A FORÇA DO ATO CRIADOR
Arte como expressão integral do ser humano.
‘Eu amo o Longe, e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
(...)
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...’, José Régio, Cântico Negro, 1925
O filósofo Jiddu Krishnamurti (1895-1986) escreve em ‘Education and the Significance of Life’ (1981) que o ser humano está constantemente à procura de uma forma de escapar à sua verdade. E nessa vontade, em se esquecer a si próprio, confia a sua vida a misteriosas e prometedoras dependências (e a arte poderá ser uma delas).
‘To depend on (...) a poem (...) as a means of release from our worries and anxieties, though momentarily enriching, only creates further conflict and contradiction in our lives.’, Krishnamurti, 1981
Para Krishnamurti, a arte não pode ser glorificada como um meio de escape. Separada da vida, a arte não tem qualquer significado. E sempre que essa distância aumenta (entre a vida instintiva e o trabalho sobre a tela) a arte passa a ser uma mera expressão superficial do desejo de escapar à realidade daquilo que é. O preenchimento desse intervalo faz com que a vida fique integrada - e faz com que a arte passe então a ser uma expressão integral do ser humano.
A verdadeira arte existe para lá de qualquer vaidade ou ambição individual. Procurar por qualquer tipo de inspiração poderá criar uma espécie de ilusão. Segundo Krishnamurti, inspiração só acontece se existir abertura e recetividade, sem nenhuma forma de estímulo.
A sensibilidade ao belo e ao feio vem através do amor em relação ao mundo, às pessoas e às coisas. Sempre que existe um esvaziamento dos corações, momentos de conflito ou ilusão, o ser humano faz depender a sua vida de imensos objetos. E o espírito que só coleciona e adquire em resposta a um desejo, só anseia por segurança, conforto, isolamento e só cultiva insensibilidade. Na verdade, o ser humano só se sente completo apenas quando consegue olhar para todas as coisas de maneira completamente nova.
‘Since our hearts are withered and we have forgotten how to be kindly, how to look at the stars, at the trees, at the reflections on the water, we require the stimulation of pictures and jewels, of books and endless amusements.(...) As long as we are seeking sensation, the things that we call beautiful and ugly have but a very superficial significance.’, Krishnamurti, 1981
Para Krishnamurti, a criação só tem lugar se não existe qualquer tipo de conflito interior. O ser humano é constituído por diversas entidades opostas e desejos em conflito - é uma batalha constante entre o que lhe pertence, o que deseja, a imagem que tem de si próprio e o que não está ao seu alcance.
‘...as long as we give importance to the self, to the ‘me’ and the ‘mine’, there will be increasing conflict within ourselves and in the world.’, Krishnamurti, 1981
Só existe possibilidade para a criação, assim que se reconhece o vazio da vida dentro de cada um, e sempre que não há fuga para qualquer tipo de estímulo ou sensação exterior. Cultivar o que está fora, sem considerar o que está no interior, inevitavelmente trás destruição e sofrimento.
‘When one really wants to write a poem, one writes it, and if one has the technique, so much better; but why stress what is but a means of communication if one has nothing to say? When there is love in our hearts, we do not search for a way of putting words together.’, Krishnamurti, 1981
O criador não é um mero espectador, é um veículo. E tem de ser capaz de experienciar o sublime através dos seus sentidos. A sua experiência do mundo tem de ser sua e não pode ser filtrada através de um poema, de uma pintura, de uma música ou através da personalidade de um santo: ‘To sing we must have a song in our hearts; but having lost the song, we pursue the singer. Without an intermediary we feel lost; but we must be lost before we can discover anything.’, Krishnamurti, 1981
A descoberta, o surpreendimento e a atenção são o início de qualquer processo criativo e sem criatividade não existe paz e ânimo no mundo. A criatividade não se adquire através de um sistema. A criatividade surge quando há consciência constante dos caminhos da vida interior e dos seus obstáculos. A liberdade para criar vem com autoconhecimento. O ser humano é criativo sem ter um talento particular. É um estado natural em que os conflitos e as tristezas do eu estão ausentes. É um estado em que o ser não é apanhado nas exigências do desejo. É um estado que permite a concretização da verdade e a vitalidade do ser toma forma.
A verdade surge quando não há pensamento e o pensamento só pára quando o eu está ausente e se perde - quando o eu deixa de ficar preso na busca por ordem, comparação, justificação, padrão ou crítica.
Sem a ideia, sem o pensamento poderemos entrar diretamente em contacto com a música do mundo. O amor pelo belo pode então manifestar-se simplesmente através do simples movimento das nuvens.
‘We try to be sensitive to beauty while avoiding the ugly; but avoiding the ugly makes for insensitivity. If we would develop sensitivity in the young we ourselves must be sensitive to beauty and to ugliness and must take every opportunity to awaken in them the joy there is in scenes not only the beauty that men has created but also the beauty of nature.’, Krishnamurti, 1981
Ana Ruepp