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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO XI

   

    A palavra japonesa ukiyo designa originalmente o mundo passageiro, por oposição à substancial realidade que só o budismo revela. Voltarei a tal conceito, tentando esclarecê-lo melhor. Quando a esse vocábulo se junta o sufixo e, quer-se referir a pintura, gravura ou estampa, imagens representando esse mundo inconsistente, fugidio, flutuante... Ukiyo-e é assim, desde cerca do ano de 1680, essa representação dum universo de divertimento e prazer, por vezes acentuadamente erótico, que se foi vulgarizando até cerca de 1880 (ou ao início da era Meiji) sobretudo nas grandes cidades do Kansai (Kyoto e Osaka) e na de Edo, capital dos shogun Tokugawa, mais tarde imperial também com o nome de Tokyo (ou capital de leste). Foi, aliás, no distrito vermelho de Edo, Yoshiwara, que mais se desenvolveu a pintura e gravura de cortesãs, seus clientes, acompanhantes e servos.


   Tenho para mim que, em sentido lato, a descrição do universo ukiyo também pode ser literária, tal como a encontramos, entre outras, nas obras de Ihara Saikaku (1642-1693), de que, hoje, destaco Vida de uma Amiga da Volúpia, na bela tradução francesa de Georges Bonmarchand, publicada, com patrocínio da UNESCO, na coleção Connaissance de l´Orient da Gallimard (Paris, 1975).


   Saikaku representa bem a classe dos chonin, proprietários, comerciantes e especuladores que, aproveitando a paz e estabilidade política e social facultada, na sequência da guerras de reunificação do Japão feudal conduzidas por Nobunaga e Hideyoshi, pela instalação do governo dos shogun Tokugawa, promoveram o desenvolvimento duma economia monetária, se enriqueceram e constituíram a nova burguesia do  período Edo, ativa sobretudo nesta cidade e sede do governo shogunal e na de Osaka, fundada por Hideyoshi não longe de Kyoto em finais do século XVI. Mas o nosso escritor dedicou-se sobretudo às letras, não só como prosador ficcionista, mas realista na narrativa de hábitos e costumes, muitas vezes licenciosos, e crítico humanista e budista da imoralidade reinante, como adiante mostraremos pela transcrição de trechos da novela que hoje apresentamos. Na verdade, Saikaku, contemporâneo do apregoado Basho, foi famoso pelos seus haikai que, como já expliquei alhures em memórias minhas do Japão, foram a produção popular resultante da plebeização dos aristocráticos renga em renku, sobretudo pela introdução de elementos correntes da linguagem falada, alheios ao estilo clássico literário de origem chinesa.


   Cabe-me agora traduzir aqui um trecho da introdução que Bonmarchand escreveu para apresentar Vida de uma Amiga da Volúpia:


   Apesar do seu triunfo como "haikaista", em que talvez a qualidade nem sempre correspondesse à quantidade, Saikaku prosseguiu no seu caminho de prosador. Regozijemo-nos por isso, já que se não se tivesse feito novelista aos quarenta anos, quiçá o seu nome se perdesse entre a massa inúmera dos "haikaistas" que Basho (i654-1694), mestre no género, renovado e enaltecido por ele, deixou maioritariamente no esquecimento.


   Basho efetivamente transformou em arte comparável à do arcaico e aristocrático waka essa arte popular que é a do haikai. Conhecemos a sua estética, na esteira dos propósitos que trocou com os seus discípulos. Mas parece-nos injusto exagerar a importância do haikai da escola de Basho, ao ponto de deixarmos no esquecimento os seus precursores. Basho pusera-se inicialmente na mesma escola, a de Teimon, tal como o seu contemporâneo Saikaku. Desenvolveu os ensinamentos dela no sentido de um aperfeiçoamento conforme à sua natureza contemplativa. De modo contrário, Saikaku, espírito livre e revolucionário, com tendência a romper com as formas convencionais do passado, separou-se de Teimon, para adotar um género realista que conviesse inteiramente à sua época, género que Basho naturalmente acha ordinário e trivial. Era um aristocrata. Não era de Osaka. Saikaku era um homem do povo com as características dos chonin da sua cidade, cujos costumes foi penetrantemente observando. Interessa-se mais pelo homem do que pela natureza. 


   
Quem quis comparar a prosa de Saikaku à literatura libertina e libidinosa europeia do século XVIII, não se terá dado conta de que o escritor japonês do século XVI se aproxima mais do realismo e naturalismo do século XIX, dum Zola ou, em Portugal, do autor de O Barão de Lavos, Abel Botelho. Na verdade, ainda que a busca de prazer sexual seja, no Japão, comportamento considerado natural, sem sofrer qualquer ostracismo moral, ou quiçá em razão disso mesmo, a vanglória descritiva de proezas eróticas, estilo casanova ou marialva, não é propriamente objeto de especial complacência literária. Em boa literatura, mesmo a motivação erótica dos comportamentos é tratada sobretudo com subtileza e metáforas, como aliás soem usar as duas maiores escritoras nipónicas do século X, Murasaki (Os Contos de Genji) e Sei Shonagon (Notas de Cabeceira). Dito isto, é evidente que, tal como no resto do mundo, também no Japão existe pornografia. Mas a obra de Ihara Saikaku em análise, descritiva de amores venéreos em bairros e distritos "vermelhos", debruça-se sobretudo sobre a condição e a degradação da vida de uma cortesã e prostituta, cujo primeiro pecado, curiosamente, foi ter atraiçoado o idoso marido com um homem de inferior condição social... Tal apontamento ficcional serve afinal para levar a uma reflexão sobre a condição humana  -  que nem a nobreza do nascimento excecionaliza  -  os nossos atos e comportamentos, lembranças, remorsos e fantasmas. Para ilustrar o acima escrito, traduzo, da versão francesa de Bonmarchand, alguns trechos do último capítulo de Vida de uma Amiga da Volúpia, capítulo que Saikaku intitulou Quinhentos Rakan, cada um dos quais me recorda um amante. [O Rakan é um humano que chegou a Buda, e a seita Tendai ergueu alguns templos (que eu saiba, em Tokyo, Oita e Kyoto) chamados Daiun-ji que mostram representações de quinhentos Rakan. O templo referido no texto é o Daiun-ji de Iwakura, em Kyoto]:


   Nas montanhas, as árvores todas estavam entregues ao sono do Inverno: o crepúsculo de neve cobria as copas das cerejeiras. Mas esta estação também aguarda as auroras da Primavera. Com o passar dos anos, só os homens deixam de ter prazer. Para mim, muito especialmente, as lembranças do passado traziam-me vergonha. Convencida de que a única solução seria a de formular votos pela salvação da minha vida futura, regressei à capital. Tinha a louvável intenção de visitar, para meu arrependimento, o templo de Daiun-ji, semelhante à Terra Pura que teríamos diante dos olhos. Estávamos, precisamente, na altura das cerimónias pelo arrependimento dos pecados (Butsumyoe). Assim, ali invoquei também o nome de Buda. Ao descer do altar principal, vi à minha frente uma capela onde estavam expostas quinhentas estátuas de Rakan...   ... Ouvira dizer que, dado serem tantas, deveríamos encontrar entre elas algum rosto que lembrasse uma pessoa conhecida. Acreditando que assim fosse, fui olhando para elas com atenção e encontrei várias cópias vivas da fisionomia de homens com os quais partilhara o travesseiro nos tempos da minha mocidade... [A narradora enumera então algumas parecenças ou lembranças ocorridas]... Ao contemplar tranquilamente esses quinhentos budasnão achei nenhum cuja aparência não me recordasse alguém conhecidoPercorrendo em revista o que acontecera no decurso dos meus anos num mundo de deboche, ocorreu-me, por ter por lá passado, que, para uma mulher, nada é mais horrível do que ter tal ofício. Durante a vida encontrei mais de dez mil homens. Mas hoje só eu estava viva, coisa vergonhosa e miserável. Senti então o carro de fogo dos infernos a atravessar-me desatinadamente o peito: jorraram-me lágrimas como bolhas de água a ferver, fugiu-me o coração como num sonho e perdi os sentidos. Esquecendo-me de que estava num templo rolei pelo chão, esmagada. Aproximaram-se muitos bonzos que diziam «Eis o cair da tarde». Surpreendida pelo som do sino que o anunciava, voltei a mim; e foi então que me perguntaram com muito carinho: «Porque te lamentas, velhota? Estarás a chorar porque  um destes Rakan te lembra um filho ou um marido que já partiu deste mundo?» Tal pergunta encheu-me de fortíssima vergonha.


   
Na verdade, a protagonista e anónima narradora trazia o coração pesado pela memória dos muitos abortos que fizera. Quase a terminar a novela, Saikaku realça o tema do arrependimento que sara, e o da misericórdia que converte:


   Sabendo quão curta é a vida neste mundo, contei-vos uma história comprida demais e fútil. Mas também ela, arrependida confissão de pecados passados, me libertou da escuridão das paixões, tal como, de noite, um céu nublado retoma a limpidez ao luar. Não me interessava esconder-vos fosse o que fosse da vida de uma mulher que acabou sozinha e sem família. Revelei-vos a totalidade da minha pessoa, desde o desabrochar do lótus do meu coração até ter murchado. E mesmo que, através  desta narrativa dos frívolos deboches do meu passado, se turve a corrente, a flor de lótus à tona de água nunca será maculada.


   
Voltarei a falar de Saikaku e da sua obra, bem como de conceitos de permanência e contingência.

Camilo Martins de Oliveira