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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

Da grande experiência fará sempre parte o imenso espanto com a possibilidade da existência.

Diria que neste encontro, o segredo conjunto da vida e da poesia, desenrolam-se, compensando a segunda muitos dos espaços em que a primeira se confina, reconhecendo apenas a marca do fim, enquanto a segunda, deitando mão à condenação, vive livre a ilusão da raiz de todos os amanhãs.

E não há paradoxo nesta realidade, antes constitui ela, um dos marcos de simultânea essencialidade das coisas na sua acontecimentalidade.

A arquitetura que integra a grande edificação da existência e nela da experiência, emanará sempre das íntimas contradições do que se vive, afinal, mundo exposto a todos e que a todos pertence.

Os momentos dominantes ou aqueles que mais se consolidam à nossa pele, seguramente se prendem com os nossos movimentos prisioneiros que nos aportam uma visão do ser que aceita mundo molemente seco, infecundo mesmo, e no qual o abominável vazio é o que foi e o que no dia-a-dia já era.

A presença da poesia ciente de uma existência condenada no próprio instante da vida tem capacidade de expor, o quanto ilusória é a visão convencional de uma diferença, e sem que negue que pode não haver ninguém exterior ao poema, afirmará então que a verdade pode estar muito, muito além do sentimento, e nós, ainda nós no seu interior.

Da grande experiência fará sempre parte o imenso espanto com a possibilidade da existência, dissemos.

Porque não correr o risco de assumir o quanto o abstrato é concreto, o quanto a inconcretizável esperança pode não ser inútil, bastando pensar que antes das separações tudo esteve unido.

 

Teresa Bracinha Vieira

O PAPA FRANCISCO E O DESPORTO. 2

 

O Papa Francisco é popular, também porque se assume como vindo do povo. Ele sabe da vida. Os pais eram imigrantes italianos na Argentina. Para pagar os estudos, trabalhou como guarda-nocturno de bares. Exerceu como técnico químico, pois os primeiros estudos foram de Química. Desde miúdo jogou à bola e afeiçoou-se ao desporto. E aí está agora com a "encíclica laica" - "Lo sport secondo Papa Francisco", in: La Gazzetta dello Sport, 2 de Janeiro, 2021 - sobre o desporto e o seu significado na e para a vida. Não é visível que o desporto arrasta multidões e que a dimensão lúdica é constitutiva do ser humano?


O desporto pode e deve ser uma grande escola de virtudes. Mais: a vida é um grande jogo, é mesmo o jogo decisivo, pois nele decide-se a própria vida. O jogo da vida está presente em todos os jogos, pois o que em todos os jogos se joga, também nos jogos económicos e políticos, é a vida. Quem perde e quem ganha? Quais são as regras e os critérios para este jogo? Quem é o árbitro definitivo que vai julgar a vida de cada um, julgar as histórias e a História?


1 A bola de trapos e o guarda-redes. 
Francisco recorda o seu tempo de miúdo e a alegria com que ia com a família ao "Gasómetro", o estádio do San Lorenzo, de que ainda continua adepto e fã. Lembra-se de modo especial do campeonato de 1946, quando o seu San Lorenzo ganhou. "Recordo os dias que passei a ver os futebolistas a jogar e a felicidade nos nossos rostos, a adrenalina no nosso sangue. E tenho outra recordação, a da bola de trapos: éramos pobres, mas ela bastava para nos divertirmos e quase fazer milagres jogando na pequena praça perto de casa. Em miúdo gostava do futebol, mas eu não era dos melhores, pelo contrário, chamavam-me 'perneta'. Por isso, punham-me sempre na baliza. Mas ser guarda-redes foi para mim uma escola de vida. O guarda-redes tem de estar pronto para responder a perigos que podem vir de todos os lados. Também joguei basquete, o que me deu prazer também."


2
 Diego Maradona. Diz Francisco: "Encontrei-o por ocasião de um jogo a favor da Paz em 2014. Recordo com prazer tudo o que fez pela Scholas Ocurrentes, a fundação que se ocupa dos necessitados em todo o mundo. No campo, era um poeta, um grande poeta que deu alegrias a milhões de pessoas, tanto na Argentina como em Nápoles. Também era um homem muito frágil. Tenho uma recordação pessoal do Campeonato do Mundo de 1986, que a Argentina ganhou graças a Maradona. Estava em Frankfurt a estudar, só soube da vitória contra a Alemanha no dia seguinte. Recordo isso como a vitória da solidão, pois era o único argentino e não tinha ninguém com quem celebrar a alegria da vitória: a solidão faz que te sintas realmente só, porque o que torna bela a alegria é poder partilhá-la."


Permita-se-me que lembre o que aqui escrevi recentemente sobre Maradona. Um ano antes de morrer, confessou que "não tinha sido exemplo para ninguém", voltou à Igreja, pediu paz para o tempo de vida que Deus ainda lhe concedesse.


3 O desporto e a festa.
 O desporto é também festa e celebração, uma espécie de liturgia, de pertença, observou o jornalista. "Sim, o desporto é tudo isso: esforço, motivação, assimilação das regras. E divertimento: penso nas coreografias nos estádios de futebol, nas bandeiras que se agitam, nas trombetas, nos foguetes, nos tambores: é como se tudo desaparecesse e o mundo ficasse suspenso naquele instante. Quando é bem vivido, o desporto é uma celebração: ali, é o encontro, a gente alegra-se, chora, sente 'pertencer' a uma equipa. 'Pertencer' é admitir que sozinhos não vivemos bem, pertencer é exultar, festejar...". O ser humano é um ser festivo.


4 Ganhar e perder. 
Da dinâmica desportiva fazem parte a vitória e a derrota. "Ganhar e perder são dois verbos que parecem opostos: todos gostam de ganhar, ninguém gosta de perder. A vitória contém uma emoção que é difícil de descrever, mas a derrota também tem qualquer coisa de maravilhoso. Para os que estão habituados a ganhar, é forte a tentação de se sentir invencível: a vitória pode por vezes tornar-te arrogante e levar-te a pensar que já chegaste. Pelo contrário, a derrota favorece a meditação: leva-nos a perguntar porque é que perdemos, fazemos um exame de consciência, analisamos o trabalho realizado. Por isso, de certas derrotas nascem grandes vitórias, porque, uma vez identificado o erro, acende-se a sede de redenção. Eu diria que os que ganham não sabem o que estão a perder. Não é só um jogo de palavras. Perguntem aos pobres."


5 Não desistir. 
"A tua desistência é o sonho do teu adversário: desistir é entregar-lhe a vitória. É sempre um risco: '"E se tivesse resistido mais uns instantes?!' Também é verdade que há dias em que é melhor continuar a lutar e outros nos quais é sábio deixar perder. A vida assemelha-se a uma guerra: pode-se perder uma batalha, mas a guerra, não. Um homem não morre quando é derrotado: morre quando desiste, quando deixa de combater."


6
 Exercícios espirituais. Há relação entre os Exercícios Espirituais e o treino desportivo? "Quando Santo Inácio escreveu os Exercícios, fê-lo pensando na sua história passada de soldado, feita de formação, exercícios, treinos. Intuiu que o espírito, como o corpo, deve ser treinado. Mais: exercitar-se requer disciplina, os exercícios são bons mestres. Exercitar-se para a bondade, para a beleza, para a verdade: ocasiões nas quais a pessoa pode descobrir dentro de si recursos inesperados. Que, depois, utiliza."

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 16 JAN 2021

CADA ROCA COM SEU FUSO…


UMA CAPA MILIONÁRIA… 


Teve lugar há poucos dias um leilão histórico, no qual foi vendido por 3,2 milhões de Euros o primeiro original da capa do “Lotus Azul” da autoria de Hergé. Apesar da polémica sobre a proveniência da ilustração, o valor atingido bateu todos os records em relação à Banda Desenhada. A editora Casterman que colocou o desenho em leilão com uma base de licitação entre 2,2 e 2,8 milhões de euros, viu ultrapassadas as melhores expectativas em cerca de um milhão de Euros, o que surpreendeu todos os especialistas. Fica, porém, demonstrada a celebridade inigualável de Hergé, referência da BD e também da Arte Pop (ao lado de Andy Warhol e Roy Lichtenstein. A história continua rodeada de mistério, uma vez que há quem duvide que aquilo que foi contado corresponda exatamente à verdade. No entanto, o que importa é que, mesmo sabendo das dúvidas, houve quem se dispusesse a largar os cordões à bolsa num valor inimaginável – digno do milionário Carreidas. E talvez a polémica tenha contribuído para animar este leilão histórico. Sobre as razões que levaram a Casterman a vender este pequeno tesouro também se suscitou muita especulação – muitos disseram que tal se deveria a dificuldades financeiras da casa editora. Recorde-se que o anterior record do preço atingido por uma prancha de BD cabia também a Tintin com 2,6 milhões de euros para os originais de umas páginas de guarda para as publicações da casa de Tournai. Na versão oficial, o editor teria considerado que esta versão da capa seria de muito cara execução, pela grande superfície de negro exigida na quadricromia. Por isso, Hergé teria oferecido a versão não aceite a Jean-Paul Casterman, filho do editor, que a teria guardado religiosamente dobrada (como se nota na imagem) durante cerca de oitenta anos… Neste momento, não nos importará entrar nesta discussão – sobre se foi ou não uma dádiva de Hergé… O importante é dar nota do valor extraordinário atingido no leilão.


Este acontecimento, coincide com o anúncio pela Fundação Gulbenkian da grande exposição antológica que será inaugurada no Outono deste ano e que trará a Lisboa os mais importantes originais de Hergé…


Também hoje assinalamos os oitenta anos do encontro do Capitão Haddock com Tintin, em 9 de janeiro de 1941, no “Le Crabe aux Pinces d’Or” (O Caranguejo das Tenazes de Ouro). Para o efeito reproduzimos o desenho de Plantu, publicado na primeira página do circunspecto “Le Monde”. É caso para dizer “tonerre de Brest”, “Mille Miliards de Mille Sabords”, “Sacré de cercopithèque…”. Os tintinófilos estão todos de parabéns, uma vez que este companheiro de Tintin, que ele trouxe ao caminho da virtude e se tornou amigo inseparável é uma referência essencial. Plantu invoca a cena do esparadrapo em “Tintin au Tibet”, transformando-o na representação do terrível vírus Convid-19, de que nunca mais nos vemos livres.


Se dúvidas houvesse sobre o sucesso que se anuncia para a grande exposição de Hergé em Lisboa, parece que todos temos de reservar o nosso tempo, o nosso entusiasmo e a nossa curiosidade para a grande mostra anunciada, com mil milhares de milhões de surpresas…

 

Agostinho de Morais

A VIDA DOS LIVROS

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   De 18 a 24 de janeiro de 2021

 

“Um Homem na Cidade” (1977) resultou de um desafio de José Carlos Ary dos Santos a Carlos do Carmo, ao encontro de compositores como José Luís Tinoco, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e António Vitorino d’Almeida.

 

Carlos do Carmo por Júlio Pomar.jpg

 

AMAR A LIBERDADE
“Eu sou o homem da cidade / que manhã cedo acorda e canta, / e, por amar a liberdade, / com a cidade se levanta”. Tratava-se de assumir um modo renovado de ligar as raízes culturais da música portuguesa e as novas tendências cosmopolitas das artes, num tom popular, mas exigente. Era a cultura portuguesa que se projetava para além dos limites da inércia ou da continuidade. Afinal, ele era o filho de Lucília do Carmo, nome grande do Fado, e sucedera a seu pai, Alfredo de Almeida, desaparecido precocemente, ao timão de um dos lugares sagrados de Lisboa, “O Faia”. Sabia bem que só poderia singrar no meio artístico se representasse uma diferença substancial. Conseguiu-o até porque conhecia como ninguém as virtudes da cultura tradicional e a necessidade desta ganhar asas, para poder alcançar direitos de modernidade. Naturalmente, houve quem não entendesse, quem julgasse que havia uma espécie de desrespeito pela tradição. Mas o tempo venceu tudo. Thilo Krassmann ajudava na musica, Ary dos Santos entusiasmava-se na lógica da intervenção, contudo Carlos do Carmo compreendia bem que não poderia fazer um disco datado, mesmo que popular. Percebia o impulso, mas sabia que o julgamento do tempo iria ser inexorável – e isso seria muito mais importante dos que as incompreensões do curto prazo. E Ary dizia: “o senhor está muito exigente e até um bocadinho reacionário”. Ambos teriam as suas razões, mas no domínio artístico Carlos do Carmo tinha a razão essencial. E se dúvidas houvesse, bastaria ver como o tempo não deixou que o talento ficasse afetado pela moda passageira. E ambos ganharam, o poeta e o intérprete. O génio é, afinal, o que pode perdurar. E entende-se bem como o jovem que partiu para a Suíça em busca de uma aprendizagem de horizontes largos, pôde encontrar a qualidade dos melhores artistas do seu tempo.

 

CULTO E COSMOPOLITA
Era um português culto que gostava de ouvir Sinatra e Tony Bennet e que aprendeu com eles a conversar com o público e a estar em cima de um palco, a renovar a linguagem da representação. Como ensinaram os maiores clássicos, havia que saber aliar a arte, a palavra e a expressão dramática, com verdade e inovação. Sem a tentação de repetir ou de imitar, usando a língua como modo de nos entendermos melhor. “Cantar é um ato de prazer, mas sobretudo no palco, que é um constante jogo de sedução, uma troca indescritível de sentimentos e emoções”. Ouvindo coisas muito boas, aprendendo com os melhores, Carlos do Carmo sabia que fazendo mais do mesmo não ajudaria ninguém – “ouvi coisas tão boas, tão boas, que sou muito exigente em relação ao que aparece”… Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi, Sinatra, Brel, Elis Regina e a sombra eterna da Mãe guiaram os passos do artista. Era daqueles para quem apenas havia boa e má música. “O fado tradicional merece-me um profundo respeito. (…) Em cada dez composições do Alfredo Marceneiro nove são muito, muito boas…” (Notícias Magazine, 3.11.2019). Mas não era o fado triste que lhe interessava. Conhecia bem as primeiras origens da arte. Por isso, quando Carlos Saura se propôs fazer o extraordinário filme “Fados”, houve que reinventar a dimensão do fado dançado, como manifestação artística e não como reconstituição historiográfica.

No fundo o Fado como realidade viva tem de se renovar permanentemente. Só assim pode ser fiel aos melhores de cada tempo: Armandinho, Marceneiro, Maria Teresa de Noronha ou Carlos Ramos… A genial Amália tornou-se parte de outra galáxia. “As bases musicais do fado são fado menor, que é o fado triste, o fado mouraria ou fado maior ou fado corrido, fado que é dançável. Temos três frentes. Porquê cantar sempre o fado menor?”. Mas eis que sempre ensinou a recusar a facilidade – “o fado precisa de ser apreendido, respirado, de maneira a provocar reflexão. E que seja para quem o ouve um banho de afetividade”. Homem de cultura, leitor por prazer, muito cuidadoso com a palavra e com a dicção (as palavras deveriam ser ditas e compreendidas), Carlos do Carmo escolheu quem gostava, e eram os melhores, além de José Carlos Ary dos Santos, José Luís Tinoco, Manuel Alegre ou Alexandre O’Neill: António Lobo Antunes (Canção da Tristeza Alegre), José Saramago (Aprendamos o rito), Vasco Graça Moura (Nasceu assim cresceu assim), Manuela de Freitas (Fado Penélope), Nuno Júdice (Lisboa Oxalá), Maria do Rosário Pedreira (Pontas Soltas; Vem, não te atrases), Fernando Pinto do Amaral (Fado da Saudade), Sophia de Mello Breyner, Hélia Correia, Herberto Helder, José Manuel Mendes, Jorge Palma e Júlio Pomar…

 

CIDADANIA CULTURAL
Foi com especial orgulho que, como presidente do júri do Prémio Vasco Graça Moura da cidadania cultural, tive o gosto de comunicar de viva voz a Carlos do Carmo que o galardão lhe tinha sido atribuído. E tenho na memória a sua reação de autêntica afetuosidade. E senti a alegria partilhada de Judite. Como afirmou o júri: “Os prémios nacionais e internacionais que obteve pela qualidade das suas edições discográficas, onde surge como um dos grandes intérpretes do fado que soube renovar, dão conta de uma das mais exemplares carreiras do panorama artístico português. Desde cedo que a sua voz soube quebrar fronteiras, atravessar gerações, tornando o fado uma interpretação artística de expressão universal. Essa expressão universal foi determinante para a candidatura do Fado a património imaterial da humanidade da UNESCO, de que Carlos do Carmo foi um dos embaixadores”. Senti, de facto, genuína satisfação da sua parte, que selou profundamente a minha amizade e admiração. Foi um ato de inteira justiça e não esqueço a referência sentida que fez à memória de Vasco, exemplo para todos. Não falámos apenas do poeta, que Carlos do Carmo cantou, mas da importância essencial da cultura como fator de enriquecimento da sociedade, de dignidade humana e de emancipação cívica. Tradição e modernidade, compreensão das raízes e audácia modernizadora, liberdade e responsabilidade, igualdade e diferença, qualidade e exigência – eis o que ligava profundamente Vasco Graça Moura e Carlos do Carmo. Num tempo em que assinalamos o centenário de Amália, em que as Artes, a Poesia e o Sentimento se têm associado no mundo largo das culturas de língua portuguesa (lembrando o Cante alentejano e a Morna cabo-verdiana – e não esquecendo que há pouco nos deixou a extraordinária artista e pedagoga, Celina Pereira), Carlos do Carmo é um símbolo que reconhecemos e que não deixaremos de lembrar sempre.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

EM REBUSCA DO JAPÃO XVI

Kenroku-en Garden em Kanazawa.jpg

 

    Mudou certamente, quiçá mais do que os fugidios tempos, o modo em que se dizem os pensamentos e o seu sentir. Mas, do século X de Sei Shonagon ao XIV de Urabe Kenko, através de tantas mudanças, manteve-se o apego nipónico à natureza e seus sinais, o gosto literário das lides amorosas, e o seu culto pela mulher enquanto adorno, ou beleza, ou sedução, tal como a tentação subtil da fuga para a solidão eremítica, em busca do possível buda, mesmo que as orações e purificações rituais se pudessem fazer em templos shintoístas. 

   É bom fazer-se um retiro secreto em qualquer templo budista ou num santuário shinto... Retirar-me num templo perdido nas montanhas e servir Buda. Acabam-se os aborrecimentos e as próprias máculas do coração. Sinto-me purificado...

   Mas, como subtilmente observa Charles Grosbois, seu tradutor, Kenko não condena a paixão, «sal da vida». Descreve complacentemente os arroubos do amor, «o amante molhado de orvalho e de geada, perdido, caminhando sem destino»... Reprova os desejos sensuais, mas diverte-se com a anedota do mágico que perde os seus poderes só por vislumbrar, entre as nuvens, as belas pernas brancas de uma lavadeira... 

   A beleza feminina é apreciada, e o monge Kenko fala das mulheres sem embaraço, como neste trecho: Quanto à mulher, é a beleza do seu cabelo que atrai o olhar. A personalidade de uma mulher e o seu carácter reconhecem-se sobretudo no seu modo de falar, mesmo se ela estiver encoberta por qualquer divisória. Em qualquer ocasião, pelas suas próprias maneiras, ela seduz o coração do homem. Ignorando um sono repousado, não se poupa a qualquer pena e suporta as coisas menos suportáveis, já que o seu coração pensa no amor... ... O que também poderá querer dizer que quem não saborear a vida amorosa será como uma taça de cristal de fundo roto...

   [Abro aqui um parêntese para recordar um trecho do Saint Dominique de Georges Bernanos, que seguidamente traduzo. O santo está na hora da morte:

    Os frades juntam-se para apanhar, se possível, algo da palavra que vai enfraquecendo.Domingos faz um gesto com a mão,eles aproximam-se. Pela humildade do gesto, percebem que tem qualquer confissão pública para fazer, e que sente a  pesar-lhe no coração. Aquele que apareceu ao papa Inocente III num sonho em que levava aos ombros a Igreja de Latrão, e que fora conselheiro de pontífices e de príncipes, árbitro de tantos destinos, mestre e legislador de tantas consciências, terá descoberto, naquele solene instante, com terror, o carácter abstracto, quase terrível, da sua vocação doutrinária? Que escrúpulo o atormentará?

   Põe nos seus irmãos os olhos azuis, o olhar inteiro. «Acuso-me  -  diz o mestre dos Pregadores  -  de sempre ter preferido, à conversa dos velhos, a conversa das mulheres jovens».

   E Bernanos conclui assim a sua lembrança de São Domingos de Gusmão : 

   «A religião do meu filho Domingos é um delicioso jardim, imenso, alegre e perfumado»  -  disse certo dia Nosso Senhor a Santa Catarina de Sena, que o reporta.]

   Pelo outro lado da vida, o monge budista japonês descobre que escolher a frugalidade, recusar qualquer luxo, não possuir riquezas, nem cobiçar os bens deste mundo, é, para todo o ser  humano, o verdadeiro bem. Desde a antiguidade que é raro um sábio ter conhecido a opulência...

   Dilema ou paradoxo, a nossa vida é feita de opções possíveis que nos vão espreitando, posto que, como já disseram os nossos poetas maiores, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...   ...todo o mundo é composto de mudança...

   Trânsfugas da natureza, como nos definiu Ortega y Gasset, nela ficamos todavia enraizados, a ponto tal que, contemplando-a, nos entendemos melhor. Assim escreve Urabe Kenko:

   A sequência mutável das estações revela todas as coisas comoventes. «Intimidade comovente com as coisas, no outono», dirá cada um, «mais sensível do que nunca». É, sem dúvida, verdade, mas é ainda maior a alegria que nasce no coração perante os espectáculos da primavera. No próprio canto dos pássaros ressoa a renovação ; ao sereno raiar do sol surgem os rebentos das sebes. Já a primavera se manifesta : estende-se a bruma, chega a hora em que as flores finalmente desabrocham. Mas também está aí a chuva e o vento incessante que logo as dispersa. Até na verdura frondosa o nosso coração encontra mil tormentos...

   Este monge budista associa sempre o sentimento da natureza aos seus sentimentos amorosos : «Uma noite perfumada pelo olor das ameixeiras, uma lua velada; a hesitação, em pé, junto à cerca. A lua no céu de alva, quando saímos para o parque imperial e sacudimos o orvalho da relva : quem nunca passou por tudo isso, melhor faria em renunciar às doçuras do amor... 

   ... O ser humano será, eternamente, um escravo medroso da sorte, boa ou má, procurando apenas encontrar o prazer, eliminando a dor. O prazer : amar e apegar-se, busca sem fim...

   Os desejos nascem de um contrassenso fundamental sobre o valor das coisas, e causam muita infelicidade. Mais vale não lhes obedecer.

   Mas a interrogação, a perplexidade humana, a própria vontade de bem querer, afinal, talvez não tenham lei nem resposta certa, e certamente são uma cadeia infinita e misteriosa :

   Um eremita, cujo nome me escapa, disse : «Nada me prende já ao mundo, mas todavia continuo afeito à beleza fugidia das estações no céu». Dito que tem toda a minha simpatia.

   Quando tinha sete anos, fiz esta pergunta a meu pai : «Quem é Buda?» Meu pai respondeu : «É um homem que se tornou Buda». Voltei a perguntar : «Como é que esse homem se tornou Buda?» -  «Tornou-se Buda pelos ensinamentos de um Buda», respondeu o meu pai. Perguntei : « Quem era esse Buda que ensinou o outro?»  -  «Foi assim também pelo ensinamento de um precedente Buda!», respondeu o meu pai. Perguntei ainda : «Quem foi o primeiro Buda que começou a ensinar?» Então o meu pai disse : «Teria ele caído do céu, como a chuva, ou cresceu da terra?» E pôs-se a rir.

   Contou a anedota a muita gente. «Fui entalado pelas perguntas do meu filho, até não conseguir responder-lhe»...

   Seja qual for a nossa fé e a nossa cultura, há ânsias e perguntas que nos mordem sempre. Mas também creio que a descoberta constante da beleza na inconsistência ou imperfeição das coisas, e de nós próprios, nos ajuda a vislumbrar aquilo que ainda não alcança o nosso olhar.

    

                                                                    Camilo Martins de Oliveira

OS 175 ANOS DA INAUGURAÇÃO DO TEATRO DO GINÁSIO DE LISBOA

 

Há anos, fizemos aqui referência ao Teatro de Ginásio de Lisboa, mais tarde transformado em cinema e depois encerrado. Retomamos a evocação, pois na verdade tratou-se, na época e dezenas de anos a partir dela, de uma sala de espetáculos em muitos aspetos assinalável como tradição cultural e como memória de décadas de função.


E será de referir que, já nesse texto, foi oportuna a evocação histórica do velho Theatro do Gymnasio, inaugurado em 1846 no espaço antes explorado por aquilo que na época se chamava “Companhia de Cavalinhos”, assim mesmo, pois referia os espetáculos circenses então muito marcantes: e esses espetáculos eram apresentados no então chamado “Novo Gymnasio Lisbonense”.


Citamos a propósito Júlio césar Machado, escritor de relevo na época e que descreveu o então novo Teatro, referindo-o de forma pitoresca: “teatrinho de cartas, sem proporções, sem espaço, sem comodidades, mas alegre e simpático”... e mais acrescenta, segundo o então relevante “Diccionario do Theatro Português” (ed. 1908) que o Ginásio “parecia sair de uma habilidade de berliques e berloques”, assim mesmo.


1846 é também o ano de inauguração do Teatro de Dona Maria II, o que é de assinalar. Mas os dois teatros não se deviam comparar.


Entretanto, esse Ginásio ou Gymnasio, seria ao longo de décadas reformado e de certo modo mesmo substituído por sucessivos teatros que mereceram na obra referida um dos maiores textos, o que confirma a sua importância na época. Basta para isso ler a detalhadíssima descrição histórica, arquitetónica e artística que Sousa Bastos lhe dedica: mais extensa e detalhada do que a do Teatro D. Maria!


Essa descrição ganhou atualidade epocal, com as referências detalhadas de elencos ao longo da atividade do Teatro e cobrindo a “atualidade” da edição, portanto no início do século XX, como já dissemos. Mais relevante, não obviamente nos valores descriminados mas na estrutura correspondente, é a descrição histórica de valores orçamentais mas sobretudo de elencos sucessivamente referidos até à “atualidade” da publicação das referências.


De assinalar ainda que em 1908 o Teatro era propriedade de Francisco de Andrade, cantor de prestígios e projeção internacional na época: mas quem se lembra dele hoje, tirando especialistas de História do Espetáculo Musical?  


E é de registar que na época havia ainda um Teatro de Gymnasio Vilafranquense, (em Vila Franca de Xira) o que documenta a descentralização das artes do espetáculo, a partir de Lisboa e não só, tal como é referido no livro de Sousa Bastos, que elenca centenas de Teatros, muitos deles há época em plena atividade. Quantos ainda existem, como salas de espetáculo ou até como meros edifícios centrais?


É o que temos visto, nesta alternância de análises históricas e atuais que temos desenvolvido e que, na alternância com dramaturgia, com cinema e com salas de espetáculo históricas e, modernas, umas e outras ou paradas ou adaptadas ou em atividade...

 

DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO


LXIX - UMA SÍNTESE EVOLUTIVA (II)


O que se pensa que são fixações do passado através de lembranças registadas na memória, imaginando-as nos tempos presentes, podem-no ser na realidade.


É o que sucede com a realidade da língua, do sangue, da cultura e do passado comum. Uma prova de que tal momento pode ser inspirador na atualidade, reside no facto de mais de 230 milhões de pessoas em todo o mundo falarem português. Mais do que as que falam francês, alemão, italiano, japonês, russo, sendo o nosso idioma, neste momento, o terceiro mais falado no ocidente e o quinto ou sexto a nível mundial.


Porque disperso por vários continentes, dá-lhe uma perspetiva transcontinental. Ao ser banhado por vários oceanos, ganha uma perspetiva transoceânica. Porque enamorado essencialmente pelo oceano atlântico, torna-se transatlântico. Como idioma comum e oficial de várias nações, é transnacional.   


As línguas de disseminação planetária, como o inglês, espanhol, português e francês, ou regionalmente delimitadas geograficamente, como o russo, o árabe e o alemão, entre outras, aspiram a ser causa de cadeias confluentes de interesses que, por um lado, ultrapassam grandemente as fronteiras do idioma e, por outro, são potenciadoras de aspetos que o ter um idioma comum de comunicação facilita. 


Descobriremos, assim, que a nossa língua é algo de claro, manifesto, intrínseco e patente, porque demasiado óbvio e intuitivamente partilhada por vários países e comunidades.                         


A começar por Portugal, porque Portugal é o português, a nossa língua, síntese e essência de uma cultura, de um modo de estar no mundo, de pensar o passado e a História, tendo como certo que nenhum futuro digno para o nosso país está desligado do porvir do nosso idioma.   


Se assim é, estamos em presença de qualquer coisa que sendo óbvia e maioritariamente consensual, é simultaneamente uma ideia estratégica, desígnio nacional, ideia ou visão de médio e longo prazo, tendente a preservar a identidade e a diferença, de que a língua é um dos interesses irrenunciáveis e uma das expressões primordiais. 


E embora não se resuma a uma mera estratégia de defesa nacional, também não deixa de o ser, uma vez que não sendo a defesa nacional apenas militar, ao falarmos do futuro de defesa da nossa língua, estamos em presença de uma frente fundamental da defesa nacional.       


Num espaço de interesse geolinguístico, o qual, cumulativamente, favorece o cimentar de áreas estratégicas de influência geopolítica, como a anglofonia, francofonia, lusofonia, entre outras.

 

15.02.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

 

COMUNICAÇÃO: UMA FERRAMENTA HOLÍSTICA

 

Vai-se descobrindo ao longo da vida que muito também se fala para nós mesmos, bloqueando acessos à comunicação, impossibilitando, muitas vezes, o ponderar opiniões ao caminho do conhecer uma nova via.

Tende-se, por excesso, ou, inadvertidamente, a falar para dentro de nós, ainda que invocando diálogos, e, não raro, se afirma, uma comunicação, no preciso instante em que se continua a falar de si e para si.

O ser e o sendo também assim se confunde.

O problema da escolha em ato de liberdade implica a necessidade de nos soltarmos do tempo das perceções circulares, soliloquiais.

Abrir o devir, é abrir a partilha, ferramenta essencial que não receia a separabilidade, a impermanência, a própria perplexidade.

Há que ter claro o quanto a redução dos seres é superada pelo diálogo.

Em rigor, há que retrabalhar tudo, e não escamotear, o quanto as dicotomias são razão de afastamento, ruturas, desprezos, impossibilidades de compreender as pertenças de todos, os laços do pluralismo, a própria origem do amor.

Todavia, o isolamento em que se coloca cada um, quando não atenta o quanto apenas para si fala, cria um feixe de supostas relações, nas quais a coexistência e a tolerância são, afinal, realidades constituídas à cautela da sua interpretação.

Nenhum de nós é apenas a soma de partes. Somos raízes das pontes entre os mundo, num todo.

O tempo que nos segura, é o tempo do pensamento comungado, e esta conquista vital faz-se como a Mãe-Natureza ensina: comunicando para além de nós.

 

Teresa Bracinha Vieira

O PAPA FRANCISCO E O DESPORTO. 1

 

Não há dúvida de que o Papa Francisco é hoje uma das figuras mais destacadas e influentes no mundo, também das mais amadas, e em quem se deposita esperança para o futuro de um mundo melhor.


Penso que isso advém também do facto de ele não ser, na vida e na actuação, clerical ou eclesiástico. É um cristão que segue o Evangelho, notícia boa e felicitante, que está com todos, tanto nas suas tristezas e sofrimentos como nas suas alegrias e esperanças, dando cumprimento ao preceito do Concílio Vaticano II. A demonstrá-lo de modo concreto e inesperado está aí uma longa entrevista ao director, Stefano Barigelli, e ao vice-director, Pier Bergonzi, da Gazzeta dello Sport, que aparecerá também em livro, sobre o desporto. Uma espécie de “encíclica laica” sobre o universo desportivo enquanto metáfora da existência humana, individual e colectiva.


Logo de entrada, avança com os valores que ama no desporto, à volta de sete palavras-chave.


1. Lealdade
. O desporto é lealdade e respeito pelas regras, mas também luta contra os atalhos, luta contra o doping. “Tomar atalhos é uma das tentações com que frequentemente temos de lidar: pensamos ser a solução imediata e conveniente, mas quase sempre leva a consequências negativas. Penso, por exemplo, em quem vai à montanha: a tentação de procurar atalhos para chegar primeiro, em vez de seguir os caminhos indicados, esconde muitas vezes e inevitavelmente um lado trágico. O jogo e o desporto em geral são belos, quando se respeita as regras: sem regras, seria a anarquia, a confusão total. Respeitar as regras é aceitar o desafio de bater-se contra o adversário de modo leal. Portanto, a prática do doping no desporto não é só um engano, é um atalho que anula a dignidade.”


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. Compromisso. O talento não é nada sem aplicação. Pode-se nascer talentoso, mas não se pode adormecer em cima do talento. “A história, não só a desportiva, mostra tanta gente de talento que depois se perdeu no caminho. No desporto, para vencer, não basta ter talento, é preciso treiná-lo, vivê-lo como oportunidade para prosseguir e manifestar o melhor de nós. A própria parábola evangélica dos talentos ajuda-nos nesta reflexão: o servo que, quando no regresso do patrão, restitui o talento recebido, porque com medo o tinha enterrado, é considerado mau precisamente porque não pôs a render o que recebera como dom. A parábola ensina-nos que Jesus é um treinador exigente: se enterrares o talento, já não fazes parte da sua equipa.”


3. Sacrifício
. “O sacrifício é um termo que o desporto partilha com a religião: vem de ‘sacrum-facere’, dar sacralidade ao esforço e à fatiga. Ninguém gosta de cansar-se a trabalhar, porque a fadiga é um peso. No entanto, se consegues encontrar um sentido para o esforço e a fadiga, o teu jugo torna-se mais leve. O atleta é um pouco como o santo: conhece a fadiga, mas não lhe pesa, porque, nela, é capaz de entrever algo outro, um mais além. Encontra uma motivação, que lhe permite não só enfrentar a fadiga, mas quase alegrar-se com ela: de facto, sem motivação, não se pode enfrentar o sacrifício. Depois, o sacrifício requer disciplina para poder ter êxito.”


4. Inclusão
. Este ano será o ano dos Jogos Olímpicos. “Desde sempre os Jogos são um sinal de inclusão, contraposto à cultura do racismo, do descarte. Peçamos ao Senhor a graça de poder arrancar para um ano de novo ponto de partida de tudo. Penso, por exemplo, no drama da falta de trabalho e da consequente desigualdade, cada vez maior, entre quem tem e quem perdeu até o pouco que tinha. Os Jogos Olímpicos, cujo desejo inato de construir pontes em vez de muros sempre apreciei, podem representar simbolicamente também o sinal de um ponto de partida novo e com um coração novo. No início da experiência dos Jogos Olímpicos, previa-se até a trégua nas guerras durante o tempo das competições. A cada quatro anos, o mundo tem a possibilidade de parar para se perguntar como está, como estão os outros, qual é o termómetro de tudo. Celebrar os Jogos Olímpicos é uma das formas mais altas de ecumenismo humano, da partilha do esforço para um mundo melhor.”


5. Espírito de equipa
. Fazer equipa é essencial no desporto. Também o é na vida de todos os dias. “É verdade: ninguém se salva sozinho. E como crente posso testemunhar que a fé não é um monólogo, mas um diálogo, uma conversa. Utilizando uma metáfora desportiva, dir-se-ia que só nos podemos salvar como equipa. O desporto tem isto de belo: tudo funciona em equipa. Os desportos de equipa assemelham-se a uma orquestra: cada um dá o seu melhor no que lhe compete, sob a sábia direcção do maestro. Ou se joga em conjunto ou se corre o risco de estragar tudo. É assim que grupos pequenos, mas capazes de permanecer unidos, chegam a bater grandes equipas incapazes de trabalhar em conjunto.”


6. Ascese
. Ao pensar na história de tantíssimos santos e santas, “é evidente que praticar ascese não significa só renunciar. O desporto di-lo muito bem: imagino as escaladas de oito mil metros, as imersões nos abismos, as travessias dos oceanos como intentos de buscar outra dimensão, mais alta, menos habitual. É redescobrir a possibilidade do espanto, do assombro, do transcendimento.”


7. Resgate
. Desporto também é dizer redenção para todos. “Não basta sonhar com o êxito, é preciso despertar e trabalhar no duro. O desporto está cheio de gente que, com o suor do seu rosto, venceu os que nasceram com o talento no bolso. É por isso que certas vitórias nos levam à comoção.” (Continua).

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 09 JAN 2021

CADA ROCA COM SEU FUSO…


O MÁGICO DAS LETRAS…


Adolfo Simões Müller (1909-1989) foi um ativo militante da leitura e dos livros. As gerações dos anos trinta a sessenta do século passado tiveram a influência das suas iniciativas. Como diretor de “O Papagaio” (1935-1941), foi um dos introdutores da Banda Desenhada em Portugal, ou do que então designávamos como “histórias aos quadradinhos”. As Aventuras de Tintin e a influência da obra de Hergé foram dadas a conhecer  em Portugal graças à revista dirigida por Adolfo Simões Müller – na qual colaboravam Júlio Resende e José Viana. Portugal foi o primeiro país do mundo a traduzir as Aventuras de Tintin, e o primeiro a colori-las. Devemos lembrar o papel desempenhado pelo Padre Abel Varzim nesta ação pioneira, que trouxe a obra de Hergé para Portugal, através da empresa da Rádio Renascença, dirigida por Monsenhor Lopes da Cruz, que acolheu de braços abertos a sugestão da aposta na narrativa ilustrada da escola belga do que designamos como da “linha clara”. Num momento em que havia muitas dúvidas sobre a Nona Arte, é de saudar a coragem de quem cedo compreendeu a importância dessa pedagogia de grande alcance, capaz de ligar Literatura, Arte e Cinema.


Hoje, quem passa pelo jardim das Amoreiras encontra o busto do jornalista e escritor, numa justa homenagem a quem desenvolveu uma obra prolífera reveladora de uma orientação sábia sobre o modo de melhor captar os mais novos, não apenas para as letras, mas sobretudo para a curiosidade intelectual e para o espírito de aventura. Depois de ter frequentado a Faculdade de Medicina, cujo o curso abandonou, enveredou pelo professorado e pelo jornalismo. Foi secretário de redação do jornal “Novidades”, fundador e diretor até 1941 do jornal infantil “O Papagaio”, diretor do ”Diabrete” (1941-1951), do “Cavaleiro Andante” (1952-1962), do semanário juvenil  “Foguetão” (1961) e do “Zorro” (1962-1966). Eduardo Teixeira Coelho, Fernando Bento, José Ruy, José Garcês, José Manuel Soares foram alguns dos autores portugueses que colaboraram nas iniciativas de Adolfo Simões Müller – ombreando com tantos autores europeus consagrados.  Foi ainda diretor do gabinete de estudos de programas da Emissora Nacional de Radiodifusão   e produtor de programas para a rádio, tendo sido autor do primeiro folhetim radiofónico, com a adaptação da obra de Júlio Dinis  “As Pupilas do Senhor Reitor”.


Estreou-se na literatura com o volume de poemas “Asas de Ícaro” (1926). Foi, porém, a literatura infanto-juvenil que o celebrizou, tendo escrito “Caixinha de Brinquedos” (1937, Prémio Nacional de Literatura Infantil) e “O Feiticeiro da Cabana Azul” (1942, galardoado com o mesmo prémio). Para o público juvenil foi a grande animador da coleção “Gente Grande para Gente Pequena” (edições Tavares Martins), na qual publicou obras biográficas como “A Pedra Mágica e a Princesinha Doente”, sobre a Madame Curie; “O Capitão da Morte”, sobre Robert Scott; “As Aventuras do Trinca-Fortes”, sobre Camões; “O Homem das Mil-Invenções”, sobre Thomas Edison; “O Grande Almirante das Estrelas do Sul”, sobre o Almirante Gago Coutinho; “O Piloto do Navio Fantasma”, sobre Richard Wagner; “O Exército Imortal”, sobre Gutenberg; “A Lâmpada que não se Apaga”, sobre Florence Nightingale; “O Príncipe do Mar”, sobre o Infante D. Henrique; “O Fidalgo Engenhoso”, sobre Miguel de Cervantes; “Através do Continente Misterioso”, sobre Serpa Pinto; “O Mercador da Aventura”, sobre Marco Polo; “A Primeira Volta ao Mundo”, sobre Fernão de Magalhães (Prémio Nacional de Literatura, de 1971); “A Pista do Tesouro”, sobre Baden Powell; e “O Contador de Histórias, sobre Hans Christian Andersen.


Adaptou para os mais jovens “Os Lusíadas” (1980), “A Peregrinação” (1980), “A Morgadinha dos Canaviais” (1982) e “As Pupilas do Senhor Reitor (1984). Em 1982 recebeu o Grande Prémio da Literatura Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra., onde ainda se incluem: “Meu Portugal, Meu Gigante” (1931); “Jesus Pequenino(1934), “A Última Varinha de Condão” (1941); “Historiazinha de Portugal” (1944; “A Última História de Xerazade” (1944; “Dona Maria de Trazer por Casa” (1947), “O Livro das Fábulas” (1950) ou  “A Viagem Maravilhosa de Comboio” (1956), num extraordinário conjunto de mais de 70 obras.


Podemos designá-lo como “O Mágico das Letras”, uma vez que não só foi um incansável cultor da divulgação literária, mas também um permanente pesquisador dos melhores autores nacionais e europeus na Banda Desenhada, a fim de desenvolver o interesse cultural e científico dos mais jovens, num momento em que era necessário romper com a elevada taxa de analfabetismo de que o país sofria. As resistências e as críticas de alguns não se aplicavam a Simões Müller, uma vez que foi um exemplo de cuidado extremo com a utilização da língua portuguesa.

Agostinho de Morais