Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
“Flores de España, Excelência de Portugal” (1631) e “Ulissipo - Poema Heroico” (1640) de António de Sousa de Macedo são duas obras em que o seu autor enaltece as virtualidades de Lisboa e dos portugueses nas vésperas da Restauração da Independência. No entanto, a celebridade do autor não se ficou a dever a talento literário, mas sim ao modo como defendeu a legitimidade do rei João IV e da independência de Portugal.
UM POLÍTICO INFLUENTE
O Doutor António de Sousa de Macedo (1606-1682) que dá o nome ao largo em que se inicia em Lisboa a Calçada do Combro está longe de ser um desconhecido. É verdade que não foi a literatura que o celebrizou e que “Ulissipo – Poema Heroico” (1640) é uma obra mitológica sua que hoje quase passa despercebida. Não foi assim como poeta ou escritor que se singularizou. Alberto Manguel, novo munícipe naquele Largo, conta que perguntou quem conhecia o literato, mas ninguém soube responder. Há alguns anos esclareci, aliás, uma confusão entre este António de Sousa de Macedo, do século XVII, e um seu descendente que foi Ministro da Instrução Pública, o primeiro, num Governo do Marechal Saldanha em 1870, conhecido como D. António da Costa. É bom encontrar alguém que se interrogue sobre quem merece ser imortalizado numa rua. Esta honra toponímica não veio, porém, da escrita, mas do facto de se tratar de um dos mais célebres diplomatas, em momento decisivo da história pátria. Quando em 1640 inicia a sua obra épica sobre a fundação de Lisboa, Sousa de Macedo vai buscar a referência homérica da “Odisseia”, enaltecendo as virtudes do grande herói da Guerra de Troia e inserindo a origem dos portugueses na mais antiga tradição greco-romana. E tal como Camões, mas seguindo caminho diverso, vai à inspiração de Virgílio, podendo dizer-se que estamos perante um verdadeiro reportório da cultura e da mitologia da Grécia. «Canto ao varão que por fatal governo / da Grécia à Lusitânia peregrino / fundou ilustre muro e nome eterno; / onde o mar torna o Tejo cristalino / muito obrou e sofreu; em vão o Inferno / se quis opor contra o poder Divino, / que o guardou para autor, naquela idade, /de muitos reinos numa só cidade». Temos, de facto, de inserir esta obra na preocupação fundamental de assegurar culturalmente a criação de uma legitimidade cultural, que hoje designaríamos como identitária. Se António Sousa de Macedo não esteve na primeira linha da conspiração de 1640, assume-se claramente como restauracionista na preocupação que preside a esta obra. Enquanto Francisco Rodrigues Lobo põe a nu em “A Corte na Aldeia” a situação de um povo grande que se vê submetido a uma situação de subalternidade, substituindo o tema do império pela discussão de campanário de aldeia, o autor de Ulissipo projeta na Antiguidade Clássica a legitima ambição de uma nação que aspira à liberdade, como afirmará em “Lusitania Liberata”, cujo título integral é “Lusitânia libertada do domínio injusto dos espanhóis e devolvida ao rei D. João IV, com materiais históricos e jurídicos e todo o conhecimento de Portugal, para a terra da nação, o seu poder e os acontecimentos mais dignos de nota desde a criação do mundo, no qual o leitor verá o seu valor na história, na literatura, no direito, na política e na teologia” (de 1645).
UMA VIDA DE SERVIÇO PÚBLICO
Nascido no Porto em 1606, veio para Lisboa pelas funções do Pai, Desembargador na Casa da Suplicação, seguindo para Madrid. De novo em Lisboa, frequentou o Colégio de Santo Antão (1619-1623), depois do que rumou a Coimbra, para frequentar Direito Civil. Voltou a Madrid com seu pai e então escreveu “Flores de España, Excelência de Portugal” (1631), onde elogiou Lisboa e enalteceu os espanhóis, o melhor dos povos, à exceção dos portugueses. Nesta obra, sente-se a dupla preocupação de defender as qualidades excecionais dos portugueses e de Portugal, sem pôr em causa uma boa relação formal com o povo de Espanha. Nota-se, contudo, uma preocupação, que se evidenciará mais tarde em garantir uma defesa eficaz dos interesses portugueses. Regressado a Portugal obteve o grau de Doutor em Leis (1632), sendo enaltecida por Barbosa Machado a qualidade das suas prestações académicas - a merecer “inveja e veneração dos Catedráticos daquela insigne Atenas”. Num momento triste da família, o Pai foi destituído de funções. O jovem casa-se com Maria Lemercier, de ascendência holandesa, mas vê recusado o seu nome para Contador-mor. Era secretário do Conselho de Portugal Miguel de Vasconcelos, e houve razões pessoais e políticas para esta recusa. Pouco depois dá-se o golpe de 1640, no qual não participa diretamente mas que apoia com entusiasmo. Então é nomeado secretário da Embaixada em Londres com Antão Vaz de Almada, sucedendo-lhe como representante, e é essencial a sua ação, quer no reconhecimento da Restauração quer ao conseguir a nomeação de um prestigiado Embaixador britânico para Lisboa, Henri Compton, o que foi essencial para a legitimação de D. João IV. Mercê de um elevado sentido pragmático, mas também de uma relação humana muito afável e de uma cultura rica, relaciona-se com Carlos I, num momento muito difícil da vida política britânica, que levaria à implantação da República de Cromwell – o que lhe permitirá ser muito admirado pelo futuro rei Carlos II, que virá a casar-se com a Princesa portuguesa Catarina de Bragança.
UMA MEMÓRIA IMPORTANTE
Volta a Lisboa como Desembargador da Casa da Suplicação e em 1648 é Juiz das Justificações do Reino. Em 1651 é Embaixador nos Países Baixos, onde não concorda com o Padre António Vieira. Com a subida ao trono de D. Afonso VI é nomeado Secretário de Estado, ao lado de Castelo Melhor. Mas quando o rei é afastado cai em desgraça e é exilado a 30 léguas da Corte, para a Vila de Penela (1667). O certo é que foi um importante político, diplomata e influente membro do Conselho da Fazenda. Conheço bem o Largo (antes designado do Poço Novo), nele foi-me possível usufruir da hospitalidade extraordinária de Helena e Alberto Vaz da Silva, queridos amigos. Helena era descendente de Sousa de Macedo, por via materna, ainda que a casa onde nasceu e viveu não fosse a do seu antepassado, mas no Palácio Cabral, em frente, prédio do século XVII, largamente beneficiado depois do Terramoto, e recentemente alvo de revelações históricas importantes. Eis esclarecida a questão.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
Assim, a dado passo, canta o tanka do contoLXXXII de Ise. Talvez por ler e reler tais contos velhinhos de mais de um milénio, e de neles, para além da distância no tempo, nada estranhar, mas apenas reconhecer tantas facetas da minha própria sensibilidade portuguesa, que me comovo ao ponto de confundir esta minha rebusca do Japão com as cartas do meu sentimento de mim que te vou escrevendo. Se bem que os Contos de Ise se debrucem intencionalmente sobre sucessos e insucessos de namorados e amantes muito humanos, o seu lirismo veicula sentimentos e preocupações mais fundas, como se de raízes fasciculadas se tratasse, pertinentes ao sentido e à perplexidade com que nos defrontamos em súbita presença do nosso próprio destino humano. O aguilhão do sentimento permanente da efemeridade do tempo, das coisas todas e da vida, parece sobretudo destinado a reflectir esse paradoxo que será a consistência permanente do efémero. Lembro, Princesa de mim, este haiku de Basho:
Acima da cotovia no céu
eis impassível
o desfiladeiro da montanha...
Acima do ukyio, deste mundo contingente, flutuante, há sempre uma passagem, um caminho para a permanência. No seu «Diálogo com um Japonês» (in Aus einem Gespräch von der Sprache - Unterwegs zur Sprache, Pfullingen, Neske, 1959), Martin Heidegger, referindo-se à questão da relação entre a letra das Escrituras e o pensamento especulativo da teologia com fonte das suas interrogações (cf. Bernard Stevens in Heidegger et l ́École de Kyoto - Soleil Levant sur Forêt Noire, Les Éditions du Cerf, Paris, 2020) escreveu: Sem essa proveniência teológica, nunca teria chegado ao caminho do pensamento. Proveniência é sempre porvir. E Bernard Stevens, da Universidade Católica de Louvain (la Neuve) comenta, pertinentemente: O que retém a atenção de Heidegger sobre este tema é, no plano da vida efectiva, uma certa experiência do tempo na fé cristã primitiva, antes da dogmática eclesial e a teologia escolástica. Trata-se de uma experiência do tempo e da história, orientada para um evento determinante do porvir: a esperança no regresso de Cristo ou no Juízo Final, para os primeiros cristãos que todavia se tornará, no Sein und Zeit (obra chave de Heidegger), em neutralidade religiosa - momento decisivo da morte. Tal momento não é um instante preciso do futuro, mas no seu repente imprevisível é a nascente desconhecida de uma orientação de vida em função do porvir, pondo o humano em face da necessidade de uma decisão: a de uma opção por uma vida autêntica ou inautêntica. Do porvir imprevisível, indisponível, carregado de ameaças, provirá o sentido que o humano, resolutamente, deverá dar à sua vida presente.
A partir daqui, defronto-me com uma surpreendente - para mim - distinção entre a temporalidade «kairológica» e outra, a «cronológica», sendo que a primeira será obliterada, pela Idade Média e a Renascença, em favor do conceito do ser como substância, simultaneamente presença constante (ousia) e visão teoricamente objectivável (theoria), portanto impermeávelà efectividade kairológica da vida efectiva...
Será que tal obliteração conduziu, como alguns pretendem, a um duradouro esquecimento do ser pelo pensamento ocidental?
Bernard Stevens defende que a própria noção do ser como ousia foi radicalizada durante a Idade Média pela reinterpretação como substantia, sendo o ser, aí subsistente, o sendo, na constância estável de si próprio. E afirma que tal noção de ousia provém da compreensão grega do ser, cuja memória é guardada pela pluri vocação aristotélica do sendo. E prossegue: a compreensão grega do ser como ousia sublinha um só sentido lexical do ser, sentido esse que remonta ao wasami indo-europeu (permanecer, ficar na constância do presente) e que, ao associar-se com o sentido nuclear do «viver» (es-, esti), escamoteará todavia o sentido igualmente essencial do crescer (bhu-, phy-) que, por outro lado, encontramos na palavra physis. Este vocábulo, em tempos pré-socráticos, sobretudo entre os iónicos, designa o conjunto do sendo no seu ser.
Evitando continuar a escrever-te, Princesa de mim, a remar entre escolhos de elucubrações "técnico-filosóficas" (terá tal expressão algum sentido?), vou procurar chegar ao dito do que quero comunicar-te, isto é, ao pensarsentir do tempo e do ser - para recordar o Sein und Zeit de Heidegger - nas culturas ocidental e extremo-oriental. Já entre gregos havia divergência entre reconhecer o ser do sendo na totalidade como porvir, movimento, crescimento, ou seja, enquanto physis, e o conceito de ousia, no qual o ser do sendo na totalidade é identidade consigo na presença constante. Ora, precisamente, é a ideia de physis que mais se aproxima do conceito extremo oriental de ziran (em chinês) ou shizen (em japonês), o qual aponta para o modo de ser do que é por si mesmo e por si mesmo se desenvolve, em incessante dinâmica que escapa a qualquer objetivação estabilizante e ao domínio de qualquer olhar teórico, assim exigindo nova achega. O mundo flutuante é, portanto, inapreensível ou, melhor dito, apreensível apenas na fugacidade de ocorrências surpreendidas em privilegiados momentos. Podemos, pois, dizer que ele é plurívoco, o que nos deixa entender melhor aquela interrogação de Heidegger que, no Japão, foi acolhida e reflectida pela escola de Kyoto, com Nishida Kitaro à cabeça: «Se o sendo é dito com significado múltiplo, qual será então o seu significado director e fundamental? Que quer dizer ser?»
A cultura japonesa, ao longo de séculos, tem respondido privilegiando a poesia, tal como a caligrafia, a pintura e a gravura - visões simultaneamente místicas e ambíguas - na intuição de um olhar que interroga o mistério e busca surpreender no fugidio a possível ou impossível permanência... Andará muito longe de um Novalis que diz ser a poesia o real absoluto, ou quanto mais poético mais verdadeiro?
Proximamente - e, espero, de modo menos árido e, quiçá, confuso do que o desta minha escrita de hoje - voltarei a estes temas. Para que me perdoes, pelo menos tu, Princesa de mim, deixo-te a tradução de uns pensamentos do monge budista Urabe Kenko (século XIV), respigados do seu Tsurezure-gusa (Horas de Lazer...):
Mesmo eu, que tudo deixei, compreendo que neste triste mundo haja coisas do agrado do meu coração...
... Mas não há outro mundo em que possa esconder-me, além deste mundo efémero. Aquilo de que fugi era o meu próprio coração.
Refiro aqui textos de relevância cultural indiscutível, escritos e publicados muito recentemente por Guilherme d’Oliveira Martins: o longo artigo intitulado precisamente “Manuel Ivo Cruz“, evocação do maestro Manuel Ivo Cruz, meu irmão, texto que abre a edição da revista “As Artes Entre as Letras” (nº 280 – 16 de dezembro de 2020) a ele dedicado, e “Um Diálogo de Relógios”, conto de Guilherme d’Oliveira Martins, este na publicação que assinala o Natal de 2020 do Centro Nacional de Cultura, entidade que tem uma parceria com a revista dirigida por Nassalete Miranda.
No ponto de vista pessoal, e independentemente da amizade que me liga a Guilherme d’Oliveira Martins, da admiração pela sua vasta obra e pela colaboração que mantenho no Centro Nacional de Cultura, importa aqui e agora assinalar a interessantíssima análise histórica, artística e também familiar que liga Manuel Ivo Cruz à grande tradição da música portuguesa, na continuidade da vida e obra do nosso pai, Ivo Cruz (1901-1985), maestro, compositor, diretor-fundador da Orquestra Filarmónica de Lisboa e Diretor do Conservatório Nacional de 1932 até à sua aposentação em 1968.
E registo com óbvio interesse, neste número evocativo da revista, o meu irmão Manuel, como individualidade, como maestro e homem de cultura, “referência na musicologia portuguesa contemporânea, tendo sido uma muito relevante presença como maestro e como estudioso e divulgador da história da música em Portugal” escreveu Guilherme d’Oliveira Martins: e mais acrescenta um longo e detalhado currículo de Manuel Ivo Cruz, destacando não só a atividade como maestro mas também como escritor de temas da história e da criação musical e a sua internacionalização designadamente na formação na Academia de Mozart na Universidade de Salzburgo e em numerosíssimos concertos, que dirigiu designadamente em Portugal, Espanha, Alemanha, França, Grécia, Brasil, EUA Rússia e Venezuela.
Em Portugal desempenhou também funções relevantes em entidades de formação e cultura musical, muitas delas evocadas no número especial da revista, com estudos e artigos de Guilherme d’Oliveira Martins, mas também do próprio homenageado (“Reflexões em Dó Maior”) e de Leonor Cruz (“Saudades”) e de Victor Dias, João Pereira Bastos, Carlos Guilherme, Elvira Racher, João Correia Alves, José Miguel Júdice, Sofia Lourenço, Teresa Cardoso de Meneses.
E ainda artigos e textos diversos em áreas diversas da revista, estes da autoria de Paulo Ferreira da Cunha, António José Borges, Vasco Rosa, Rui Baptista, André Ventura, Lurdes Neves, Maria Virgínia Monteiro, A. Campos Matos, Levi Guerra e ainda outras rubricas e temas culturais diversos.
Tudo isto, repita-se, numa revista dedicada ao meu irmão maestro Manuel Ivo Cruz, com fotografias na capa e em numerosos artigos, imagens que largamente ilustram a edição e confirmam o tema geral: “A memória não se apaga”, sublinha precisamente a capa.
Em todo o ser humano há memória, decisiva para a avaliação que cada um tem do que nos circunda. Também no coletivo existe uma memória, embebida de relações trabalhadas, no caso português, no decurso de vários séculos. A nossa exiguidade territorial sempre foi insuficiente e nunca nos confinou. Partimos sempre, por carência ou insatisfação, sendo o português um povo que demanda. Com o fim do império, e após longas viagens, regressámos a casa. Retornámos ao Portugal terra e raiz, à finisterra ibérica, ao país europeu e europeísta. Não sabemos bem como arrumar o passado e tanta memória, que permitiram pensar em grande a um berço pequeno em termos geográficos. Para uns, extinto o império e defraudados os sonhos, a festa acabou. Já não há futuro, a não ser para, nostalgicamente, reviver o passado, lembrando-o através da memória. Só que o passado é essencial, pois sem ele não construímos o futuro. Mas Portugal não é mais o passado que foi, que imaginou e pensou ter sido. Precisamos de uma ideia estratégica, assumida e partilhada por elites e cidadãos comuns. Necessitamos de um pensamento estratégico, desígnio nacional e visão tática sobre o próprio devir. Estratégia que mais que construída, tem que ser descoberta, desperta, renovada, renascida e requalificada, partindo de algo que já existe em nós. Tem que ser, ao mesmo tempo, uma possibilidade plausível e adequadamente capaz de nos determinar a algo, motivando-nos. Alguma coisa que todas as pessoas conhecem e com a qual a maioria de um país se identifica. Como o é o nosso idioma, a língua portuguesa.
Em todos os dias lhe nascia obra como um mapa que sempre devia ser entendido qual poema maior.
Em todos os dias ia deixando a existência ao mundo, feita de muitas coisas, e sempre à janela, aquela mesma por onde saiam os sonhos, as flores, os sacrifícios, as luzes, os gritos, as coisas só aparentemente impossíveis, como essas de um bailarino se esgueirar para colocar a arte humana no cosmos.
Minha filha vamos, vamos, a levantar, aproxima-se o dia, o teu dia, e afinal o de todos nós! A cidade e o povo reivindicam-te. A um sinal de assentimento teu, todos vamos a demanda do novo ano. Vai, vai no cortejo das tuas núpcias, canta as glórias das essências. As ruas irão encher-se de coroas e tochas e vinhos e perfumes. É um dia de vitória muito teu. Neste primeiro dia do ano, de pronto, vai soltar-se o teu coração, sem qualquer medo do que lhe está destinado. São assim as núpcias, estabelecem elas alianças com futuros frente a frente para que se vejam, e ainda assim tão longe, ou já amanhã, quem sabe?
Minha filha, concede!, antes que te faltem as forças e que deixe de ser evidente que quem te pretende, te ama, disposto a arruinar-se por ti, sabendo que a ruína é o tanto imenso amor que te tem e terá, e que o ano a viver é o início de uma ideia.
Prodígio! Cantamos todos! Prodígio extraordinário! Vem 2021! Vem ó ano dos futuros que o enlace original é da minha filha! Grande é a sua formusura, superior mesmo à dos segredos dos escultores e pintores e poetas e arquitetos e músicos. Centras tu, filha minha, meu amor, a força feminina da história catalisadora dos movimentos e das ações. O teu herói será a separação e o reencontro, e tu o enfrentarás como aos perigos dos caprichos da Sorte.
Minha filha luta, assume o desafio a exigir núpcias. E eis que te vais surpreender em cálculos e desfechos e em perceções contraditórias, mas o sonho e o que nele viste, vai existir também na realidade.
Filha vamos a levantar, aproxima-se o dia, o teu dia, e afinal o de todos nós! Nada temas! Se prisioneira, se prisioneiros, as crianças serão destino, sempre!
Longe de mim querer minimamente ferir o fascínio da magia divina das narrativas do Natal, mas é natural que a pessoas se perguntem como foi a infância de Jesus, em que data nasceu e onde, quem eram os reis magos, se houve a matança dos inocentes, se Jesus menino foi levado para o Egipto...
É a essas muitas perguntas que vou tentar responder, inspirando-me em parte no exegeta Ariel Álvarez Valdés: Cuál es el origen del diablo? Para descobrir o sentido autêntico e profundo das celebrações natalícias.
1.O Natal é a maior festa do cristianismo? Embora seja a mais popular, e compreende-se - a luz, o calor humano da família e da amizade, a evocação do milagare do nascimento de uma criança... -, o Natal não é a festa maior. A festa central da fé cristã é a Páscoa, que celebra a vida, o anúncio da boa nova do Reino de Deus, a paixão e morte de Jesus e a sua ressurreição: na morte, Jesus não morreu para o nada, na morte encontrou a plenitude da vida em Deus, que é Pai-Mãe. Este é o núcleo da mensagem cristã, como proclamou São Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé.” E é à luz da Páscoa que se comprendem as narrativas do Natal. De facto, no início, os cristãos não se interessaram pelo seu nascimento, pois o essencial era a vida, a morte e a ressurreição.
2.Como apareceu a festa do Natal? Hoje, nenhum historiador sério nega que Jesus existiu realmente. Quando, por volta do séculos III-IV já havia comunidades cristãs espalhadas pelo Império Romano, houve a ideia de transformar a festa pagã do Dies Natalis Solis Invicti (Natal do Sol Invicto), associada ao solstícoo do Inverno, quando os dias começam a aumentar e com eles a luz solar, na festa do nascimento do Sol dos cristãos, dAquele que é o verdadeiro Sol invencível, a Luz verdadeira. A Missa do galo está associada a esta luz, o galo canta, anunciando a aurora.
3.Quando nasceu? Estamos enganados quando dizemos que entrámos no ano 2021 depois de Cristo. De facto, no século VI, quando o cristianismo já se tinha vastamente difundido e Jesus surgia como figura determinante da História, de tal modo que agora o calendário se deveria orientar pela data do seu nascimento: a. C., d. C. (antes de Cristo, depois de Cristo), o monge encarregado de determinar essa data, Dionísio, o Exíguo, enganou-se em 4 ou mesmo 6 anos. Portanto, Jesus, paradoxalmente, nasceu em 4-6 a.C.
4.Nasceu em Belém? Voltamos ao início. O essencial da fé cristã encontra-se na Páscoa. Foi a partir dessa fé que os discípulos leram a vida histórica de Jesus, real, situada num tempo concreto, uma história real, mas lida e interpretada com o olhar da fé. Esta leitura é particularmente visível nos relatos da infância, que só aparecem nos Evangelhos de São Mateus e São Lucas, utilizando um género literário próprio, que projecta e vê no princípio o que sabem no fim: em Jesus cumpriram-se as promessas, Ele é o Messias, o Filho de Deus, o Salvador por todos esperado. Na realidade, Jesus terá nascido em Nazaré: é conhecido por Jesus de Nazaré ou o Nazareno. Mas puseram-no a nascer em Belém: trata-se de mostrar que ele é o verdadeiro Messias e rei, da descendência de David, que era de Belém.
5.São José é o pai de Jesus? A teologia não é um tratado de biologia e anatomia. São Paulo escreverá de modo simples: Jesus, “nascido de mulher”, para dizer que é da nossa raça, que é o que se lê também nos dois evangelistas. Mas Ele é único, especial. Para mostrar que João Baptista é especial, os Evangelhos dirão que foi concebido quando a mãe, Isabel, já não podia ter filhos. Quanto a Jesus, acreditando que Ele é o Filho de Deus, a revelação definitiva de Deus como Pai, escreverão que foi concebido pelo Espírito Santo. A mãe era Maria, o pai era José. Tinha irmãos e irmãs. Há algum mal em ter uma família numerosa?
6.Como foi a sua infância? Normal e despercebida, de tal modo que, quando aparece em Nazaré, no início da vida pública, a anunciar o Reino de Deus, os seus conterrâneos ficam profundamente admirados a ponto de perguntarem: não é este o carpinteiro, a família dele não vive entre nós? Certamente, frequentando a sinagoga, Jesus aprendeu a rezar, a escrever e a ler as Escrituras (Antigo Testamento) até aos 12 anos, quando iniciou a aprendizagem do ofício de tekton, artesão, trabalhando com a madeira, a pedra, o ferro: um ofício duro. Trabalhou em vários lugares, o que lhe deu conhecimento da vida, da sua dureza, das relações sociais e dos seus labirintos.
7.O episódio dos reis magos vindos do Oriente, guiados por uma estrela, é dos mais conhecidos e fascinantes para o imaginário colectivo, mas, quando se analisa criticamente todos os dados, realmente não crível historicamente. O que se passa é que o evangelista compara Jesus com o rei Salomão. Salomão, tão estimado pelos judeus pela sua sabedoria, foi visitado por uma rainha anónima vinda de longe, de Sabá, atraída pela sua fama. Jesus é mais do que Salomão. Ele é a Sabedoria verdadeira, que a todos ilumina. Daí, a visita dos reis.
8.Também não é crível a matança dos inocentes. Como seria possível Flávio Josefo não ter referido essa matança? O evangelista compara Jesus e Moisés. Aquando do seu nascimento, o faraó mandou matar todos os meninos nascidos no Egipto. E Jesus é levado para o Egipto - realmente nunca terá lá estado -, donde voltará. Para dizer que Jesus é o novo verdadeiro Moisés, o Libertador de todo o mal e opressão, incluindo a morte. Porque Deus não suporta a opressão, a escravidão.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 02 JAN 2021
No começo do ano, na velha tradição do Borda d’Água faz-se o juízo do ano.
I. Começo pela tremenda Pandemia Covid-19. Sinto que há condições esperançosas para 2021. A existência de vacina não resolve ainda o problema, mas permite aumentar as condições de imunidade. Portanto, olhando a bola de cristal, vejo que a segunda metade do ano vai permitir termos condições favoráveis para o mundo recomeçar a girar sem grandes solavancos. No entanto, há sete questões fundamentais, a não esquecer: (i) Não devemos baixar a guarda – a prevenção continua a ser a grande solução ao nosso alcance; (ii) a máscara é antipática, mas tem de ser usada devidamente – sem o nariz de fora e sem ficar pela barbela; (iii) A lavagem das mãos é essencial, e deve ser repetida amiúde; (iv) a distância social tem de se fazer; (v) o arejamento dos lugares onde estamos é preciso; (vi) nunca devemos facilitar, temos de estar sempre de pé atrás; (vii) procurar usar os meios que nos permitam comunicar uns com os outros… As condições são cumulativas, umas não devem esquecer as outras. E mesmo depois da vacinação, vamos ter de manter durante um período largo estas cautelas, uma vez que o vírus vai sofrer mutações e ainda vamos ter um tempo largo de jogos do gato e do rato ou da cabra-cega… E não esqueço o bom exemplo de Ignaz Semmelweis (1818-1865), o médico húngaro do século XIX, que percebeu como combater uma misteriosa febre pós-parto que estava a matar muitas mulheres numa enfermaria. A culpa era dos seus colegas que não lavavam as mãos. Foi, porém, incompreendido e acabou ostracizado num manicómio. Só depois de morto viu a sua posição reconhecida, quando Louis Pasteur formulou a demonstração científica sobre o efeito das bactérias na génese das doenças. Hoje, não há qualquer dúvida. O que importa é entender que as formas preventivas são aliadas da saúde.
II. Quem me conhece, sabe a minha tristeza por causa do Brexit. De facto, as dificuldades finais nesta negociação indesejável deveram-se à circunstância de haver britânicos que continuam a achar que o Império da Rainha Vitória ainda existe. Há muito que caiu e quando se negoceiam as pescas, por exemplo, não há outro remédio se não aceitar a globalização e a interdependência. Basta ler a Carta das Nações Unidas para o entender. Ninguém pode reivindicar a exclusividade da propriedade numa parcela do mar ou do globo terrestre. Leiam-se as opiniões sensatas e veja-se como não é possível esquecer que o grande mercado comercial do Reino Unido ainda é a Europa, que os mercados financeiros e os respetivos serviços não irão manter-se fieis a Londres, se as condições concorrenciais se degradarem, ou que os Estados Unidos não desejam ser uma colónia britânica… Agora, resta-nos esperar para ver as consequências efetivas de uma decisão tão absurda e imponderada… Continuarei anglófilo. Mas nada posso fazer. E espero que Mr. John Bull não se deixe dominar pela tentação da cegueira. Não sei francamente que se passará. Mas a incerteza será a regra, sobretudo se olharmos para a evolução da pandemia a somar à pressão interna das opiniões públicas, quando estas perceberem que o mundo de hoje é muito diferente do que existia no fim da Segunda Guerra… Releiam-se as palavras de Churchill em Zurique e perceba-se como o conceito de soberania partilhada é condição de paz e de sustentabilidade geoestratégica… Para já, quando tiver de fazer a revisão meu MG, vai ser uma carga de trabalhos… A ver vamos…
III. Uma última e boa notícia… Está marcado para 21 de outubro o lançamento mundial do próximo álbum das aventuras de Astérix. Nesse dia, serão postos à venda cinco milhões de livros da nova aventura, com publicação simultânea em Portugal e em vários países. Em ano de novo álbum, os autores Didier Conrad e Jean-Yves Ferri, os sucessores de Goscinny e Uderzo, revelam algumas pistas. Há uma protagonista feminina que vai complicar as vidas de Astérix e de Obélix, e que estará à guarda de centuriões romanos. Daí o pedido de "três voluntários para guardar a prisioneira" - que deve ser bastante simpática, pois toda a guarnição levanta a mão e se voluntaria. Há uma prancha inédita é muito mais explícita. Como diz Jean-Yves Ferri, estão lá várias pistas e afirma: "Antes de começar a trabalhar neste álbum, tinha pensado fazer viajar os nossos eternos irredutíveis até esta região que..." Não diz mais nada, afinal é tradição que as 48 páginas do álbum só sejam conhecidas exatamente no dia de lançamento. Aliás é normal haver uma alternância entre as aventuras passadas na aldeia e fora dela. Quanto ao desenhador Didier Conrad, que vive nos Estados Unidos, este acrescentou um desafio: " Ora reparem bem nos pormenores. Observem o desenho à esquerda e pensem um bocadinho!" Mas há várias informações nesta prancha que podem ajudar. A de que o druida Panoramix precisa de deixar a aldeia gaulesa e se ausentar. Ele acorda de um sonho e grita. Explica que "um velho amigo meu está a pedir a minha ajuda! Está a tentar contactar-me!. Deve ser grave. Ele não é do género de me importunar sem razão!" Se Obélix acha que Panoramix apenas está a inventar uma desculpa para não continuar o jogo, Astérix fica em dúvida sobre a importância do apelo do amigo. No entanto o druida garante que terão de viajar. Não sem antes preparar a poção mágica para se protegerem, e aí sim: "Partimos o quanto antes!" E a última pista é "a viagem é muito longa!". Este é o 39.º álbum das aventuras de Astérix, o quinto com assinatura desta dupla após Astérix entre os Pictos, em 2013, O Papiro de César em 2015, Astérix e a Transitálica em 2017 e A Filha de Vercingétorix em 2019. O novo álbum já está na fase final de conceção e, 60 anos após o aparecimento desta série de banda desenhada, regressa com um novo título depois de ter batido vários recordes no mundo editorial: 385 milhões de álbuns vendidos em 111 línguas e dialetos - em Portugal sai também em língua mirandesa. Temos assim um aliciante para o Novo Ano…
"O Mundo À Minha Procura" de Ruben A. (Assírio e Alvim, 2020) é uma obra-prima da literatura memorialística portuguesa, a merecer uma atenção especial no momento em que o centenário do autor continua a ser celebrado.
O MERECIMENTO INDISCUTÍVEL Neste ano tão estranho, cheio de medos e motivos tragicómicos, seria suposto termos celebrado com a elevação necessária o centenário de Ruben A.. No caso de Ruben havia a especial razão de se tratar de um autor que merece ser mais e melhor conhecido, apesar de ter sido um audaz cultor da língua e da cultura, como poucos no século que passou. Daí não haver dúvidas sobre que o futuro se encarregará de lhe dar o adequado merecimento. É verdade que tudo sobre a recordação da memória do escritor (reflexões, debates, lembranças) continua a estar previsto para o ano 2021, mas o importante é que fica lembrado – e devendo sobretudo continuar a ser lido. 2021 quase parece um daqueles tempos previstos pelo teatro do absurdo, em que se propõe acertar os relógios, depois de uma suspensão da máquina do tempo, estranhamente desorientada. O certo é que ainda não temos em funcionamento o mítico “Cronoscafo”, previsto nas aventuras de Blake e Mortimer e de algum modo na mente de H. G. Wells, e nada se sabe verdadeiramente sobre o efeito das desventuras do famigerado vírus descontrolado sobre homens e máquinas. Felizmente o tempo não parou e a terra continuou a girar. Por isso, temos na lista dos melhores livros do ano a reedição do genial O Mundo à Minha Procura. Importa dizer que Memórias escritas por quem tinha 46 anos seriam sempre um desafio audacioso. Mas nós, leitores ávidos, só temos a agradecer uma tal decisão extraordinária, uma vez que pudemos contar com uma obra-prima, retrato especial de uma sociedade que evoluía da autarcia para a internacionalização, descrita à luz do percurso multifacetado de um intelectual culto e cosmopolita de mente arejada, com um esmerado gosto. Num só volume, passámos a contar com esta pérola literária (Assírio e Alvim, 2020), que ombreará em linguagem e encenação moderna com as melhores Memórias portuguesas, que Ruben conhecia, aliás, muito bem. E porque conhecia bem, estas são diferentes de quaisquer outras e têm a marca indelével do pós-guerra, com um especial tom anglo-saxónico. “Dos quarenta aos cinquenta, limpa-se a casa. Põem-se as telhas onde faltam, instala-se um novo sistema, e no jardim das delícias, no passeio depois de jantar, nas madrugadas sem Deus ouvimos uma voz que nos buzina que dali para a frente a contagem é outra”. Felizmente, assim pensou Ruben e tal permitiu não termos um repositório de factos e circunstâncias, mas uma procura do tempo. Henry Miller afirmou, assim, que “a Autobiografia é o mais puro romance, porque a ficção está sempre mais próxima da realidade que o facto”. Se dúvidas houvesse, bastaria lermos Ruben A. e propositadamente não faço qualquer comparação com outros autores e outros cultores do género, pois este caso é absolutamente inimitável. “O que me interessa sou eu”. E há o debruçar sobre um poço fundo.
COMPREENDER O REALMENTE IMPORTANTE “Um dia compreendi a importância que teve para mim o Campo Alegre – o sítio, o cheiro, a vista, as árvores. Foi a fragrância quem me recebeu primeiro, facilitando-me no vaivém da ondulação distinguir as plantas e a terra que as recolhe”… E assim o escritor quis-se descobrir, na relação complexa entre o seu próprio lugar e a coexistência com os lugares dos outros, pelas forças e emoções por trás da vida… E assim encontramos um curioso retrato da sociedade portuguesa, onde “há um ciúme indescritível perante a coragem e perante a cultura. Que um dos seus membros se liberte pelo espírito ou pelo seu valor humano é o maior insulto que, eles, atrasados culturais, julgam que se lhes pode fazer. Sentem-se ofendidos, reagem de certo modo com maledicência, uma vez que não tendo nem grandes amores nem grandes ódios oferecem apenas o mesquinho da perseguição, fechando as casas, achando as pessoas uns pesos, ou votando a um ostracismo aqueles três ou quatro – em cada década só há também três ou quatro aves migradoras – bodes expiatórios da purga mental da sociedade, ancorados para toda a vida a um inferno. Esquecem-se da felicidade que irá acolher os eleitos, os que souberam fazer a escolha depois de anos de amadurecida visão, depois de terem estado sós”… Ruben A. pensava nos inúteis, nos cadáveres adiados que procriam, no dinheiro que alimentava o parasitismo, nas flatulências de pequeno efeito, nos ricos que criavam uma moral para si, na sociedade que temia o valor dos que assumem a coragem de procurar ver longe e largo. E ao longo da sua vida, encontrou vezes sem conta esses entraves e bloqueios, nunca tendo renunciado, porém, à independência de pensar pela própria cabeça, de ser inconformista e de ter consciência (desde muito jovem) do contraste entre o mundo absurdo do medo de falhar e a liberdade absoluta, que sentia no Campo Alegre… “Autor libérrimo e libertador” – lhe chamou Eduardo Lourenço. O sentido crítico, em ligação com o rigoroso conhecimento da História mercê de uma simbiose de método entre o rigor e uma rara intuição capaz de entender os grandes movimentos e tendências, permitiu-lhe ser um analista lúcido da realidade portuguesa, não esquecendo a lógica picaresca.
PORTUGAL HETEROGÉNEO E INDEFINÍVEL É um Portugal heterogéneo e indefinível que encontramos nas memórias de Ruben A., situado entre a tradição e a vertigem da modernidade, entre as raízes antigas da família e o fascinante mundo vulgar que a rodeava, ora visto da janela sobranceira de um Daimler familiar, ora considerado na leitura dos clássicos, que se impõe muito gradualmente no aproveitamento irregular do estudante (Garrett das Viagens na Minha Terra, Júlio Dinis da Morgadinha dos Canaviais e Camilo). “Camilo entendia-me. Depois de Júlio Dinis era ele quem me aproximava de um dia a dia verídico, cheio de suco, romance da vida, razão de ser no jogo de palavras cruzadas…” E se a literatura o entusiasma de um modo prospetivo, usando as potencialidades da língua com um misto de originalidade e de compreensão do carácter vivo e mutante da identidade, a natureza e o património cultural são fatores vivos de valorização humana: “Olho para tudo tendo como pano de fundo a intensidade colorida pela maior realidade de Portugal: o céu. O nosso céu é pessoal, claro, transparentem, grandioso, sonhador de terras longínquas – é um céu aberto”. E a defesa do património histórico: “É uma obrigação moral, nacional. Impõe-se no imediato que as vilas históricas, as cidades mais ricas do passado não sejam avassaladas por estranhos, que sabem deitar abaixo e nada fazer de arte no local da demolição”… E a ilustração desta preocupação a um tempo crítica e alegre projeta-se no genial romance A Torre da Barbela, recentemente reeditado, na expressão de José-Augusto França: um grande romance, dos mais importantes do século XX (Livros do Brasil, 2020). “Ao fim da tarde, antes do crepúsculo cantar as suas loas e sem se descortinar a realidade, apoderava-se da Barbela um sentido incógnito da existência. “Forte como as nacionalidades e rija como a têmpera da lâmina do Xasco, o maior escanhoador da Ribeira Lima, a Torre preparava-se para o banho noctívago na sua vida de séculos. Existissem ou não estrelas, fosse breu ou luar a jorros pelos campos marginais, o mundo abria-se então dividindo o tempo. (…) De noite ressuscitavam e, de companhia, traziam os amores e os ódios de outras eras e de outras sensibilidades. (…) Aquele ressuscitar transfigurava a Torre”. E assim se desenrola uma História portuguesa, através de fantasmas, com glórias e contratempos, mas sem ilusões que pudessem fazer esquecer vontade e a liberdade…
Acho interessante a perspectiva de um certo olhar de Augustin Berque (cf. Le sauvage et l'artifice: les Japonais devant la nature, Gallimard, Paris, 1986), ao colocar a sociedade, para efeitos de análise, como distinta do seu ambiente. Com este ela manterá certas relações: ecológicas, técnicas, estéticas, axiológicas e conceptuais, políticas. E sublinha que o conjunto dessas relações é unitário:
A sociedade é una no seu ambiente que é um (e isto tantas vezes quantas as sociedades que houver...). As relações supra mencionadas só devem ser diferenciadas para propósitos de exposição, já que, na realidade, cada uma contém em potência todas as outras, cada uma está presente em qualquer das outras.
Gosto desta achega, porque nos aproxima do meu próprio conceito de cultura, sobre o qual já muitas vezes escrevi alhures.
Na verdade, Augustin Berque chamará cultura precisamente ao comando dessa unidade, do ponto de vista da sociedade:
A cultura é, com efeito, o que confere alguma coerência e orientação ao complexo conjunto das dimensões da vida social, em função dela própria, enquanto distinta da vida biológica. Dito mais sobriamente: cultura é o que, pelo e para o homem, dá um sentido ao mundo - o homem sendo aqui considerado no seu enquadramento natural, isto é, em sociedade.
Noutro trecho do mesmo livro (Habitar em pureza), Berque, depois de recordar Hölderlin (dichterisch wohnt der Mensch: o homem habita poeticamente...) desenvolve:
Mas o homem também habita, e de modo mais manifesto, de acordo com certos valores. Na casa japonesa, a elevação do soalho - de altura variável, reduzida, por exemplo, a poucos centímetros nos apartamentos modernos, mas sempre presente - ligado à obrigação de se descalçar e tomar um banho quente quando se regressa do trabalho - define o interior por oposição ao exterior, sob o signo evidente da pureza. Na verdade, a cultura japonesa parece querer associar o tema do habitar ao da pureza.
Aliás, o vestíbulo (geikan), pequeno que seja, que marca a entrada de qualquer casa japonesa - e onde, por exemplo, nos descalçamos - está sempre ao nível do soto (o exterior), um degrau abaixo do uchi (o interior), a que acedemos subindo, para calçar os chinelos preparados para nós. Quem já habitou, ou apenas visitou, uma casa japonesa, terá notado como o chão que nela pisa está coberto por esteiras (tatami ) de palha de arroz, onde o nosso andar desliza silencioso. Mas também existem casas de tipo ocidental - algumas habitadas mesmo só por japoneses legítimos - em nada diferentes das que conhecemos e onde as regras atrás referidas até podem não ser aplicadas, sem que haja qualquer escândalo ou espanto por isso...
Aliás, se estivermos bem atentos aos comportamentos vários dos que nos rodeiam, verificaremos que, com maiores ou menores diferenças e matizes, cada um de nós tem a sua própria cultura, já que cada sistema de referências axiológicas e existenciais varia do do vizinho, pelo menos na respectiva intensidade de consciência. Como, também, a mesma pessoa terá reacções ou respostas diferentes perante situações semelhantes, de acordo com a variedade das circunstâncias. O ser humano é - sabe-lo bem, minha Princesa de mim - um peregrino imprevisível. Numa conferência proferida perante japoneses, Claude Lévi-Strauss afirmava:
No Ocidente, sucedem-se os estilos de vida, os modos de produção. Mas dir-se-ia que, no Japão, eles coexistem. E serão eles, em si mesmos, radicalmente diferentes dos nossos? Quando leio os vossos autores clássicos, sinto mais o desfasamento temporal do que qualquer estranheza. O Genji monogatari prefigura um género literário que a França só conhecerá sete séculos mais tarde com a obra romanesca de Jean-Jacques Rousseau: uma intriga lenta, encabrestada, toda matizada, em que evoluem personagens cujas motivações profundas nos são, como muito nas nossas vidas, misteriosas. Narrativa cheia de observações psicológicas subtis, e mergulhada num lirismo melancólico, em que o sentimento da natureza tem um papel tão importante como a impermanência das coisas e a imprevisibilidade dos seres...
Ise monogatari, ou Os Contos de Ise, foram escritos, quiçá, por volta do ano de 951... Digamos que são muito antigos, mas, pese embora estarem redigidos numa língua ainda muito tosca e de nem sempre fácil transcrição para japonês moderno, têm hoje lugar em qualquer compêndio ou colectânea de literatura, ou história da literatura japonesa. Traduzo, da versão francesa de G. Renondeau (Gallimard / UNESCO, Paris, 1969), um conto - que, como todos os outros se revela em tanka, poemas de cinco versos e trinta e uma sílabas - bem como as pertinentes notas explicativas:
Uma vez, um homem que estava em Musashi escreveu a uma senhora que estava na capital: «Se falar, tenho vergonha; se não falar, fico com pena.» Como remetente, no lugar da sua própria morada, escreveu: «Dos meus estribos de Musashi». E não voltou a dar notícias. Da capital, a dama escreveu:
Tal como nos estribos de Musashi, Bem presos às suas correias, confiamos, Assim nos estribos de Musashi Me apoio, apesar de tudo, apaixonada, E tenho confiança em ti. Sofro por não te inquietares comigo, como sofro Quando te inquietas, é abominável.
Ao ler esta carta, ele teve uma sensação difícil de suportar e disse:
Se perguntar por ti, admoestas-me, Se não perguntar, odeias-me. Em tal circunstância, que homem não morreria?
Musashi era uma província do nordeste do Japão, longe de Heian (Kyoto), famosa pela artesania de estribos de tipo coreano. (Lembra-te, Princesa, de que estavam no século X...) Mais concretamente, explica Renondeau:
Ele tem vergonha porque começou uma relação com outra mulher nessa região distante. Fica com pena porque lhe falta franqueza para com a mulher que ficou na capital.
O autor introduz muitos sentidos que obrigam a justapor duas traduções dos três primeiros versos. A expressão «estribos de Musashi (Musashi abumi) é estereotipada e associa-se a sasuga (correia / apesar de tudo) e a kakeru (estar suspenso / estar aborrecido). Os japoneses sempre gostaram destas expressões ambíguas, que despertam vários sentidos...
A questão da ambiguidade da língua japonesa, curiosamente, nada, ou muito pouco, tem a ver com o entendimento de um grupo para a acção. Já te falei várias vezes, Princesa, no nemawashi, esse «partir pedra» que, obrigatoriamente, precede sempre o início de qualquer trabalho em equipa: remói-se e volta a remoer-se o tema, a razão de ser e o projecto, até todos ficarem bem cientes de que falam do mesmo. Simplificando, é assim.
Mas, por outro lado, conserva-se e estima-se o jogo de subentendidos que sustenta a linguagem poética e humorística. A cultura é como o próprio ser humano: está sempre soto (fora) e uchi (dentro). Recordando Ortega e Gasset, repito, que sou eu e a minha circunstância, e não esqueço que sou um trânsfuga da natureza.