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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

65. DA SOBREPOSIÇÃO DA OBRA DE ARTE AO SEU AUTOR


Qualquer obra de arte deve ser julgada por si, sem interferências do juízo (moral ou outro) que se tenha do seu autor, não a submetendo às consequências de um julgamento do respetivo artista ou intermediário, ou de quem a promove e divulga, não a colocando na dependência de códigos ao serviço de qualquer coisa, tipo regimes totalitários, expulsando, prendendo ou assassinando os seus autores, tidos como dissidentes, e destruindo ou queimando a sua obra.


Valendo por si, independentemente das opções e condutas do seu autor, quando a obra não se sobrepõe às contingências pessoais por que passou ou passa o seu autor, é medíocre, havendo que saber fazer a separação entre a obra em si ou ao serviço de qualquer coisa.


Acresce que as obras de arte não se afirmam, desvirtuam ou esgotam nos temas que representam, são sempre transcontextuais, transnacionais e transcontemporâneas, isentas de culpas, desmandos ou pecados humanos, apresentando-se perante nós num permanente e renovado renascer de desafio à inteligência, sensibilidade, sentido crítico e estético, perceção e compreensão de novos saberes.


Se Caravaggio foi um assassino, a sua obra deve ser destruída, proibida, queimada?


O futurismo italiano e o seu valor, atentas as simpatias pró-faschistas de muitos dos seus cultores e seguidores, deve ser erradicado da nossa memória, apagando-o da história?


O anti-semitismo de Wagner, justifica que se destrua ou queime a sua obra?


E quanto às acusações de anti-semitismo e de simpatias nazis de Céline?


E as acusações de violação contra Roman Polanski, entre tantos outros, e tantas figuras públicas, justificam que a sua carreira cinematográfica seja apagada, inviabilizando a compreensão da história do cinema?


Não é legítimo separar a obra do homem, do seu autor?


É sabido que o génio de alguém não o torna uma boa pessoa.


A arte está acima do autor, liberta-se dele, do seu criador.


Há quem não acredite que a obra de arte e o artista sejam separáveis, tendo tal dissociação como impossível, pelo que há quem defenda, por exemplo, que deve ser proibida a exibição e retrospetivas da obra de Polanski, nem ele ser premiado.


É falacioso estabelecer uma relação imediata e direta entre a obra e o autor, como o demonstra a vida e a obra de Fernando Pessoa, tendo todo o artista como um fingidor, por analogia com os poetas.

 

13.11.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício