Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A cultura japonesa, desde os mitos fundadores, nunca tratou com inibição qualquer sexo ou relações sexuais. Estas são tão naturais como o mundo em que vivemos, não há razão para as demonizar como concupiscentes, nem para as culpabilizar como pecado. Já nas duas crónicas mais antigas, o Kojiki (712) e o Nihonshoki (720) isso se afirma. No Kojiki (ou Recolha de coisas antigas) se pode ler a descrição do nascimento da terra japonesa, resultante da cópula de duas divindades, uma masculina, outra feminina: Tenho em mim um sítio que sai para fora, disse Izanagi, e eu tenho um que é côncavo disse Izanami; e Izanagi prosseguiu: disto deveria nascer a Terra. Muito bem, respondeu a deusa. É ainda no mesmo Kojiki que lemos a história da deusa do sol Amaterasu omikami que, por zanga com seu irmão Susanoo, se encerra numa gruta, deixando assim o mundo às escuras. Para a tirar cá para fora, a deusa Ama no Uzume lembra-se de encenar uma dança em que o seu vestido se rasga e abre deixando à vista de todos os encantos da sua feminilidade: A deusa, no furor do transe, arrancou o tecido que lhe tapava o peito e, desatando o cinto, fez cair o vestido para exibir toda a sua nudez... Então, em uníssono, as oito mil miríades de deuses e deusas do planalto celeste desataram a rir. Eis que aqui se descreve como Amaterasu, alertada por tanto alvoroço, entreabriu a entrada da gruta e foi puxada para fora, ou ainda como o erotismo japonês tem, desde o início, algo de divertimento, de brincadeira, de comédia...
De qualquer forma, esse universo a que chamamos sexo nunca ali foi, propriamente, objeto ou sujeito de regras morais, excetuando talvez o período Meiji, quando, em sequela da abertura do Império do Sol Nascente ao Ocidente, também certos conceitos e valores de ordem ética foram tentativamente impostos pelas autoridades nipónicas competentes, ao comportamento sexual do comum dos cidadãos. [A moral política e socialmente correta então reinante no mundo anglo-saxónico tornou-se conhecida como moral "victoriana"]. Em contrapartida, apesar da muita consideração e respeito granjeados sobretudo pelas prostitutas de primeira classe, foi prevalecendo uma cultura de proteção da família (ou da "casa", a ie, como já vimos) enquanto pilar importante do sistema económico e social vigente. Este, por um lado, submetia a filha, mulher e mãe a uma vida regrada (e dura), mas garantia-lhes um estatuto funcional de especial qualidade.
O nosso quinhentista jesuíta Luís Fróis, arguto e rigoroso observador de muitas facetas da vida japonesa - que cotejava sistematicamente com os nossos próprios conceitos, usos e costumes - já em 1585 escrevia que a nossa gente lava o corpo sem se mostrar, mas no Japão homens, mulheres e bonzos se lavam em banhos públicos, tal como, à noite, na rua, em frente da porta de casa... Na verdade, confirmam em pleno século XXI Philippe Pons e Pierre-François Souyri (L’Esprit de Plaisir, Payot, 2020), os banhos coletivos, instalados designadamente em templos, existiam desde tempos remotos. Os «banhos públicos», que existiam nos burgos desde o século XIII, desenvolveram-se desde o fim do século XVI, com o nome de yuya. Homens e mulheres banhavam-se juntos sem que alguém se escandalizasse. Estava-se pois habituado a ver, desde a infância, pessoas nuas, homens ou mulheres. Aliás, é por isso que as pinturas eróticas apresentam corpos meio vestidos e raramente nus, porque os corpos, em si, não são eróticos... [Ter isto em conta talvez nos ajude a compreender a inocência básica dos campos nudistas. Tal como será interessante - embora à margem do tema deste texto - interrogarmo-nos sobre o porquê de Adão e Eva só terem descoberto a sua nudez depois de terem comido o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Pensamos na palavra de Jesus: não é o que entra no humano que é impuro; impuro é o que dele sai.]
Em 1810, ainda dois terços dos banhos públicos em Tokyo eram mistos, numa altura em que a simples autorização e existência dos mesmos seria impensável na China ou em qualquer país ocidental. Mas a política de restrição e interdição dos mesmos, iniciada já nos finais do período Edo e, rigorosamente, a partir de 1869, no início da era Meiji, conseguiu que em 1890 eles tivessem desaparecido de Tokyo. Para além de testemunhos mais antigos, como o de Fróis no século XVI, muitos outros nos expõem a realidade:
Carl Peter Thunberg, botânico sueco que residiu um ano na feitoria holandesa de Deshima (Nagasaki), escreve em 1776 que as mulheres não tomam qualquer precaução para cobrir a sua nudez quando se banham num lugar público, nem que se trate de sítio onde se exponham aos olhos dos holandeses e de todos os que por lá passarem; o francês conde de Beauvoir, em 1872, já no início da era Meiji, avisa: «Não vos escandalizeis: no Japão vive-se à luz do dia, não se sabe o que é pudor ou impudor... ...Todos para ali estão, aos molhos, homens, mulheres, rapazes e raparigas, como arcanjos... Esfrega-se, esfrega-se. Passeia-se, até se vem pedir um cigarro aos nobres estrangeiros [presumo que mirones]; as tatuagens mais esplêndidas dos homens brilham no meio de rosas cor de ninfas enleadas que os esfregadores profissionais ensaboam e limpam: aquela boa gente faz tudo isso com muito sangue frio, com ar de achar a coisa tão natural, que por um triz entraríamos no grupo sem pensar derrogar esse preconceito social que se chama «shocking»; o nosso já conhecido Basil Hall Chamberlain - que, em passo anterior desta rebusca do Japão, Lévy-Strauss apresentava como um sucessor de Luís Fróis no século XIX - afirmava que no Japão «a nudez é vista, mas não é olhada»; e Charles Grosbois, estudioso da cultura japonesa, dizia, por volta de 1960, que o banho japonês tradicional reunia homens e mulheres nus sem implicações sexuais.
Valerá a pena recorrer aqui à obra de Philippe Pons e Pierre-François Souyri acima referida para evitar conclusões imperfeitas ou apressadas. Cito: A atmosfera do banho público impunha alguma retenção e não era um lugar propriamente erótico. Mas não deixaria de ser um lugar de fantasmas, como testemunha um tríptico de Utagawa Kunisada (1786-1865) representando uma cena orgíaca ali se desenrolando. Muitas estampas apresentam cenas de copulação improvisada num banho público.
A estrutura das casas japonesas, com as suas leves divisórias e papel translúcido (shoji), não abafava os ruídos, deixava ver as sombras e favorecia a exposição dos corpos. Nas casas de gente abastada, não era raro ser-se visto a fazer amor, por qualquer criada ou criado que espreitasse - cena aliás muitas vezes representada em estampas eróticas. O mais das vezes, a criada contempla a cena com algum desejo, ou até se toca.
Mirone? Talvez não. Este conceito não aparece antes da era Meiji. Não se trata de surpreender à revelia uma cena considerada interdita. Os japoneses daquele tempo não tinham clara consciência de que fossem tabu as relações sexuais entre um homem e uma mulher que, livres, não eram, em si mesmas, objeto de opróbio. Contavam-se sem rebuço histórias ligadas ao sexo, desenhavam-se figuras sexuais e se, por acaso, se assistisse a jogos amorosos de um casal, tal era considerado permitido. Não existiam, nos meios populares, espaços íntimos como quartos de dormir, e, sobretudo no verão, as casas japonesas abriam-se sobre a rua. O ato sexual era frequentemente considerado como uma brincadeira.
Volto-me novamente para o excelente observador que foi o padre Luís Fróis, que notava como as raparigas japonesas (no século XVI!) podem ir onde muito bem lhes apetece, por um ou mais dias, sem terem de prestar contas a seus pais.
Aliás, as frequentes peregrinações a santuários vários eram pretexto para tais deslocações e, como os peregrinos eram alojados em salas comuns, sucediam encontros mais íntimos e muitas jovens então perdiam a virgindade, sem que tal ofuscasse fosse quem fosse. O nosso quinhentista jesuíta reparou em que as mulheres do Japão não ligam nada à pureza virginal e, quando a perdem, tal não as desonra nem impede de virem a casar-se. Curiosamente, o cônsul plenipotenciário dos EUA, Townsend Harris, anota, com data de 16 de janeiro de 1856, no seu diário, o teor de uma conversa que tivera com o vice-governador japonês: Perguntei-lhe então o que fazia um homem que, tendo casado com uma mulher que supunha virgem, veio a descobrir que afinal ela não o era. «Não faz nada, que poderia ele fazer? Isso já me aconteceu, mas que podia eu fazer? De qualquer modo, a culpa não era minha».
Deixo para posterior desenvolvimento temas decorrentes do acima relatado, incluindo questões relativas ao enquadramento social (e administrativo) da sexualidade, bem como ao seu tratamento estético e literário. Sempre que nos debruçamos sobre as diversas perspetivas religiosas, morais, jurídicas, culturais, sociais e legais pelas quais as variegadas humanas gentes foram olhando para essa complexidade a que chamamos "sexo", surpreende-nos o seu carácter e força viral: transmite-se a tudo e tudo influencia, qual princípio fulcral da vida, essa perseverança do ser no ser - de que tão bem fala António Damásio ou tão brilhantemente definiu Georges Bataille (l’érotisme c’est l’affirmation de la vie jusque dans la mort). Mas não serão, afinal, as culturas humanas que tornam complexa, libertina ou tabu, a própria expressão do nosso inescapável princípio vital?
Voltamos à evocação do teatro de Aquilino Ribeiro.
Sendo certo que se poderia limitar a duas peças principais, e que a sua criação literária, até pela exigência expressa da linguagem, não se adequa diretamente à expressão cénica, reconhece-se a qualidade e originalidade de escrita do teatro, repita-se, exigente que seja e é, mas com, implicitamente, um sentido de espetáculo que merece sempre ser evocado.
E isto, mesmo que se tenha presente o conjunto da obra de Aquilino Ribeiro e a especificidade, nem sempre adequada ao espetáculo, da sua linguagem literária mas sobretudo teatral: e tendo presente que as peças principais de Aquilino são “Tombo no Inferno” (1920) e “O Manto de Nossa Senhora” (1962).
Veja-se pois a escassez da dramaturgia em si mesma, e também a dificuldade, diga-se outra vez assim, da expressão cénica e de espetáculo em si mesmo: e efetivamente, na nossa opinião, a prosa romanesca de Aquilino, vasta e muito qualificada e justa e adequadamente respeitada que é, não remete para o palco.
A verdade é pois que nos limitamos aqui à análise de duas peças: “O Tombo no Inferno” (1920) e “O Manto de Nossa Senhora” (1962). Já sobre elas escrevemos na “História do Teatro Português” e também agora se assinala o centenário da primeira delas, ocorria no ano passado.
Em qualquer caso, o próprio Aquilino, que sempre referiu com detalhes de apreciação crítica a sua vasta obra literária, analisou com objetividade a sua escassa dramaturgia.
Num “antelóquio” publicado em 1963 na edição do “Tombo no Inferno”, Aquilino escreve: «Foi o “ Tombo no Inferno” construído sobre um episódio de fé e superstição, cuja realidade se situa já bastante aquém dos dias de hoje» assim mesmo… E acrescenta: «o meu escopo foi dar a angústia e desespero de homem pletórico de vida, não amando menos que um César, surpreendido, como um bandoleiro à esquina, pelo ucasse da morte»...
E nas notas de cena situa e esclarece os textos: assim, no “Tombo no Inferno” «a ação decorre em meios rurais da Beira Alta, princípio do século”.
E “O Manto de Nossa Senhora” tem uma “sala serrana marcada do fumo da cozinha”.
Cite-se a descrição/tipificação de personagens das peças: por exemplo, o Gaspar Roxo “sedentário e rico”, o Padre Facundo “baixo, grosso, largo de peitos”, o Evaristo “civilizado que condescende com o meio ou em vias de retrocesso”, a Joana Lorena “muito embiocada no xale” e tanto mais por aí fora!
Importa entretanto referir que não obstante o enquadramento regional de ambas as peças, e a tipificação da linguagem no geral não muito cénica, digamos mesmo pouca!... Ou como escreveu Álvaro Salema em «O Teatro de Aquilino Ribeiro» “o processo do romancista, do narrador vernáculo, sobrepõe-se à necessária economia verbal da transposição dramática”.
Mas reconhece e todos reconhecemos que nada disso afeta a qualidade literária das peças e obviamente a relevância do autor.
E mais: as suas análises literário-teatrais merecem também maior destaque.
Dessa língua, apesar de portuguesa, não são os portugueses os seus senhores e donos, antes ela senhora e dona de quem a fala.
Compreensível que toda a comunidade lusófona, nomeadamente via CPLP, coopere e participe a nível multilateral na sua preservação, promoção e internacionalização, inclusive na afetação e gestão de recursos.
Também as comunidades lusófonas no estrangeiro, ou culturalmente descendentes de lusófonos, ou filiadas culturalmente na lusofonia, são um capital cuja defesa e uso não podem ser deixados ao sabor de uma natural espontaneidade, baseada tão só em afetos e sentimentos, mesmo que valiosos. É necessário crer na convicção, poder e relevância social dos lusófonos, seus descendentes ou culturalmente filiados na lusofonia (mesmo que lusófilos), mobilizando-os na defesa de causas da língua portuguesa e da lusofonia, como ideia estratégica, para o exercício da cidadania plena e intervenção num mundo globalizado. O que poderia ser feito com o apoio de uma organização institucionalizada, do tipo CPLP, pese embora a sua natureza interestadual e intergovernamental.
E apesar dessas comunidades não deverem ser esquecidas a nível da língua e da cultura, não pode ser sobretudo a partir delas que se deve promover a nossa língua no exterior, dado que sendo uma língua de futuro, de vanguarda e estratégica tem, por inerência, passaporte para todos os continentes.
A par do idioma comum, a lusofonia pode e deve ser também uma das ideias e aposta estratégica de Portugal, demais países da CPLP e restante mundo lusófono.
O que propicia a venda de toda a espécie de bens culturais lusófonos e provenientes dos média. Que possibilita empregar excedentes de mão-de-obra causados pelo sistema de ensino, deslocalizando-os para onde necessários ao ensino da nossa língua, investigações, culturas afins, etc..
Sem esquecer que há comunidades lusófonas e lusófilas espalhadas pelo mundo (incluindo as portuguesas) letradas, de elevado nível de vida e poder de decisão, que têm laços afetivos, mantêm visitas regulares, têm apetência por bens lusófonos, a começar pelos dos respetivos países, sejam alimentares, culturais, desportivos ou outros, corroborado pelo poder dos lobbies e oportunidades como a da atual presidência portuguesa da União Europeia, em plena pandemia, podendo incentivar ajudas (por que não, por exemplo, delineando estratégias europeias de auxílio no continente africano a nível da COVID 19?).
Bem creio que os anos expõem uma sensibilidade do como foi a viagem com e sem restrições.
Chega-se, enfim, a um rodar que nos leva ao prometimento e nele o que afinal importa para nós aqui chegados.
Nota que te não quero preocupar, se estou a ir além ou aquém, do significado que pretendes que eu assuma com o teu gesto de me doar doadas as tuas realidades. Apenas e muito apenas, podes crer, tenho para mim que sempre caminhaste dentro de ti, sem exceção e sem consultas aos refúgios que te protegeriam.
Saibas igualmente que o meu instinto de preservação nunca foi uma arma adequada contra o mundo; talvez segredos, sim, o tenham sido, antes de descodificar a razão das vidas se fazerem paralelas.
Quanto à vigília das noites por causa da velhice, querido Luís Pedro, te digo que não valem os medos que se instalam.
Os dias são agora mais independentes e menos comum a existência. Nada tem que ver com explicações e não existe qualquer valor moral nos andarilhos.
Digo-te ainda, como carpinteira das memórias do que fui, e do que li e do que sou, e ainda como contrabandista das coisas que vão morrendo porque sim, que, se nestas entrelinhas encontrares razão, aceito pois o teu depositar nas minhas mãos do que nunca roubou o espaço da generosidade com que sempre nos demos, mesmo tendo nós sido vitimas de algumas qualidades.
Consente Luís Pedro, que um dia, deixe eu nas tuas mãos, a alegria, esse não sofrer extraordinário!
Quem nasceu num contexto de cristianismo tradicional talvez nunca se tenha dado verdadeiramente conta do que o cristianismo significou na História.
1. Na sua base, está Jesus de Nazaré, que nasceu uns 4 ou 6 anos antes da nossa era — isto deve-se a um engano do monge Dionísio, o Exíguo, encarregado de estabelecer no século VI o novo calendário. Filho de Maria e de José, teve uma juventude despercebida, trabalhou duramente em vários lugares como artesão. Foi discípulo de João Baptista, por quem foi baptizado, mas fez uma experiência avassaladora de Deus como Abbá (querido Papá), que o chamava a anunciar e a testemunhar o seu Reino, o Reino de Deus, Reino da verdade, da justiça, do amor, da alegria para todos. Uma notícia boa e feliz. A vida pública foi curta.
Em Jesus, o Reino de Deus estava actuante. Preocupou-se com a saúde das pessoas, com que não passassem fome. Curou doentes, física e psiquicamente doentes. Comia com prostitutas e pecadores públicos. A causa de Deus é a causa dos seres humanos e, por isso, proclamava com os profetas estas palavras postas na boca de Deus: “Ide aprender: eu não quero sacrifícios, mas justiça e misericórdia”. Ousava declarar: “O Sábado é para o Homem e não o Homem para o Sábado”: a saúde, a justiça, a misericórdia estão acima do culto. Por isso, entrou em conflito com o Templo, os sacerdotes, os escribas, os doutores da Lei... Assim, Jerusalém e Roma uniram-se, numa coligação de interesses religiosos e imperiais, para o crucificar. Ele podia ter negociado, mas não: foi até ao fim, para dar testemunho da Verdade e do Amor.
Os horrores da crucifixão não têm descrição. Os romanos consideravam-na tão humilhante que só a aplicavam aos escravos e estrangeiros. “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”, rezou Jesus, sempre confiante: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
2. Aparentemente, foi o fim. O enigma da história do cristianismo é como é que os discípulos, que tinham voltado, desiludidos, às suas vidas, pouco tempo depois estavam outra vez reunidos e foram anunciar que aquele Jesus crucificado é o Cristo, o Messias salvador. O que é que se passou naquele intervalo?
Como escreveu J. Duquesne, a História não pode dizer se Jesus está vivo ou se morreu para sempre, “o que pode dizer é que se passou alguma coisa naqueles dias, um acontecimento que, abalando aqueles homens e mulheres, abalou o mundo.” A ressurreição, mistério central do cristianismo, não é um facto verificável historicamente, ela é um “obscuríssimo mistério”, como diz o filósofo e teólogo Andrés Torres Queiruga. Na sua obra célebre A verdadeira história de Jesus, E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, conclui que é muito o que sabemos do Jesus histórico. “Nada é mais misterioso do que a história da sua ressurreição”, mas “sabemos que, depois da sua morte, os seus seguidores fizeram a experiência de algo que descreveram como a ‘ressurreição’: a ‘aparição’ de uma pessoa, que tinha realmente morrido, agora viva, mas transformada. Eles acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso.” Neste processo, criaram um movimento que cresceu e se estendeu pelo mundo. “Sabemos quem Jesus era, o que fez, o que ensinou e porque morreu; e, talvez o mais importante, sabemos como inspirou os seus seguidores, que, por vezes, não o entenderam, mas que lhe foram tão fiéis que mudaram a História.”
Essa experiência pessoal do Jesus vivo foi igualmente tão avassaladora para São Paulo que ele, de perseguidor dos cristãos, se tornou apóstolo, fez milhares e milhares de quilómetros, incansavelmente, a pé, a cavalo, de barco, para levar a Boa Nova de Jesus, o Crucificado-Vivente, desde a costa sul da actual Turquia, a bacia do mar Egeu (Filipos, Tessalónica, Atenas, Corinto), até Roma e projectando ir à Hespanha...
Mas São Paulo, na história do cristianismo, não é só fundamental pela universalidade que lhe deu. O seu papel decisivo consiste também na reflexão crítica sobre a identidade da fé cristã e as consequências sócio-políticas da sua verdade: Deus, ressuscitando Jesus, revela que está com Ele, com a sua mensagem do Evangelho, que é ele que tem razão. O teólogo François Vouga viu bem, quando escreveu que a ressurreição de Jesus, o crucificado, “implica uma revolução do olhar sobre a pessoa humana”. “Se realmente Deus se revelou como o Pai de um crucificado que perdeu tudo quanto um ser humano pode perder para lá da adopção de Filho, é claro que as linhas de separação religiosas, culturais e sociais pertencem agora a um mundo ultrapassado. A universalidade deve ser pensada como o reconhecimento individual de cada sujeito humano, sejam quais forem a sua nacionalidade, as suas pertenças, o seu sexo: “Já não há nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher” (Carta aos Gálatas 3, 28). Por isso, “ninguém, nem em Israel, nem na Grécia, nem em Roma, poderia, por exemplo, imaginar que mulheres ensinem, presidam à Ceia do Senhor ou sejam enviadas de uma cidade a outra como apóstolas”.
3. Foi pelo cristianismo que veio ao mundo a ideia de pessoa e da sua dignidade inviolável.
Lentamente, o cristianismo estendeu-se por toda a Europa, e a Europa foi cristã até aos séculos XVII-XVIII. O que se passou para que, num trabalho recente, o jesuíta Victor Codina, possa escrever: “Assistimos agora na Europa a um verdadeiro colapso da fé cristã..., o cristianismo é culturalmente irrelevante e foi exculturado. É um inverno eclesial europeu.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 20 FEV 2021
No livro La Ville Poreuse de Bernardo Secchi e Paola Viganò, lê-se que a porosidade é o conceito usado para descrever e interpretar os vazios do tecido urbano contemporâneo. Porosidade relaciona-se com a ideia da passagem lenta de um líquido, em queda, por uma massa filtrante e sólida. O líquido atravessa, por isso, um vazio que não é perfeito e que encontra pelo caminho outros corpos, que podem impedir ou facilitar a sua passagem. Os deslocamentos que se dão num tecido urbano são muito semelhantes, a nível macroscópico, aos deslocamentos de um fluído num meio poroso. E o tecido urbano é como que uma esponja porosa e permeável, pois só assim é possível averiguar a essência das relações entre os deslocamentos e a sua forma. Porosidade opõe-se a opaco e a impenetrável.
«Porosidade diz respeito às diferentes maneiras de utilização do espaço urbano e de deslocamento dentro da cidade pelos diferentes usuários, não somente humanos, mas também de outras espécies. A porosidade é uma descrição e uma atitude de projeto: uma maneira diferente e inusitada de conceber espaços (interstícios do tecido compacto, como jardins privados, espaços abertos na grande cidade moderna, passagem para pessoas e natureza nos espaços construídos descontínuos, parques, praças, jardins) e práticas (públicas, individuais e coletivas). Para trabalhar com a porosidade é preciso dispor de oportunidades para melhorar a acessibilidade e a permeabilidade do tecido urbano, aprimorando a qualidade do domínio público e aumentando as práticas públicas.» (Valva 2016, 61)
Ora, para que uma cidade se mantenha viva, necessita de movimentos contínuos. Para Secchi, porosidade não diz respeito somente à mobilidade humana (viaturas, bicicletas e pessoas), mas também à percolação das águas e aos movimentos dos elementos naturais (vegetais e animais). Para Secchi, uma metrópole socialmente integrada, é uma metrópole sem barreiras físicas, monetárias ou imaginárias. É uma metrópole, sem divisões e sem enclaves – é porosa, permeável, isotrópica, transparente e que atua em todas as direções. A isotropia, figura por excelência da democracia, opõe-se a uma organização piramidal e hierarquizada da metrópole radioconcêntrica. Secchi revela que o maior obstáculo à porosidade, à conectividade, à permeabilidade e à acessibilidade, é o imaginário que acredita que a ordem, em todos os seus domínios, coincide com hierarquia - hierarquia dos espaços verdes, dos cursos de água, das infraestruturas da mobilidade, dos lugares centrais e de sociabilidade. (Secchi e Viganò 2011, 46)
Para que a porosidade seja eficaz, tem de se garantir que os poros ou vazios estejam todos interligados. A cidade porosa, pretende, interligar as diferentes partes de uma cidade e de um território. Porosidade pode dar de novo significado ao território disperso e fraturado e principalmente ao sistema ambiental. Porosidade faz referência a densidades, a distâncias, à sociedade e à ecologia.
A porosidade de uma cidade pode encontrar obstáculos e barreiras físicas dispersos pelo tecido urbano - autoestradas, linhas ferroviárias, canais, muros perimetrais, zonas de atividades ou diferentes heterotopias (como hospitais, campus universitários, centros comerciais, prisões, cemitérios e museus). Ou barreiras imaginárias e sociais, tais como aquelas constituídas por zonas sensíveis e por comunidades encarceradas.
Por isso, é a porosidade que aumenta a diversidade ecológica e social, através da abertura de canais de comunicação eficazes. Uma metrópole porosa deve construir uma acessibilidade generalizada no território, através do cuidado com a configuração de uma infraestrutura da mobilidade e à dinâmica do movimento das pessoas, aliado a ciclovias e à rede viária de transporte público. As infraestruturas dividem-se, assim, em duas classes:
o tubo: estabelece troca dentro do território somente em poucos pontos bem definidos - estradas e autoestradas – e permite o fluxo eficiente, mas sempre que se introduz a alta velocidade diminui-se a conectividade.
a esponja: permite que cada pessoa se relacione com o território a qualquer momento. É uma massa filtrante. É uma rede urbana menor, de trama muito pequena e densa.
O modelo da esponja porosa, para Secchi, poderá fazer confluir ecologia, mobilidade e habitat. A cidade e todo o seu território, é irrigado por redes ramificadas, que como numa esponja, têm com o seu contexto uma relação osmótica. Numa cidade porosa as relações por osmose são muito importantes, porque a compacidade dos tubos pode reduzir ou mesmo eliminar todo e qualquer o fluxo urbano. É a forma de um tecido urbano que nos informa e influência, em grande medida, a quantidade e a qualidade de todas as deslocações. Para Secchi, é muito importante, por exemplo, estudar como é que as entidades (peões, bicicletas, carros e água) existentes num meio urbano, ou em geral numa rede territorial, podem utilizar o espaço à disposição para os seus deslocamentos, e pôr isso em relação com o desenho desse mesmo espaço. (Secchi e Viganò 2011, 46)
Para Secchi, porosidade é a fração de espaço dentro do qual os deslocamentos têm lugar. É uma relação entre o volume dos poros (espaços não construídos) e o volume total da esponja (área que a cidade ocupa). Uma grande porosidade significa que o espaço à disposição para o deslocamento é grande, mas isto não garante necessariamente, que os deslocamentos sejam, na verdade, valorizados. Por isso, a porosidade, por si só, não garante o fluxo e por isso precisa de se associar à conectividade, à permeabilidade e à acessibilidade.
Em relação à conectividade, uma grande porosidade não significa necessariamente uma boa mobilidade, porque nem sempre os poros estão ligados entre eles. As barreiras impedem a conectividade e contribuem para a existência de enclaves. A conectividade, por isso, é muito importante, porque é a garantia de que há movimento entre um espaço vazio e outro. Uma forte porosidade não garante forte conectividade, mas pode em muito contrariar a existência de uma cidade fechada e compacta.
Já a permeabilidade é uma medida que avalia a facilidade da travessia. Se os poros são isolados, o fluxo não se pode realizar. Para que haja fluxo, os poros precisam de estar interligados. A permeabilidade mede, não só, o nível de porosidade do tecido urbano, mas também o grau de conectividade, isto é, a possibilidade de movimento entre as diferentes direções. A grande porosidade não é suficiente para uma grande permeabilidade. Porosidade e conectividade são características que se relacionam com a geometria e o desenho do tecido urbano. A permeabilidade diz respeito, aos sujeitos que aí se deslocam. Diferentes tipos de fluídos percorrem os tecidos urbanos - há por exemplo tecidos que são permeáveis para peões e bicicletas, mas o são não para comboios e elétricos.
Por fim, acessibilidade é a medida que averigua a possibilidade efetiva de se passar de um ponto a outro, graças a um meio de transporte. Um espaço pode ser acessível por bicicleta ou a pé, mas não ser inacessível por elétrico ou metro. Porosidade, conectividade e permeabilidade são condições necessárias, mas não são suficientes para acessibilidade acontecer.
Para Secchi os principais problemas das cidades contemporâneas (sobretudo das grandes metrópoles) são as suas crescentes desigualdades e fraturas: entre o centro e as periferias; entre os lugares de exceção e os lugares esquecidos; e entre as suas diferentes estruturas sociais, económicas e físicas. E porosidade associada a conectividade, permeabilidade e acessibilidade são conceitos que poderão em muito contribuir para uma nova interpretação do território urbano. Estes são os instrumentos concetuais fundamentais para investigar e projetar o território urbano contemporâneo e na opinião de Secchi, também o território do futuro, e surgem a partir da identificação da forma, da força e da importância do vazio, entre os diferentes fragmentos de uma cidade.
Luís Sepúlveda (1948-2020) deixou-nos inesperadamente há um ano. Era um amigo de Portugal e a sua obra mantém-se atual, plena de humor e de sentido quase profético, como na “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar” (Porto Editora, 2008).
UMA MEMÓRIA VIVA
Ainda a pandemia do Covid-19 dava os seus primeiros passos e, regresssado das “Correntes d’Escritas”, Luís Sepúlveda foi das primeiras vítimas desta terrível peste que assolou o mundo e da qual ainda não nos libertámos. Com uma obra plena de vitalidade, aprendemos com o escritor multifacetado a importância da memória – memória de acontecimentos, memória de pessoas, que transmitia intensamente. Mas a sua personalidade irrequieta fazia questão de lembrar a tragédia ocorrida no Chile em setembro de 1973. Enquanto pensávamos que esse país parecia ser a exceção numa longa lista de pronunciamentos militares em que a América do Sul era pródiga – eis que o Chile se tornou, com a queda de Allende, mais uma triste confirmação de que a liberdade e a democracia nunca estão adquiridas. E Luís Sepúlveda era o exemplo de alguém que representava o entusiasmo dessa juventude chilena que acreditou na vitalidade inovadora de uma democracia social audaciosa. O certo é que nesse ano de 73 muitos sentimo-nos derrotados com a vitória de Pinochet. E nos olhos de Luís Sepúlveda percebíamos a expressão de uma esperança então derrotada, mas o ânimo de quem acreditava generosamente na força da liberdade, do pluralismo e da capacidade de fazer renascer a democracia no Chile, depois de lições dramáticas que foram sendo aprendidas.
UMA VIDA CHEIA
Nascido em 1948, teve uma vida cheia – como jornalista, militante político, romancista, realizador de cinema e argumentista. Logo em 1970 venceu o Prémio Casa das Américas pelo seu primeiro livro, “Crónicas de Pedro Nadie”, e uma bolsa de estudo na Universidade Lomonosov de Moscovo, onde apenas ficaria cinco meses. Foi membro ativo da Unidade Popular chilena nos anos 70, mas partiu para o exílio com a chegada da ditadura militar. Viajou pelo Brasil, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Peru. Viveu no Equador entre os índios Shuar, numa missão de estudo da UNESCO. É essa experiência que inspirará o seu romance “Um Velho que Lia Romances de Amor” (1989) – um verdadeiro hino de amor à floresta amazónica, que se tornou uma das obras-primas da literatura latino-americana, em que o humor se liga ao tratamento muito sério de um tema candente. Em 1979 alistou-se nas fileiras sandinistas, na Brigada Internacional Simon Bolívar, e depois da vitória da revolução, trabalhou como repórter. Em 1982 partiu para Hamburgo, atraído pela literatura alemã, militando no movimento ecologista, percorrendo os mares do mundo com a Greenpeace, entre 1983 e 1988. Em 1997, instalou-se em Gijón, em Espanha, na companhia da mulher, a poetisa Carmen Yáñez, tendo fundado e dirigido o Salão do Livro Ibero-americano, destinado a promover o encontro de escritores, editores e livreiros latino-americanos e europeus. Cultor da amizade, o escritor disse em “Jantar com Poetas Mortos”: “os amigos não morrem, simplesmente morrem-nos, uma força atroz mutila-nos da sua companhia e continuamos a viver com esses vazios entre ossos”. A força de memória está ainda na expressão de uma personagem desse livro – “enquanto falarmos deles e contarmos as suas histórias, os nossos mortos nunca morrem”. O método do escritor era o da deambulação e a partir dela contava histórias ouvidas a pessoas que foi conhecendo. O ofício de escritor era, assim, captar pequenos detalhes da existência, para que os afetos permanecessem. E considerava-se um cidadão-fronteira, entendendo essa linha não como um lugar de separação, mas como um modo de unir, um ponto de contacto, de diálogo e de novos conhecimentos. No fundo, entendia que assim poderia compreender melhor a natureza, na militância ativa dos últimos anos da sua vida na causa ecológica e na defesa da natureza. A “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar” (2008) é ilustração viva dessa militância ecológica. Zorbas é um gato grande, preto e gordo, a quem uma gaivota moribunda apanhada por uma maré negra de petróleo deixa dois compromissos: guardar o ovo que acabara de pôr e criar uma pequena gaivota, bem como ensiná-la a voar. Tudo com a ajuda dos seus amigos Secretário, Sabe-tudo, Barlavento e Colonello, numa tarefa dificílima para um bando de gatos habituados à vida dura do porto de Hamburgo… E aqui se sentem as forças da liberdade e da generosidade – num combate de todos em defesa da natureza para que outras gaivotas não fossem mais vítimas de desastres semelhantes.
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
Amigo de Portugal, Luís Sepúlveda recebeu em 2016 o Prémio Eduardo Lourenço – pela intervenção relevante no âmbito da cooperação e da cultura ibérica – e sentiu-se especialmente orgulhoso com essa distinção. Em “A Lâmpada de Aladino” (2008), um conjunto de contos marcados pela imaginação e pela procura de personagens inesquecíveis, deu-nos o retrato de Valdemar do Alentejo, um português impagável: “um personagem absolutamente real (diz o escritor). E convém explicar que se trata de um verdadeiro pirata. Não confundir com corsários, flibusteiros ou bucaneiros. Os verdadeiros piratas que eram homens livres no mar, foram muito poucos. Na verdade, só houve piratas em três lugares, No mar do Norte, por onde andou um pirata chamado Klaus Störtebeker, que assaltava navios da Liga Hanseática e distribuía o saque pelos pobres à laia de Robin Hood, nas costas africanas, sob forma de uma república pirata berbere, com um código de conduta ético rigorosíssimo, e depois no Estreito de Magalhães, onde existiram duas confrarias de piratas. Uma dirigida por dois holandeses, desertores da marinha dos Países Baixos, o Van der Meer. E outra que tinha como capitão o Alentejano. Apesar de distantes no espaço e no tempo todos tinham, a mesma bandeira vermelha e negra, como a dos anarquistas. Uma curiosa coincidência. Isto, e uma ideia elementar de justiça – devolver aos mais fracos o que lhe tinha sido tirado pelos mais fortes… Entusiasmado com essa ideia, Luís Sepúlveda preparava um novo romance baseado nas memórias e nos mitos cultivados em torno da sua recordação. Alguém que existiu realmente e que talvez tenha sido executado nas Ilhas Molucas, paraíso das especiarias. Luís Sepúlveda era uma presença assídua entre nós, tendo participado em quase todas as 21 edições do Festival Correntes d’Escritas, na Póvoa do Varzim, a última das quais entre 18 e 23 de fevereiro de 2020. A sua lembrança está, pois, bem presente entre nós. Ao lermos os seus livros, plenos de humor e de uma séria ponderação das questões fundamentais que nos assaltam, é como se ele estivesse sempre a regressar, com a sua generosa força da liberdade…
Guilherme d'Oliveira Martins chamou-me a atenção para o facto de, na minha última carta, eu atribuir a autoria de uma quadra de Mário de Sá Carneiro a António Ferro: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto, / e hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim. Tem toda a razão o meu amigo Guilherme: na verdade - e tal qual os transcrevo - estes versos integram um conjunto de quadras feitas e reunidas por Sá Carneiro numa poesia intitulada Dispersão que, aliás, dá nome a um livro, publicado em 1914, mas composto em maio de 1913, marco cronológico das edições da obra poética do autor. Terá acontecido que António Ferro, amigo de Mário, usou aquela primeira quadra de Dispersão como epígrafe (ou dedicatória) de um livro de poemas seus: Saudades de Mim. Li-os em 1957, ano da sua publicação, e nunca mais vi o livro. Mas a quadra de Sá Carneiro, que o encabeçava, ficou-me na memória e, quiçá por tê-la lido no livro de Ferro, associei-a a este. Mas terá sido assim? Estaria essa quadra mesmo lá? Eis que é antiga a lembrança, nada posso garantir para além de ter decorado esses versos... Curioso ainda é o facto de eu não encontrar, entre as dezenas de milhares de livros da minha biblioteca pessoal, a obra de António Ferro, mas de lá estarem as opera omnia de Mário de Sá Carneiro, cujo 2.º volume, na edição da Ática (em 1953), dá pelo nome de Poesias e inclui Dispersão e suas quadras. Neste volume, o adolescente que eu então era registou a data em que o adquiri: CALMO (as letras iniciais do meu nome e apelidos) 1956. Possuo ainda outras edições das Poesias, incluindo do poema Diapasão, como, por exemplo, a do Círculo de Leitores (1990) ou a chamada Obra Essencial, planeada por Fernando Pessoa, conforme desejo expresso do autor, e editada pela E-Imprimatur em 2016. Dessa respigo estes trechos do poema de Pessoa (1934) cujo título é SÁ CARNEIRO:
Nesse número do Orpheu que há-de ser feito Com rosas e estrelas em um mundo novo.
Nunca supus que isto que chamam morte Tivesse qualquer espécie de sentido... Cada um de nós, aqui aparecido, Onde manda a lei e a falsa sorte,
Tem só uma demora de passagem Entre um comboio e outro, entroncamento Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento; Mas seja como for segue a viagem.
[...]
Hoje, falho de ti, sou dois a sós. Há almas pares, as que conheceram Onde os seres são almas.
Como éramos só um, falando! Éramos como um diálogo numa alma. Não sei se dormes... calma, Sei que, falho de ti, estou um a sós.
A releitura destes versos traz-me memórias da amizade, em tempos bem mais antigos, entre Montaigne e La Boétie: esqueço a distância do tempo e das culturas, pensossinto a igual consciência de pertença e comunhão com o próximo. A morte de um amigo é sempre também um pouco de mim que me deixa só. [E todos nós o teremos experimentado, sobretudo depois de chegados a uma certa idade: ainda quando iniciava esta carta para ti recebi a nova da morte, consequente a uma contaminação por covid 19, do meu grande amigo e compadre Miguel João Rodrigues Bastos. Tê-la-ei sentido mais, talvez por não ter sequer havido uma despedida, nem a possibilidade de eu dar um abraço amigo à família...]
Quando, em carta anterior à presente, Princesa de mim, citei a quadra que de cor guardava, não pretendia falar doutro tema que não fosse a meditação que então fiz contigo. Hoje, já que veio à baila Mário de Sá-Carneiro (o hífen entre apelidos pondo-lhe o nome "à francesa", tal como ele quis durante o "exílio" parisiense), falaremos mais sobre o poeta.
No prefácio que escreveu para a edição do Círculo de Leitores acima referida, Nuno Júdice começa por afirmar; Podia-se começar por uma constatação: a de que a escrita de Sá-Carneiro é uma escrita doente. Não é uma doença física, mas «qualquer coisa de intermédio», como ele próprio diria - entre o corpo e a alma. E esta divisão reflete-se dolorosamente na sua imagem do mundo, transportando para o interior da ficção e da poesia um drama que o consumirá até ao instante do suicídio. Esse «qualquer coisa de intermédio» acima referido é verso de um poema, o 7, de Indícios de Ouro:
Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro.
Este é de 1914, mas já em 1911, no seu A um suicida, Sá-Carneiro escrevia:
Tu, morreste.
Foste vencido? Não sei. Morrer não é ser vencido, Nem é tão pouco vencer.
Eu, por mim, continuei Espojado, adormecido, A existir sem viver.
Foi triste, muito triste, amigo, a tua sorte - Mais triste do que a minha e malaventurada. ... Mas tu inda alcançaste alguma coisa: a morte, E há tantos como eu que não alcançam nada...
Pensossinto que a morte, precisamente por ser certa e certeira, não é algo que deva estar ao nosso alcance. Não é preciso. Ela virá, e nunca sabemos nem o dia, nem a hora. O que podemos sempre tentar alcançar é a vida, na medida possível do nosso alcance. Afinal, é ela a nossa vocação, a alma que nos anima (perdoa-me o pleonasmo). E a vida é-nos dada, não nos pertence: chama-nos, mesmo que para fora de nós. É no dom de si mesmo que se semeia o amor e se comunica (e comunga) a vida. Mais um dos nossos humanos paradoxos: se o grãode trigo lançado à terra não morrer, permanecerá sozinho. Mas se morrer dará muito fruto. Quem amar a sua vida perdê-la-á... (João, 12, 24-25). E até sem citar os evangelhos, Georges Bataille escreveu que l´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort...
O drama, a tragédia, de Sá-Carneiro foi nunca ter percebido que é grande ilusão alguém ter saudades de si mesmo. Como, afinal, num texto publicado na revista Athena, nº. 2, Novembro de 1924, escreve, a dado passo, Fernando Pessoa: Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor. Dito que não é assim tão contrário ao que escrevo acima, já que pensossinto que tais deuses não morrem de amores.
Mas para nos dar uma visão pela perspetiva de um crítico literário, trago-te agora, Princesa de mim, uns trechos de João Gaspar Simões, que recolhi do estudo que esse crítico publica em apresentação do poeta. Pensando também como teriam certamente cabimento nas considerações da minha carta anterior, se então me tivesse lembrado de Sá-Carneiro, logo quando parti duma citação de versos seus pelo António Ferro. Vamos a Gaspar Simões:
Os simbolistas, de acordo com os progressos da psicologia, inverteram os termos da inspiração. O poeta deixou de se inspirar na natureza, para se inspirar em si mesmo. Já não precisa de olhar as águas para ver que as mágoas correm como elas. Começa por olhar as suas mágoas e só depois procura, no domínio dos símbolos, quer naturais quer espirituais, uma correspondência equivalente... ...O simbolismo é, portanto, um movimento poético em que o centro da poesia está no poeta. O poeta constitui-se fulcro do poema. A poesia não é uma introversão do mundo no poeta; o poeta é que o extroverte. O mundo está nele: dele, poeta, é preciso partir para encontrar o mundo...
... Tendência nativa, vento de feição - eis que o simbolismo nos trouxe os mais subjetivos dos nossos poetas. Mário de Sá Carneiro é a quinta essência desse simbolismo: será mesmo o seu símbolo vivo.
Todavia, não foi por isso que citei a primeira quadra de Dispersão. Fi-lo tão somente por ter guardado comigo aqueles versos, durante muitos e muitos anos. Talvez por eles me terem dito algo que, aos meus quinze anos, já sentira como tentação de auto refúgio e que, a pouco e pouco, paulatinamente, por lindos que os versos fossem, penseissenti que devia ultrapassar, buscando na minha circunstância, não a minha essência impossivelmente reconhecível, mas a minha existência efémera na sua razão de ser estando.
Finalmente, Princesa de mim, devo confessar-te que, ao reler escrupulosamente o poema Dispersão, alertaram-me a memória três outras quadras que, se bem recordo agora, me impressionaram há quase sete décadas, negativamente. Aqui vão:
Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo: Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro Nem as linhas que projeto: Se me olho a um espelho, erro - Não me acho no que projeto.
Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada! Tenho a alma amortalhada, Sequinha, dentro de mim.
E concluo com a primeira: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto... Pois não será a ensimesmar-nos que daremos com uma saída airosa para qualquer crise do drama da nossa tão paradoxal condição humana. Não sei em quê a educação e o meio possam ter contribuído para Sá Carneiro ter sido o que foi. É esse um problema a que me não quero abalançar - escreveu, em 1940, João Gaspar Simões. Tampouco quero fazê-lo, mas talvez se possam situar já na infância do poeta algumas das raízes do tão doentio narcisismo que o desesperou. Perde-se no labirinto de si, não só o órfão de mãe mimado por avós e uma ama, e cujo pai se ausenta frequentemente, mas todo aquele que, talvez por outras razões, acaba por se sentir apenas na saudade de um si mesmo utópico que, por ser imaginável, ele próprio todavia desconhece. O encontro de mim com eu mesmo só será possível pelo Outro, que me dá a minha auto descoberta na minha circunstância. Na cultura japonesa, por exemplo, a contemplação da natureza é anterior à poesia. E brevemente te falarei, em rebusca do Japão, do conceito de fusosei, que o filósofo Watsuji Tetsuro define com elemento estrutural da existência humana. E talvez seja interessante comparar o livro dele, intitulado, na versão francesa Fudo, le milieu humain com uma obra de Teilhard de Chardin, lida também na minha adolescência, Le Milieu Divin.
O velho que hoje sou aprendeu desta vez que até as falhas de memória podem abrir-nos portas para novas peregrinações. Bem haja, Guilherme amigo!
Evocamos hoje as origens históricas do teatro português, a partir de referências e citações que documentam a realização de espetáculos, e como tal a documentação relativa a textos, a autores e a espetáculos que marcaram na sua forma a cultura e a sociedade da época.
E sem querer aqui desenvolver e documentar excessivamente as referências históricas desta tradição, que esteve na origem do teatro-espetáculo produzido e representado em Portugal, será de qualquer forma oportuno referir as origens do teatro-espetáculo entre nós.
A tradição vem da Idade Média e como tal é analisada.
Para não ir mais longe, basta então referir por exemplo que Fernão Lopes, na "Crónica de D. João I", evoca os momos, os entremezes e os espetáculos realizados na Corte de D. Afonso V. Na "Cónica de D. João V evoca as festas nupciais e os espetáculos então realizados.
E Zurara refere também os chamados momos da época: eram espetáculos cénicos adequados à expressão literária de então.
Ora, vale a pena lembrar que na 2ª edição da peça "A Morta", escrita em 1890, Henrique Lopes de Mendonça afirma que "em Fernão Lopes encontrei o modelo shakespeariano e formidável que intentei transplanta para a cena", nada menos! Refiro essa evocação na minha "História do Teatro Português" (2001).
E também Luís Francisco Rebello na sua "História do Teatro Português" remete para a "Crónica de D. João I" a descrição de Fernão Lopes dos "vários e luzidos jogos" celebrados no banquete do casamento de D. João I em 1387. E desenvolve a descrição (e citamos) dos "momos ordenados pelo Infante D. Henrique por ocasião das festas da epifania em Viseu no ano de 1414 a que se refere Gomes Eanes de Zurara na "Crónica da Tomada de Ceuta" bem como numerosas exibições de espetáculo teatral de época que iriam determinar evocação sobretudo (mas até hoje) a partir do teatro romântico.
Ora, vale a pena evocar Fernão Lopes na origem de peças neo-românticas, como as de Henrique Lopes de Mendonça.
Porque efetivamente, na segunda edição da sua peça "A Morta", escrita em 1890, Lopes de Mendonça relaciona os seus principais títulos de teatro histórico, designadamente "O Duque de Viseu" e "Afonso de Albuquerque" com a forte dimensão cronológica do teatro histórico da época. E cita então Fernão Lopes.
Ora como já tivemos ocasião de escrever na "História do Teatro Português", "isto aponta para um escrúpulo de rogos históricos que a forma não acompanha, pois qualquer destas peças é escrita em verso, aliás de cuidadosa feitura".
Mas isso não obsta ao rigor da pesquisa que serviu de base à interpretação cénico-dramatúrgica do teatro de Lopes de Mendonça. Como de certo modo marca a reconstrução dos temas históricos numa renovada abordagem criativa, que separou esta fase da dramaturgia da tradição romântica e ultra-romântica precedente.
A expressão romântica do teatro, em si mesma evoluiu: mas isso não impede que tenham desaparecido os valores que desde sempre integraram a expressão cénico-dramatúrgica de sucessivas culturas que duram desde sempre.
E como obviamente não impede, antes pelo contrário, a manutenção do património material que lhe serve de suporte.
Iremos pois abordando o vasto e variado tema global.
No campo jurídico a preservação, divulgação, promoção e internacionalização de todas as línguas como um bem jurídico comum da humanidade, por um lado e, por outro, da língua portuguesa como bem jurídico partilhado de todos os lusófonos, nunca inviabilizou uma pesquisa multiforme de vários projetos para uma língua universal, que falharam, mesmo após a criação da primeira língua artificial de vocação universal e de uma pretensa língua neutral.
Estamos no tempo das línguas internacionais, de comunicação global, transitando-se da ideia de uma língua universal para a de uma internacional de comunicação global, dotada de um fim funcional e prático, que nem o esperanto ousou limitar ou ultrapassar, apesar de ser o exemplo mais bem conseguido de língua universal.
O fim da segunda guerra mundial, foi sobretudo o triunfo doa anglófonos, da língua inglesa, porque os países dela saídos aconchegaram-se no abrigo da economia sobrevivente dos países falantes de inglês, em particular dos Estados Unidos da América, extensivo às nações do mundo ocidental que, por arrastamento, se aplicou às economias nipónica e asiática em geral. Os então países do bloco de leste ficaram fora deste espaço, caindo no de influência russa, que foi uma questão de tempo, como hoje sabemos.
Prevalece a ideia de que os que detêm o poder impõem a sua língua, sejam conquistadores, colonizadores, vencedores ou administradores.
Mas há que não esquecer que os conquistados, colonizados, perdedores e súbditos de outrora podem ser os conquistadores, colonizadores, vencedores e administradores de amanhã, como sucedeu após a intervenção americana na segunda grande guerra, dada a sua força económica e militar, veiculando a língua inglesa, do antigo colonizador europeu, seu ex-inimigo, nomeadamente aquando da independência.
Também o futuro do nosso idioma será essencialmente decidido fora de Portugal, não só pelo potencial económico, cultural e demográfico reconhecidamente elevado de alguns falantes do seu núcleo duro (ainda que em países por desenvolver ou em desenvolvimento), mas também pela necessidade de uma política linguística dirigida a falantes não nativos que a difunda e promova para além do seu restrito espaço geolinguístico.