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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO XIII

 
  Desde que tenho o Notas de Cabeceira - de Sei Shonagon, dama da corte imperial do Japão em Heian, no século X/XI - como meu livro da cabeceira, que venho sonhando à noite no que poderia ser a minha vida, ou a de qualquer contemporâneo meu, num mundo tão distante do nosso coevo... Não apenas no tempo, mas no modo também ou, melhor dizendo, nos modos todos das pessoas e seus pensamentos e sentidos, da sua relação à natureza, do seu habitat, da sua organização social e seu convívio...


   Qual de nós, mais ou  menos familiarizado com o Japão hodierno, poderia de per si imaginar, sem ajuda de qualquer reportagem direta daquele tempo de antanho, que o próprio palácio imperial que, aliás, obedecia a regras de localização, desenho, função e arquitetura rigorosamente de acordo com o seu estatuto, tal como já concebido no Império do Meio (China) pela dinastia Tang, era uma construção, ainda frágil, de adobe, madeira e colmo, ou que os carros que transportavam a corte, e cujos toldos de cobertura eram engalanados em dias festivos, eram carroças puxadas por bois? E, todavia, eram luxuosos os vestidos postos, escrupulosos os cuidados com a beleza e arranjo dos corpos, e com o castigar da linguagem, sendo a própria comunicação interpessoal frequentemente feita pela troca de cartas que reproduziam poemas chineses clássicos ou os usavam como motes para novos e oportunos voos poéticos. Aliás, atrevo-me mesmo a afirmar que muitas das sessões de convívio cortesão eram exibições de desgarradas, isto é, de propostas e respostas poéticas, ao ponto de terem entrado no domínio popular, dando origem, pela introdução da linguagem corrente, aos haikai, poesia lúdica donde se destacaria, mais tarde e sob influência do budismo zen, a forma mais metafísica e meditativa do haiku. Pareceu-me oportuno inserir aqui um trecho dessas Notas de Cabeceira, em que Sei Shonagon que diz bem o que era então - e foi, durante séculos, mesmo noutras culturas, incluindo a nossa - a carta como elo de afetos pessoais:


   Apesar de uma carta nada ter de estranho, é certamente algo magnífico. Pensamos com ansiedade numa pessoa que está numa província distante, imaginando como estará, e eis que recebemos dela um bilhete. Ao lê-lo, sentimo-nos como se estivéssemos em sua presença. É maravilhoso!


   Quando expedimos uma carta a que confiamos os nossos pensamentos, sentimo-nos satisfeitos, mesmo que nos ocorra que ela possa não chegar ao seu destinatário. Por mim, ficaria de coração triste e sentir-me-ia oprimida se tais cartas não existissem!


Quando, em carta que queremos enviar a alguém, escrevemos pormenorizadamente tudo o que nos vai na cabeça, já é consolo, mesmo que seja incerta a chegada da missiva. Mas, por maioria de razão, quando recebemos uma resposta, a alegria que saboreamos parece capaz de nos prolongar a vida. É sem dúvida razoável acreditar que assim seja.


   Mas agora, parece-me mais interessante traduzir aqui, em português, a partir da versão francesa de Makura no Soshi (que as versões em língua inglesa dizem Pillow Talk, literalmente mais próximo do título japonês, mas, finalmente, menos autêntico, penso eu, do que Notes de Chevet ou Notas de Cabeceira) um trecho elucidativo do divertimento cortesão. O texto francês é de André Beaujard, para a Connaissance de l´Orient, Gallimard/Unesco, 1966.


   ...Uma dessas senhoras, chamada Kohyoe, cujo cordão vermelho se tinha desatado, declarou que era preciso reatá-lo. O Capitão da guarda imperial Sanekata chegou-se a ela, e enquanto voltava a atar o cordão pôs-se a dizer, com alusiva expressão facial:

 

          «A água do poço do monte
          que tiramos pela corda
          está gelada!
          {Que gelo
          se terá derretido?}
          {Que cordão 
          se terá desatado?}


   A jovem senhora nem sequer compôs uma poesia para lhe responder: receava certamente falar diante de tanta gente. As damas mais idosas que se encontravam perto dela em nada a ajudavam e nenhuma replicava, fosse de que modo fosse. Um funcionário da Casa da Imperatriz estendia a orelha, à escuta. Mas o tempo passava e pareceu-lhe ridículo aquele silêncio. Por isso entrou na sala, por lado diferente daquele em que estava Sanekata. Aproximou-se das senhoras e perguntou-lhes, num sussurro, porque se quedavam assim, sem dizerem uma palavra. Cerca de quatro pessoas me separavam de Kohyoe: mesmo que tivesse composto lindos versos, ser-me-ia difícil recitá-los. Além disso, sentia-me perturbada ao pensar que se tratava de responder a uma poesia de rara beleza, devida a um homem de reconhecido talento. E isso intimidava-me. 


  Entretanto, era divertido ver o funcionário da Casa da Imperatriz a andar de um lado para o outro, aos piparotes às senhoras e perguntando-lhes: «Será possível vermos tanta hesitação da parte de pessoas habituadas a compor versos? Pensem que deve ser aborrecido para vós ficarem caladas, e recitem um poema, ainda que ele não seja soberbo!» Mandei então o seguinte poema a Sanekata, através de uma dama chamada Ben no Omoto:

 

           «Que gelo tão fino!
          {Como também ele é}
          {Como também é o nó do cordão}
          tão frágil como a espuma:
          {derrete-se}
          {desata-se}
          {ao menor raio de sol que nos obrigue a cobrir a cabeça}
          {como a guirlanda de  licopódios que pomos na cabeça}


   Ben no Omoto estava tão atrapalhada que quase não conseguia falar.  «O quê? O quê?» perguntava Sanekata, estendendo a orelha... Mas ela ia gaguejando e mesmo quando, com muito esforço, julgava falar bem, não conseguia dizer duas palavras seguidas. Contrariamente ao que se possa pensar, tudo aquilo, ao permitir-me esconder o meu próprio embaraço, afinal, era-me muito agradável.


   
Os versos que se encontram entre { }, são paráfrases um do outro, isto é, duas traduções possíveis do original. No fundo, uma versão explica um conteúdo possível da outra: não há contradição, mas apenas alternativa. Lembro-me de que, pouco depois de chegar ao Japão, me aconteceu várias vezes deparar com traduções diferentes do mesmo texto japonês, feita cada uma por funcionário diferente... Por alguma razão existem livros que se debruçam sobre a comparação da nossa lógica dita grega ou aristotélica com a japonesa, ou oriental, dita lemme. Augustin Berque, no seu prefácio à sua tradução de Logos e Lemme (CNRS Editions, 1974) do filósofo japonês Yamauchi Tokuryu, escreve: Segundo Yamauchi, o pensamento ocidental dependeria de uma lógica do Logos, estruturada em redor dos princípios de identidade, de contradição e do terceiro excluído..  ... O pensamento oriental, por seu lado, dependeria do pensamento do Lemme, compreendido como modo de apreensão intuitivo, é entendido como a proposição secundária de um conjunto maior...


   Voltarei a este e outros conceitos, bem como a uma melhor atenção aos costumes e à organização política e desigualdade social da era de Heian.

 

Camilo Martins de Oliveira