CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XIV
Minha Princesa de mim:
Acho interessante a perspectiva de um certo olhar de Augustin Berque (cf. Le sauvage et l'artifice: les Japonais devant la nature, Gallimard, Paris, 1986), ao colocar a sociedade, para efeitos de análise, como distinta do seu ambiente. Com este ela manterá certas relações: ecológicas, técnicas, estéticas, axiológicas e conceptuais, políticas. E sublinha que o conjunto dessas relações é unitário:
A sociedade é una no seu ambiente que é um (e isto tantas vezes quantas as sociedades que houver...). As relações supra mencionadas só devem ser diferenciadas para propósitos de exposição, já que, na realidade, cada uma contém em potência todas as outras, cada uma está presente em qualquer das outras.
Gosto desta achega, porque nos aproxima do meu próprio conceito de cultura, sobre o qual já muitas vezes escrevi alhures.
Na verdade, Augustin Berque chamará cultura precisamente ao comando dessa unidade, do ponto de vista da sociedade:
A cultura é, com efeito, o que confere alguma coerência e orientação ao complexo conjunto das dimensões da vida social, em função dela própria, enquanto distinta da vida biológica. Dito mais sobriamente: cultura é o que, pelo e para o homem, dá um sentido ao mundo - o homem sendo aqui considerado no seu enquadramento natural, isto é, em sociedade.
Noutro trecho do mesmo livro (Habitar em pureza), Berque, depois de recordar Hölderlin (dichterisch wohnt der Mensch: o homem habita poeticamente...) desenvolve:
Mas o homem também habita, e de modo mais manifesto, de acordo com certos valores. Na casa japonesa, a elevação do soalho - de altura variável, reduzida, por exemplo, a poucos centímetros nos apartamentos modernos, mas sempre presente - ligado à obrigação de se descalçar e tomar um banho quente quando se regressa do trabalho - define o interior por oposição ao exterior, sob o signo evidente da pureza. Na verdade, a cultura japonesa parece querer associar o tema do habitar ao da pureza.
Aliás, o vestíbulo (geikan), pequeno que seja, que marca a entrada de qualquer casa japonesa - e onde, por exemplo, nos descalçamos - está sempre ao nível do soto (o exterior), um degrau abaixo do uchi (o interior), a que acedemos subindo, para calçar os chinelos preparados para nós. Quem já habitou, ou apenas visitou, uma casa japonesa, terá notado como o chão que nela pisa está coberto por esteiras (tatami ) de palha de arroz, onde o nosso andar desliza silencioso. Mas também existem casas de tipo ocidental - algumas habitadas mesmo só por japoneses legítimos - em nada diferentes das que conhecemos e onde as regras atrás referidas até podem não ser aplicadas, sem que haja qualquer escândalo ou espanto por isso...
Aliás, se estivermos bem atentos aos comportamentos vários dos que nos rodeiam, verificaremos que, com maiores ou menores diferenças e matizes, cada um de nós tem a sua própria cultura, já que cada sistema de referências axiológicas e existenciais varia do do vizinho, pelo menos na respectiva intensidade de consciência. Como, também, a mesma pessoa terá reacções ou respostas diferentes perante situações semelhantes, de acordo com a variedade das circunstâncias. O ser humano é - sabe-lo bem, minha Princesa de mim - um peregrino imprevisível. Numa conferência proferida perante japoneses, Claude Lévi-Strauss afirmava:
No Ocidente, sucedem-se os estilos de vida, os modos de produção. Mas dir-se-ia que, no Japão, eles coexistem. E serão eles, em si mesmos, radicalmente diferentes dos nossos? Quando leio os vossos autores clássicos, sinto mais o desfasamento temporal do que qualquer estranheza. O Genji monogatari prefigura um género literário que a França só conhecerá sete séculos mais tarde com a obra romanesca de Jean-Jacques Rousseau: uma intriga lenta, encabrestada, toda matizada, em que evoluem personagens cujas motivações profundas nos são, como muito nas nossas vidas, misteriosas. Narrativa cheia de observações psicológicas subtis, e mergulhada num lirismo melancólico, em que o sentimento da natureza tem um papel tão importante como a impermanência das coisas e a imprevisibilidade dos seres...
Ise monogatari, ou Os Contos de Ise, foram escritos, quiçá, por volta do ano de 951... Digamos que são muito antigos, mas, pese embora estarem redigidos numa língua ainda muito tosca e de nem sempre fácil transcrição para japonês moderno, têm hoje lugar em qualquer compêndio ou colectânea de literatura, ou história da literatura japonesa. Traduzo, da versão francesa de G. Renondeau (Gallimard / UNESCO, Paris, 1969), um conto - que, como todos os outros se revela em tanka, poemas de cinco versos e trinta e uma sílabas - bem como as pertinentes notas explicativas:
Uma vez, um homem que estava em Musashi escreveu a uma senhora que estava na capital: «Se falar, tenho vergonha; se não falar, fico com pena.» Como remetente, no lugar da sua própria morada, escreveu: «Dos meus estribos de Musashi». E não voltou a dar notícias. Da capital, a dama escreveu:
Tal como nos estribos de Musashi,
Bem presos às suas correias,
confiamos,
Assim nos estribos de Musashi
Me apoio, apesar de tudo, apaixonada,
E tenho confiança em ti.
Sofro por não te inquietares comigo, como sofro
Quando te inquietas, é abominável.
Ao ler esta carta, ele teve uma sensação difícil de suportar e disse:
Se perguntar por ti, admoestas-me,
Se não perguntar, odeias-me.
Em tal circunstância, que homem não morreria?
Musashi era uma província do nordeste do Japão, longe de Heian (Kyoto), famosa pela artesania de estribos de tipo coreano. (Lembra-te, Princesa, de que estavam no século X...) Mais concretamente, explica Renondeau:
Ele tem vergonha porque começou uma relação com outra mulher nessa região distante. Fica com pena porque lhe falta franqueza para com a mulher que ficou na capital.
O autor introduz muitos sentidos que obrigam a justapor duas traduções dos três primeiros versos. A expressão «estribos de Musashi (Musashi abumi) é estereotipada e associa-se a sasuga (correia / apesar de tudo) e a kakeru (estar suspenso / estar aborrecido). Os japoneses sempre gostaram destas expressões ambíguas, que despertam vários sentidos...
A questão da ambiguidade da língua japonesa, curiosamente, nada, ou muito pouco, tem a ver com o entendimento de um grupo para a acção. Já te falei várias vezes, Princesa, no nemawashi, esse «partir pedra» que, obrigatoriamente, precede sempre o início de qualquer trabalho em equipa: remói-se e volta a remoer-se o tema, a razão de ser e o projecto, até todos ficarem bem cientes de que falam do mesmo. Simplificando, é assim.
Mas, por outro lado, conserva-se e estima-se o jogo de subentendidos que sustenta a linguagem poética e humorística. A cultura é como o próprio ser humano: está sempre soto (fora) e uchi (dentro). Recordando Ortega e Gasset, repito, que sou eu e a minha circunstância, e não esqueço que sou um trânsfuga da natureza.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira