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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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NATAL: DEUS SEM MÁSCARA

 

1. Ia eu na rua e uma jovem interpelou-me: “Já não se lembra de mim? Até me baptizou...”. E eu: “Puxa um pouquinho a máscara”, e ela puxou. “Continuas linda, Susana!...”.


Se eu algum dia imaginei que havíamos todos de andar de máscara! Antes também havia muita gente mascarada, mas as máscaras eram outras... Agora, impomo-nos o uso da máscara a nós próprios, por causa de nós e dos outros: para nos protegermos a todos, ao mesmo tempo que nos desprotegemos, porque ficamos sem a presença dos outros. Como faz falta vermo-nos cara a cara, falar cara a cara, tocarmo-nos, sorrir, rir, colocar os sentidos todos alerta na presença viva dos outros. Passámos a vida a dizer às crianças: “Dá um beijo ao avô, um beijo à avó, um beijo à tia...”. Agora, de repente, é tudo ao contrário, como se os outros fossem inimigos, pois até viramos as costas... Apertávamos as mãos, porque apertar as mãos é um gesto de encontro na paz: as mãos livres de armas vão ao encontro do outro, sem medo. Abraçávamo-nos de alegria pelo reencontro ou chorando pelo luto ou antecipando a saudade pela despedida. Agora, não há proximidade, até nos mandam, e bem, manter a distância (e até se dizia: “a distância social”, mas eu espero que seja só a distância física, espero que a outra — a espiritual, a afectiva — se mantenha e aprofunde).


Foi precisa a pandemia para que se nos tornasse inválida a afirmação de Sartre: “O inferno são os outros”. Afinal, é o contrário: a falta dos outros é que é o inferno, a solidão é um inferno.


2. Não é só, mas também, pela ausência ou pela perda que tomamos verdadeira consciência do valor das coisas e das pessoas. A falta que nos fazem os outros! Só quando alguém se nos morre é que verdadeiramente nos apercebemos da importância e valor dessa pessoa na nossa vida. A falta que nos faz o Natal, o Natal que dizemos normal! Mas essa falta também pode e deve ser uma oportunidade para um Natal melhor, mais verdadeiro, mais autêntico, mais íntimo, mais solidário. Afinal, esfalfávamo-nos na correria ditatorial das compras e esquecíamo-nos do essencial!


E o que é o essencial? Talvez já tivéssemos esquecido, mas o Natal é, antes de mais, a celebração deste acontecimento determinante da História: o nascimento de Jesus, o nascimento do ser humano bom, verdadeiro. Seja como for, não há figura histórica mais estudada (ainda há dias o especialista em cristianismo primitivo, que é agnóstico, Antonio Piñero, lembrava que continuam a ser publicados anualmente uns mil novos livros sobre Jesus) nem mais amada.


O que há neste homem, nascido há mais de dois mil anos, para arrastar multidões e ser uma referência determinante para a Humanidade? Segundo o ateu Ernst Bloch, Jesus agiu como um homem “pura e simplesmente bom, algo que ainda não tinha acontecido”, e Umberto Eco, que se dizia agnóstico, escreveu que, se fosse um viajante proveniente de galáxias longínquas, ao encontrar-se frente a uma Humanidade que soube propor o modelo de Cristo, com o amor universal, o perdão dos inimigos, a vida oferecida em holocausto pela salvação dos outros, “consideraria esta espécie miserável e infame, que cometeu tantos horrores, redimida pelo simples facto de ter conseguido desejar e crer que tudo isto é a Verdade”. Eduardo Lourenço, recentemente falecido, disse: “Não há nada superior a Jesus”. Até Nietzsche reconheceu, no seu O Anticristo, que no fundo só houve um cristão, mas esse morreu na cruz, e acrescentou: “Só uma vida como a daquele que morreu na cruz é cristã”.


Que vida foi essa? Porque é que o mataram?


Foi morto como blasfemo. Ergueu-se contra o Templo e a religião oficial que, em vez de libertarem o Homem, o esmagavam. Levantou-se contra o Sábado. “O Sábado é para o Homem e não o Homem para o Sábado” constitui talvez a afirmação mais revolucionária da história da consciência humana, pois coloca como critério último dos mandamentos do próprio Deus a realização e o bem-estar do ser humano.  Não era um asceta, e foi apelidado de “comilão e beberrão”: a salvação e a alegria são desde já e aqui, para todos.


Foi morto como subversivo sócio-político. Os seres humanos têm todos igualdade radical na dignidade inviolável, porque divina: já não há judeu nem grego nem homem nem mulher nem branco nem negro nem adulto nem criança nem livre nem escravo nem religioso nem ateu. Rebeldemente livre, Jesus não prestou culto nem a César nem ao Dinheiro, e o Deus a quem tratava terna e filialmente por Pai (também pode ser tratado por Mãe) não quer sacrifícios, mas misericórdia, e não se adora nem em Jerusalém nem em Guerizim, mas em espírito e verdade. A sua Boa Nova é o Reino de Deus da filadélfia, um Reino de amigos e irmãos.


A história das revoluções que têm Jesus na sua base está ainda por escrever. A maior delas é a revolução da ideia de Deus. Quereríamos um Deus-Poder que justificasse o nosso poderio de mando e subordinação. Mas o Deus de Jesus não se confunde com o Poder da dominação, Ele é omnipotente, não no sentido de dominar, mas como Força infinita de criar e promover. Por isso, no Natal, não veio em poder e glória, mas humilde, revelou-se num rosto de criança, que chora,  que ri, que se pode tocar. Um Deus que não está longe, mas próximo dos homens e das mulheres, dos jovens e das crianças, um Deus bom, amigo, amável e misericordioso para todos.


Para os cristãos, a Transcendência divina tem um rosto reconhecível, sem máscara: o homem Jesus, confessado como o Cristo e Filho de Deus.


Bom Natal!

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 DEZ 2020