituiu o principal centro de criação cultural – espetacular (e o termo é utilizado na sua expressão mais abrangente...) da zona. Com a circunstância de a Cristino da Silva se dever não só o projeto do Capitólio, inaugurado como cinema em 1930, mas também do pórtico do Parque Mayer, notável na sua expressão arquitetónica.


E sobretudo no que respeita ao Capitólio, valerá a pena retomar e reelaborar análises que já temos feito.

 

DUARTE IVO CRUZ   

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

67. EM REBUSCA DO HÁBITO DA LEITURA


A escrita foi o coração da civilização, substituindo a fala.


Na língua oral, de trato quotidiano, uma vez lançada a mensagem, o processo está feito, extingue-se. 


Na língua escrita, a sua mensagem não morre, perdura, por maioria de razão se mais elaborada e usada na literatura.   


Há o provérbio latino, segundo o qual: verba volant, scripta manent, ou seja: o que se diz voa e perde-se no ar; o que se escreve permanece, tem a garantia da perenidade.


A linguagem oral é conjuntural, a escrita é estrutural. 


O livro foi o melhor amigo da escrita, a que acresce o jornal.   


A aprendizagem e o hábito da leitura, foram imprescindíveis para o progresso civilizacional.


A leitura procurava o livro (e o jornal) numa reciprocidade de benefícios e interesses. Livros e jornais eram o ícone da leitura (em especial o livro) e esta o seu arquétipo. Hoje a leitura tende a ser cada vez mais arqueológica, livros e jornais são menos procurados e lidos, a caligrafia e escrita manual é uma relíquia, tanto mais requintada se em tinta permanente.   


Surgiu o telemóvel, o novo ícone, cuja leitura agressiva, aleatória, chamativa, imediata, impulsiva, programada (a gosto) e velocista o universaliza, tornando os leitores mais primários, impulsivos e menos exigentes, prejudicando a leitura como hábito de pensar no seu sentido crítico e racional, não ajudando a meditar e pensar com vagar.


A velocidade contagiosa da internet difunde um sempre mais e mais da notícia de leitura curta, rápida e ao minuto, marginalizando outras, género comentário ou ensaio, porque não interessam ou não há tempo, argumenta-se, fomentando-se a informação acrítica, consumista, descartável, de pobreza vocabular, por vezes manipuladora e falsa.


A disrupção digital ensina que a aprendizagem e a leitura se devem submeter à velocidade, ao não aprofundamento, à banalização linguística, anulando a reflexão e o tempo para pensar.   


A palavra, por natureza, é racional, exige triagem, distância, raciocínio e sentido crítico, precisa ser escrutinada, pertence ao terreno da escrita e só nesta tem verdadeiro sentido, necessita de valer por si e não ser meramente submetida ao império amoral, autoritário, funcional e utilitário da tecnologia.  

 

27.11.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

ROMEU E JULIETA

 

Que pedaços se escolhem para interpretar?


Assim também se anda sobre a terra depois de desdobrada? Ou já antes?


Este o caudal com que afinal se pode dizer do amor e do que o fustiga.


Perturbador. Perturbação.


E é sabido que o vento não tem consistência, e no entanto,
amola a agitação das folhas.


Esta uma paisagem humana que comove
porque o que é zero
não está ali.


Prisioneiros, Romeu e Julieta são extremos: raízes
que atravessam a pedra.


Agora só bebem quando a terra os humedece.


E os musgos, crivo verde,
desabrocham para o lado do leite.

 

Teresa Bracinha Vieira

A INTUIÇÃO COSMOTEÂNDRICA: A RELIGIÃO DO FUTURO

 

1. Foi há 10 anos que Raimon Panikkar nos deixou: no dia 26 de Agosto de 2010, com 91 anos, em Tavertet, perto de Barcelona. Foi um dos espíritos mais clarividentes do século XX, com um pensamento original, que a presente situação pandémica e a urgência de um novo paradigma de desenvolvimento e uma nova política no contexto de uma terrível crise global, económica e social, que inclui a necessidade de um pacto ecológico para preservar a casa comum, tornam ainda mais actual. É por isso que não podia deixar de voltar a ele, “um mestre do nosso tempo”.


2. Só estive com ele uma vez. Em Barcelona, em 2004. Tinha uma presença cálida, com um sorriso luminoso. E era simples. Uma vez, uma aluna minha, de Barcelona, disse-me que queria muito fazer um trabalho académico sobre o pensamento dele. Achei bem e disse-lhe: “Agora, nas férias, vá falar com ele...”. Ele deu-lhe 40 minutos e ela, uma jovem, veio fascinada e fascinou os colegas com a descrição do encontro e a exposição do trabalho.


3. Panikkar era uma das maiores autoridades mundiais nas questões do diálogo multicultural e inter-religioso. As suas raízes genéticas, religiosas, académicas, geográficas, deram um contributo decisivo para ser ponte entre mundos: o pai era hindu e a mãe catalã católica; era doutorado em Filosofia, Química e Teologia; viveu uma parte da sua vida na Europa, outra na Ásia, uma terceira na América. Ensinou em muitas universidades, incluindo Harvard. Deixou mais de 50 livros, em várias línguas, que dominava. No meio de uma vida agitada e aparentemente dispersa, manteve, no Uno, a serenidade do monge. É seu o pensamento, retomado pela encíclica de Francisco, Laudato Sí, de que tudo está interligado.


Padre católico, regressando da Índia, disse que voltava hindu e budista, sem que isso significasse deixar de ser cristão: pelo contrário, agora era mais cristão. Por isso, para lá do diálogo inter-religioso, defendia o diálogo intra-religoso, isto é, aquele diálogo que cada um deve estabelecer dentro de si mesmo entre as grandes religiões, cuja herança pertence a todos.


Depois dos períodos de isolamento e ignorância recíproca, indiferença e desprezo, condenação, perseguição e conquista, coexistência e tolerância, chegou como “necessidade vital” o tempo do diálogo entre as religiões. É preciso superar o exclusivismo, que afirma que só uma religião é verdadeira (a minha), rejeitando as outras.


O diálogo autêntico só pode ter por base o são pluralismo: todas as religiões são presença do Absoluto, do Mistério salvador, mas nenhuma o possui definitivamente. Este diálogo é constitutivo do ser humano enquanto tal, pois o Homem não é uma mónada fechada, mas uma pessoa, feixe de relações. Por isso, a religião tem de incluir também o diálogo com a Terra, a que chamou ecosofia. Este é o pensamento e a acção implicados numa concepção cosmoteândrica.


Expressão deste pensamento e diálogo de um homem universal foi o seu funeral: numa celebração solene e íntima, seguiu o rito exclusivamente católico, mas Panikkar deixou instruções precisas para que as suas cinzas fossem repartidas entre a família, o cemitério de Tavertet e o rio Ganges, na índia.


4. Já Platão distinguiu entre pan, o todo como soma das partes, e holon, o todo estruturado, mais do que a soma das partes.


Há muita dificuldade em pensar holisticamente, sobretudo porque a razão moderna é objectivante, analítica, separadora, tendo como seu modelo a máquina, que decompõe para refazer e assim dominar. No próprio pensamento religioso, em vez de religação, encontramos frequentemente visões dicotómicas e dualistas: este mundo e o outro, o aquém e o além, a alma e o corpo, o divino e o humano, o interior e o exterior, os de dentro e os de fora, os crentes e os não crentes...


Neste contexto, Panikkar afirmava com razão que é preciso ultrapassar e superar “três dualismos, seis dicotomias e três reducionismos”. Torna-se imperioso unir o que tem andado separado. O distinto e o diferente não podem significar separação.


Os dualismos são: Deus e o homem, o Homem e a natureza. Não se trata agora de confundir, mas de religar. As seis dicotomias são: alma e corpo, masculino e feminino, indivíduo e sociedade, teoria e práxis, conhecimento e amor, tempo e eternidade. Também aqui não se trata, evidentemente, de reduzir tudo ao mesmo, mas de tomar consciência de que uma realidade não existe sem a outra e de mostrar a sua relação intrínseca. Os três reducionismos são: “o antropológico, que reduz o Homem a um animal racional; o cosmológico, que reduz o cosmos a um corpo inerte; o teológico, que reduz a Divindade a um Ser transcendente”. Impõe-se superar estes reducionismos, porque o Homem não é redutível a animal racional, e, quando se reduz o cosmos a um corpo inerte, esquece-se a sua dimensão sagrada e viva, e o modo da transcendência de Deus só pode ser este: no mundo, Deus é transcendente ao mundo, infinitamente transcendente enquanto infinitamente presente.


Tudo está em relação com tudo. Ser e ser em relação identificam-se. Não se trata, portanto, de anular as diferenças, já que a unidade sem a diferença seria a mesmidade morta, como as diferenças sem a unidade se anulariam no caos. Assim, a religião do futuro tem que religar o que tem andado separado: Cosmos, Deus e Homem, como se diz na palavra cosmoteândrico e na sua obra, traduzida para português: A intuição cosmoteândrica. A religião do terceiro milénio. Tudo está interligado.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 21 NOV 2020

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Arte Moderna - A história de arte como uma história de juízos de valor.


‘A arte é justamente a realidade que se cria a partir do encontro do Homem com o mundo…’
Giulio Carlo Argan


No livro ‘Arte Moderna, Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos’ (1992), Giulio Carlo Argan situa o nascimento da modernidade no séc. XVIII, coincidindo com o início da participação ativa da arte na evolução da História. Aqui, Argan procura impor a esfera social à esfera artística.


Em ‘Arte Moderna’ Argan aplica um estudo direto e analítico das obras, entendidas como documentos essenciais da história de arte. Para Argan a história da arte, como expressão e significado que extravasa a esfera do belo, é acima de tudo a história da cultura. Argan analisa as obras segundo critérios éticos, permitindo partilhar a compreensão da arte para todos. Acredita que obra de arte é exemplar, é modelo para as demais atividades. Argan ao analisar as obras pela sua aparência e ao determinar significados abrangentes aproxima-se do método fenomenológico – porque num fenómeno todos os factos têm um significado. Argan descreve o fazer artístico como sendo um processo estrutural – é um fazer que requer uma dimensão reflexiva e que permite uma intencionalidade.


Para Argan, o objeto de arte pretende chegar à conceção total do mundo, é produto supremo e perfeito do fazer humano. É sistema em que todas as relações são possíveis. É fazer ético por excelência – acima da exatidão existe uma exatidão moral, um dever. A arte é constituída por objetos que permanecem presentes,  e é capaz de afirmar constantemente uma atualização de experiências passadas – a arte forma uma unidade com a história, criando valores. A arte é, assim, um projeto estruturado que inclui o agir humano, aspetos sociais e éticos, em que passado, presente e futuro se condensam.


Para Argan, a história da arte moderna é a história do fazer ético do ser humano face ao fazer racional da máquina – no trabalho artesanal, o artista traz para o trabalho criativo a sua experiência acerca da sua realidade e está permanentemente a renovar essa experiência; já o trabalho da máquina transforma simplesmente o sistema criativo num sistema puramente funcional e material.


Argan constrói a história como pensamento e como ação, visionando a arte e a arquitetura no seu compromisso com a sociedade. Em ‘Arte Moderna’, Argan considera a obra de arte, num contexto amplo, como uma relação constante entre a atividade mental e a operacional partindo de um complexo monumental, abrangendo até a cidade inteira.


Para Argan, o conceito de arte define um tipo de valor, ligado à forma e ao tipo de experiência que ela proporciona ao ser humano, ao ser percecionada. As formas são significantes e significados, ao darem-se a perceber, ao serem interpretadas como tal. A história de arte é uma história de juízos de valor, porque contribui para o entendimento de uma civilização inteira atual, descolada do passado e que estabelece premissas para pesquisas artísticas futuras. A obra de arte surge como uma oportunidade de se produzir um valor (pela sensibilidade da operação, pela singularidade).


Para Argan a História da Arte não se limita a uma análise agrupada de factos artísticos – a obra de um artista é uma realidade histórica. É uma componente da história da cultura geral.


Argan busca a essência das suas ideias através da cultura, da ética, fundindo diversas metodologias (iconológica, sociológica, estrutural, …) na condição de integrar a obra de arte no seu momento histórico. Sendo assim, contribuíram para a obra Argan diversas perspetivas históricas:


Escola de Viena
 – na aplicação do método psicanalítico ao fenómeno artístico através da Teoria da Visibilidade Pura. Teoria que estuda as ideias, oposta ao Positivismo (que só atenta ao conteúdo de uma obra de arte) elaborada por:

  • Korand Fiedler – o campo da arte é o limiar entre a ideia e a sua representação, a intuição e a expressão. Todos os aspetos de um objeto artístico têm significado. O conteúdo da obra de arte é o seu processo de formalização de conformação livre.

  • Alois Riegl – valoriza toda a hierarquia entre as artes maiores e menores, porque todas fazem parte da evolução humana.

  • Wölfflin – afirma uma arte ligada apenas aos processos da visão.


Erwin Panofsky
 – dando ênfase aos significados simbólicos. Argan vai além da aplicação do método iconológico de Panofsky na produção da arte moderna: ‘É fácil reconstituir o significado simbólico, mas existem muitas coisas para as quais não se pode encontrar um significado simbólico: evidentemente essas coisas são portadoras de um significado que nos escapa, mas que todavia é um significado.’


Karl Marx
 – Argan incorpora aspetos do marxismo, combinando a questão artística e a dinâmica da produção e da economia. Argan salienta o facto de Marx sustentar a arte não como entidade pura e que o artista executa também um trabalho social.


No entanto, Argan recusa uma visão fechada e dogmática do materialismo histórico, antes privilegiando a articulação de múltiplos contributos que vão desde a psicanálise, a análise sociológica e a compreensão da complexidade de fatores ligados à criatividade.
 

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

GOM.jpeg
   De 23 a 29 de novembro de 2020

 

Irene Vallejo, recentemente premiada com o Prémio Nacional de Ensaio de Espanha, graças ao livro O Infinito num Junco (Bertrand, 2020), oferece-nos uma reflexão fundamental sobre as origens e o destino do livro.

 

CNC - Irene Vallejo _ O Infinito num Junco .jpg

 

OS LIVROS TÊM O SEU PRÓPRIO DESTINO

Falando de livros e de autores, não podemos esquecer o que Eduardo Lourenço nos diz sobre o nascimento da modernidade portuguesa. “Almeida Garrett e Herculano ‘refundaram’ Portugal porque, pela primeira vez, e de uma maneira mais radical do que acontecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa história de nação independente, o país esteve em sérios riscos de perecer. E de uma maneira que não afetaria apenas a sua expressão política, mas o seu todo como organismo histórico e cultural”. E que aconteceu? Portugal ficou em discussão na balança da Europa, depois das guerras napoleónicas. Os poetas românticos foram para o exílio, em nome da liberdade – e “Portugal e os Portugueses, pela primeira vez divididos ideologicamente – ao menos uma pequena minoria – começam a preocupar-se e a ocupar-se do destino de Portugal. Como se fossem já cidadãos e não meros súbditos. (…) Com o voto da Constituição de 1822 nasce o liberalismo em Portugal e pede-se ao rei que regresse para jurar a Constituição. A semente estava lançada…” Tratava-se de separar o Portugal velho do Portugal Novo. E os dois românticos, pensando o País em termos profanos, integram-no na História. Assim, insiste Eduardo Lourenço, “A História de Portugal de Alexandre Herculano não é uma entre outras, é a primeira digna desse nome escrita de dentro e segundo as mais rigorosas exigências da época. É já também, intrinsecamente, Portugal como história. O inacabado monumento ficou perfeito no seu inacabamento. É também uma leitura do nosso passado à luz do presente, um Portugal que, de armas na mão, se conquistou como liberdade. E é o passado dessa liberdade – quando na sua perspetiva mereceu esse nome – que ele exuma e exalta. Um passado julgado mesmo com severidade (…) antecipando a leitura dramática da geração seguinte. Miraculosamente, contudo, tenta preservar os dois Portugais que sob os seus olhos se digladiaram, conciliando liberalismo com cristianismo” (Portugal como Destino – Dramaturgia cultural portuguesa, 1998).

Não por acaso falamos de dois autores que influenciaram decisivamente o seu tempo pelo que escreveram. E hoje as suas obras são marcantes. Fizeram uma ligação entre uma cultura antiga e ancestral e o tempo presente. Mas a força da sua influência deveu-se à construção de uma cidadania livre – capaz de ligar as raízes antigas e a modernidade. Por isso, o ensaísta de Mitologia da Saudade salienta que a importância de Garrett e Herculano não se deverá a qualquer acomodação ou adaptação, mas à afirmação da sua visão da história e a uma exigência do seu individualismo ético. E nesse ponto, como o analista afirma, os dois mestres antecipam o que Antero de Quental dirá em As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. De facto, a geração do último quartel do século XIX vai completar a sementeira de ideias lançada pelos primeiros românticos, que sempre recusaram ser mestres-escola, antes preferindo ser desafiadores de ideias novas. Por isso, José-Augusto França analisou o Romantismo português como um fenómeno de conjunto, com múltiplas implicações, nunca confundível com uma ideologia circunstancial… E entende-se Herculano, tendo vivido o suficiente para poder ver a influência na geração que se lhe seguiu, dialogando com ela, sem cedências, com exata compreensão da força perene do individualismo ético, que os jovens de 1870 utilizariam para a afirmação de uma via democrática e social e de uma síntese entre a liberdade, as raízes históricas e a reorganização da sociedade.

 

A PAIXÃO DOS LIVROS…

Eduardo Lourenço como, antes dele António Sérgio, ressalvadas diferenças e confluências, insere-se nessa mesma genealogia. E não por acaso coloca Garrett e Herculano na fundação da sua estirpe intelectual. E podemos recordar nesta ligação o que o gramático latino relativamente obscuro, Terenciano, afirmou: “Habent sua fata libelli”, significando que os livros têm o seu próprio destino. Irene Vallejo, recentemente premiada com o Prémio Nacional de Ensaio de Espanha, graças ao livro O Infinito num Junco (Bertrand, 2020), interrogou a invenção dos livros no mundo antigo – lembrando que tudo começou na oralidade, desde a transmissão pelos Aedos das narrativas heroicas, como a Ilíada e a Odisseia… Não por acaso, faço a ligação entre as reflexões do nosso maior ensaísta e esta obra tão rica de pensamento. Longe de se tornarem esquecidos, o livro e a leitura assumem hoje uma importância indiscutível, pelo número de novos leitores e pela perceção de que, com vários suportes tecnológicos, a transmissão de narrativas tem a ver com a memória e a sua exigência como procura de sentido e como modo de superar o vazio de valores, de que fala Hermann Broch, num mundo de “sonâmbulos”. A pandemia, a distância, a prevenção da doença obrigam à compreensão de que temos de encontrar respostas para a indiferença, a separação e o medo.

A Biblioteca de Alexandria procurou reunir o conhecimento num mesmo lugar, acessível a quem pretendesse saber. A ideia original do Museu também é semelhante, pretendendo em homenagem às musas pôr em contacto o conhecimento e a experiência. Mas enquanto em Alexandria no século III a.C. tentava reunir-se a totalidade dos livros, o Imperado Qin Shi Huang Di ordenava que se queimassem todos os livros nos seus domínios. Como salientou Umberto Eco, o livro é uma tecnologia fundamental, mas não há um modelo de livro – já tivemos o rolo, o papiro, as placas de argila, os códices medievais até ao digital contemporâneo. Trata-se, no fundo, de preservar a palavra, E a evolução significa a procura incessante da melhor maneira de preservar as palavras. Estamos a falar de arquivos da memória e das palavras. E nesta extraordinária transmissão, temos além dos Aedos, as mulheres, as mães que desde a conceção da criança têm um papel decisivo na sua formação, através da oralidade.

 

A MEMÓRIA DE ASPÁSIA DE MILETO…

E não diz Irene Vallejo que Aspásia de Mileto foi quem escreveu muito provavelmente o mais célebre dos discursos de seu marido Péricles? E não podemos esquecer que o primeiro país que erradicou o analfabetismo foi a Noruega, por ter proibido o casamento de mulheres analfabetas, para que se não perdesse a leitura da Bíblia, necessária ao luteranismo, e a oralidade da comunicação familiar. Mas não estamos apenas no campo do sublime, uma vez que os livreiros foram ao longo dos tempos tantas vezes vítimas da sua própria coragem e do risco de vida, ao publicarem obras polémicas, ao abrigo da liberdade de pensamento e de expressão. Quantos não perderam a vida apenas para concretizarem a liberdade, a autonomia e a dignidade humana. Desde os versos de Homero à Biblioteca de Sarajevo, encontramos o essencial da história humana. A ficção e o ensaio andam paredes meias. Se Montaigne tem uma capacidade única de se dirigir ao leitor, de tu a tu, As Mil e Uma Noites são uma cadeia interminável de relatos que permitem entender a complexidade da vida e do género humano. Daí que O Infinito num Junco seja uma verdadeira arqueologia do saber e das ideias, cuja matéria-prima é feita de memória humana, em toda a sua complexidade. São as Humanidades que encontramos na sua vitalidade plena, quando vislumbramos a eternidade num fresco da Vila dos Papiros em Herculano.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CADA ROCA COM SEU FUSO...

 

REPÔR A VERDADE DE D. PEDRO…


Estabeleceu-se a certa altura o mito urbano a propósito da Coluna do Rossio, que honra a memória do Rei D. Pedro IV. Certamente um partidário da causa absolutista, derrotada em Lisboa no dia 24 de julho de 1833, data do desembarque das tropas liberais comandadas pelo Duque da Terceira, fez espalhar com insistência a notícia-falsa de que a figura que encima o monumento não seria a do Rei de Portugal, mas de Maximiliano, o malogrado imperador do México. Vejo, aliás, alguns pseudo-cicerones de Lisboa, montados ou não em tuk-tuks, cheios de ignorância e prosápia, a repetir essa patranha, que não tem ponta por onde se lhe pegue. De facto, tratou-se de uma falsidade maldosa. O problema, felizmente, há muito está esclarecido e o facto de estar patente no Museu da Cidade, no Palácio Pimenta, uma mostra evocativa dos 150 anos da inauguração do monumento, que se aconselha, permite recordar a verdade dos factos e calar de uma vez por todas essa brincadeira de mau gosto.


Recorde-se que o Imperador Maximiliano (1832-1867) era o irmão mais novo do Imperador Francisco I da Áustria, tendo apenas dois anos de idade quando o nosso D. Pedro morreu. Relacionou-se, sim, com D. Pedro II, Imperador do Brasil, tendo sido um fugaz Imperador do México, a convite de Napoleão III, na sequência da invasão francesa daquele território.  Viria, contudo, a ser fuzilado em 1867, cerca de três anos depois de ser proclamado Imperador, e temos memória visual desse funesto acontecimento num quadro célebre de Manet. Nunca chegou a consolidar a sua posição, pela fragilidade da investidura, não tolerada pelos patriotas mexicanos, e igualmente pelo desenvolvimento da Guerra da Secessão nos Estados Unidos, com vitória dos Unionistas-Republicanos e derrota dos Sulistas – Confederados…


A ideia de construir uma estátua em honra de D. Pedro seguiu-se imediatamente à morte do Rei em Queluz, no ano de 1834. A mostra agora levada a cabo, no ano do bicentenário da Revolução Liberal, está no piso superior do Palácio Pimenta e revisita a história de um monumento, que demorou mais de 35 anos a ser erigido, com “três cerimónias de lançamento de primeira pedra, três concursos públicos e duas demolições, várias comissões de gestão e outras tantas polémicas”. Para além de peças inéditas do acervo do Museu de Lisboa – caso dos testemunhos que foram colocados na base da estátua, descobertos em 2001 -, a mostra conta com obras procedentes do Museu Nacional dos Coches, da Biblioteca de Arte da Fundação de Calouste Gulbenkian, da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e do Arquivo Histórico do antigo Ministério das Obras Públicas.


A estátua de bronze é de Elias Robert, o pedestal foi executado por Germano José Salles, e o risco é do Arquiteto francês Jean Davioud. O monumento tem 27,5 metros de altura e é composto de envasamento, pedestal, coluna e estátua. O pedestal é de mármore de Montes Claros e a coluna de pedra lioz de Pêro Pinheiro, a estátua de bronze. Na base do pedestal, há quatro figuras femininas representando a Justiça, a Prudência, a Fortaleza e a Moderação, qualidades atribuídas ao Rei-Soldado, entrelaçadas por festões e os escudos das 16 principais cidades do país. A parte inferior da coluna tem quatro figuras da Fama em baixo-relevo. A coluna coríntia, canelada é encimada pela estátua que representa o Rei em uniforme de general, coberto com o manto da realeza, a cabeça coroada de louros, ostentando na mão direita a Carta Constitucional por ele outorgada em 1826.


A lenda falsa sobre a estátua assenta na ideia de que o monumento teria sido aproveitado a partir de um outro projeto concebido para o referido imperador Maximiliano do México. No entanto, porque o imperador foi fuzilado pouco antes de a estátua ter sido inaugurada, prontamente teria sido esta reaproveitada para o projeto do Rossio, o que explicaria as – supostas – semelhanças da estátua do rei português com a figura do imperador mexicano. No entanto, vários estudiosos, entre os quais o historiador José-Augusto França em A arte em Portugal no século XIX, demonstraram inequivocamente que a peça apresenta claros sinais de se tratar da figura nacional portuguesa: as armas nos botões do fardamento, o grande colar da Torre e Espada – Valor, Lealdade e Mérito (aliás, bem visível em imagens de pormenor que têm sido publicadas) além da Carta Constitucional. Recentes descobertas na base da estátua, em meados de 2001, durante obras de restauro, confirmam tratar-se da figura de D. Pedro IV: em especial, dois frascos de vinte centímetros cada, contendo documentos e uma fotografia revelada em albumina.


Neste momento, não há qualquer razão para haver dúvidas. D. Pedro é D. Pedro, o seu a seu dono. E o Rossio fica a merecer uma visita cuidada, quando o quarteirão da antiga Suíça se aprimora, o Teatro Nacional invoca a filha gloriosa do homenageado, trazendo-nos à memória Garrett, bem como Mestre Gil e a camoniana figura (fazendo esquecer a memória pesada dos Estaus). No outro quarteirão, à sombra das ruínas do Convento do Carmo, há uma grande diversidade de boas memórias: o Café Nicola do tão esquecido Bocage, a casa dos pais de Eça de Queiroz, onde o romancista ficava quando estava na capital e o velho Café Gelo, que invoca poetas e escritores (de Aquilino a Cesariny) que anunciaram a modernidade… A Sul, temos as embocaduras das Ruas Augusta e Áurea, o Arco da Rua dos Sapateiros e a tradicional Tendinha (fundada em 1818, onde se bebia o melhor vinho de Colares). Em toda a Praça, temos pavimento ondulado, em calçada à portuguesa, por iniciativa do General Eusébio Pinheiro Furtado…  E aqui fica a recordação, sem esquecer a nostalgia dos antigos e pioneiros anúncios luminosos da Mabor e do Brande Constantino (a fama que vem de longe) e na esquina para a Rua do Ouro o velho placard desaparecido do “Diário de Notícias” onde sabíamos as últimas novidades… Aqui me encontrei há muitos anos já com o estro do meu amigo Carlos Fradique Mendes (aqui invocado no Passeio Público por Bernardo Marques), passeando com o saudoso Doutor José Pedro Fernandes, que escreveu um romance sobre esse nosso encontro.

 


Agostinho de Morais

NOVA EVOCAÇÃO DE GARRETT HÁ 200 ANOS


Fazemos hoje nova breve referência ao espetáculo que, no então chamado Real Theatro de São Carlos, Almeida Garrett protagonizou e que é descrito com marcada expressão evocativa pelo Marquês da Fronteira e Alorna, de seu nome José Trazimundo Mascarenhas Barreto (1808-1881), cujas “Memórias” constituem um curiosíssimo relato da política e da cultura da época. Aliás, vale a pena evocar esta fase complexa da sociedade portuguesa, nas vastas e variadas implicações históricas, políticas e culturais que envolve.


Nas “Memórias”, reeditadas designadamente em 1986 pela INCM, o Marquês descreve uma algo inesperada intervenção do então jovem Garrett (1779-1854) no Teatro de São Carlos. Estava-se na ressaca da revolução de 1820. E justamente nesse contexto, o (ainda mais) jovem assiste a uma espetáculo do Teatro de São Carlos.


E descreve:
«Foi numa dessas noites de grande entusiasmo que, estando na plateia geral, vi pôr-se de pé sobre um dos bancos um jovem, elegante pelas suas maneiras, duma fisionomia simpática e toilette apurada, um pouco calvo apesar da pouca idade, o qual pediu silêncio aos que o rodeavam, disse “À Liberdade”. E recitou uma bela ode, que foi estrepitosamente aplaudida, perguntando-se com curiosidade, tanto nos camarotes como na plateia, quem era o jovem poeta: ele próprio satisfez a curiosidade, dizendo chamar-se Garrett».


E, no mesmo livro de Memórias, faz uma referência desenvolvida à estreia do “Catão” de Garrett, esta ocorrida no então também relevante Teatro do Bairro Alto, bem como a outras iniciativas de expressão teatral.  


E isto porque, diz-se no livro que «os três teatros que então havia trabalhavam todos. Junto à Igreja de São Roque, no Bairro Alto, havia um pequeno teatro que tinha sido ocupado por companhias de amadores e onde o meu amigo Almeida Garrett tinha feito representar pela primeira vez a sua tragédia “Catão”, numa referência que aqui reproduzimos pois documenta a situação cultural/teatral da época numa fase de progresso mas também de grande instabilidade».


Acrescente-se para terminar, que o Marquês e o irmão, desde muito jovens frequentavam os teatros de Lisboa, marcando assim a ligação à arte de espetáculo. De tal forma que a certa altura o Marquês decide-se a atuar como ator. Nesse sentido, participou em representações de peças sobretudo ligadas ao teatro de cordel.


Ele próprio organiza sessões e participa em elencos de amadores que escolhem, com sentido de espetáculo, textos na altura prestigiantes, se bem que hoje esquecidos: por exemplo, “Dr. Saraiva” de Manuel Rodrigues Maia ou “A Castanheira” de José Caetano de Figueiredo – nomes que hoje já pouco ou nada dizem!...


E podemos alargar as citações retiradas das “Memórias” do Marquês de Fronteira e Alorna José Mascarenhas Barreto. Até porque a certa altura organiza no Palácio de Benfica onde mora, espetáculos variados. E para terminar, diga-se que não hesita em escrever que «a companhia portuguesa da Rua dos Condes podia comparar-se com a melhores companhias dos teatros europeus» nada menos!... 

 

DUARTE IVO CRUZ 

Pág. 1/4