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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Jacques Tati e o desejo de objetificação na vanguarda moderna.


No livro PlayTime. Jacques Tati and Comedic Modernism (2020), Malcom Turvey escreve que Monsieur Hulot, não é um reacionário. É uma personagem capaz de transformar o espaço mais rígido e estático da arquitetura moderna, só com a sua presença de comediante.


Ao longo do livro, Turvey insiste, que os filmes de Jacques Tati tentam contrariar a estandardização e a uniformização inerente à vida moderna e à cultura de massas, no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, através da sua atenção ao único e ao singular. Monsieur Hulot contraria a uniformização, o autoritarismo, o anonimato e a falta de comunicação que dominam o ambiente mecanizado, porque Tati sempre se afirma em defesa do ser humano mais simples. Deste modo, Turvey revela que Tati não enfatiza as formas do passado através de uma atitude nostálgica e nem rejeita o progresso, tenta sim humanizar a arquitetura através da sua comédia.


No livro, lê-se que Tati não acredita que os indivíduos sejam meros produtos da arquitetura que os rodeia. Muito pelo contrário, é a arquitetura que reflete as atitudes dos seus habitantes, isto é, assim que as suas personagens afirmam uma atitude autêntica e lúdica em relação à vida, o espaço físico moderno mais austero pode transformar-se num verdadeiro recreio. Logo, Turvey declara, que nos filmes de Tati, as importantes dimensões da vida, e principalmente a dimensão cómica e caricatural, são introduzidas através da imperfeição. Para o autor, a ambição principal de Jacques Tati é, por isso, modernista, porque através da figura do comediante, que não se apega às regras da sociedade, tenta ensinar (durante a duração de um filme) a entender a nossa própria vida, com mais alegria e poesia, não importando a arquitetura que nos rodeia. 


Turvey demora-se a descrever a importância da vanguarda moderna europeia e a sua preocupação distinta com o comediante, como objeto ou máquina abstrata e anónima destituída de qualquer dimensão psicológica. Turvey explica que Tati, tal como o pintor Fernand Léger, acreditava que o filme poderia ser, por excelência, o meio de arte visual dedicado a revelar o valor intrínseco (e cómico) do objeto plástico, tal como tinha acontecido na pintura moderna. Isto porque, para Turvey, a subjetividade, a sentimentalidade e a literatura burguesa e teatral, anterior à vanguarda, distorciam a verdadeira mensagem que vem límpida através da simples imagem do objeto. E Tati utiliza o objecto plástico para ajudar a construir a comédia dos seus filmes.


No livro descobre-se que Monsieur Hulot é esse comediante, anónimo e sem dimensão psicológica, com o poder e a capacidade de nos ensinar a ver o mundo quotidiano (com todos os seus objectos) como o espaço cómico primordial.


Turvey revela que os modernistas da primeira vanguarda se identificavam com a figura do comediante, pela sua excentricidade, criatividade e imaginação e sobretudo pela sua incapacidade de integração numa sociedade que preconizava valores materialistas, utilitaristas, mecanicistas e sobretudo racionalistas. Ao lermos o livro, temos oportunidade de perceber que o comediante, da primeira vanguarda modernista, apesar de desprovido de subjetividade, é símbolo de vida. É o representante máximo da integridade afirmativa da vida. É ele que nos ensina a resgatar a vida poética, que está presente em todo o ser humano desde o nascimento e que se desenvolve durante a infância, mas que acaba por desaparecer por imposição da mecanização da sociedade moderna e por exigência de todo o indivíduo inerte, que adere a toda e qualquer ordem massificada.


Turvey afirma também que o comediante representa a criança, livre de toda e qualquer norma social e é a expressão de todos os impulsos reprimidos ou proibidos. É a pureza de consciência capaz de uma sabedoria que refunda a ordem das coisas. É simultaneamente sabedoria e eterna inocência, alegria e sofrimento, magia e tristeza, beleza e estranheza, individualidade e generalidade. Através de Turvey, apercebemo-nos que os filmes de Tati conseguem restaurar no indivíduo essa inocência original, mas consciente.


Monsieur Hulot ao ser a representação do indivíduo banal, simples e anónimo, sem ser intencional, e sem ter a interioridade psicológica associada à burguesia, personifica todo o indivíduo que tenta escapar do mundo mecanizado. Por isso, inadvertidamente, Hulot aparece como o pensador livre, que vive do inesperado, da criatividade e do inconformismo. Hulot mostra-se sempre perplexo e curioso com os objetos e ambientes como se os experienciasse e os estivesse a ver pela primeira vez. A sua presença, por si só, afirma vitalidade a qualquer ambiente arquitetónico.


Por isso, para Turvey, Jacques Tati partilhava interesses com grande parte da vanguarda do início do século XX, cujo objetivo era o de organizar uma nova aproximação à vida mais verdadeira, através do simples objeto da arte. Tal como os dadaístas, os surrealistas e outros grupos da vanguarda, Tati ansiava por transformar a própria vida quotidiana, porque questionava a racionalidade cega do quotidiano burguês. Turvey argumenta que a pretensão vanguardista de Tati é esta, a de superar o abismo que existe entre a arte e a vida e naturalmente entre a arquitetura e o ser humano.


Lê-se no livro que, tal como Duchamp e os cubistas, ao usarem objetos do dia a dia nos seus ready-made e colagens, Tati usa os objetos e a arquitetura de maneira cómica e não intencional, para (re)direcionar a atenção do espetador para o potencial que já existe no mundo real, na vida de todos os dias. Não esqueçamos que as primeiras experiências, dos anos 1910 e 1920, na arquitetura, surgiram associadas a estas ideias de vanguarda. A intenção da vanguarda, ao dissolver a arte na vida, faz da abstração o meio de expressão mais adequado, na medida em que se declara um desejo de anonimato e de objetificação. Afirma-se uma procura por restaurar o ser humano livre, por elevar um espírito de verdade e por reconquistar uma comunicação mais sincera.


Para Turvey, a inclusão de personagens secundárias no humor dos filmes de Tati é uma componente importante da comédia democrática. Mas o mais extraordinário, conta Turvey, é que o humor de Tati, nessa tentativa de abstração e de objetificação, se estende para o espaço físico, para os objetos, para os sons e para as cores.


Turvey observa que todos vanguardistas eram fascinados pelo papel dos objetos e é de facto isso que acontece nos filmes de Tati, porque todo o objecto e todo o espaço físico faz parte integrante da comédia. A personagem de Monsieur Hulot tem uma atitude modernista porque dá um novo significado à arquitetura ao, inadvertidamente, alienar-se dos valores materialistas e de massificação.


Ora, o autor conta que, por exemplo, a casa dos Arpel, no filme Mon Oncle, é uma colagem de elementos estilísticos associados à arquitetura modernista doméstica dos anos 1920 e que foram escolhidos porque estavam na moda. O colaborador artístico de Tati, Jacques Lagrange descreveu a casa dos Arpels como uma montagem absurda, que consistiu em bocados de arquitetura, vistas numa variedade de revistas, que foram recortados e colados. E o resultado é uma pirâmide assimétrica de cubos maciços, com janelas que parecem olhos. Turvey sublinha a ideia de que, embora, Tati utilize, certos elementos da arquitetura do movimento moderno, não o faz para criticar a arquitetura, mas sim para ridicularizar a atitude materialista dos seus utilizadores. Tati procura nos seus filmes (sobretudo em Mon Oncle e em Playtime), através da arquitetura, dar uma nova autonomia à expressão individual, pura e livre. Talvez despoletado, não por uma intenção meramente pessoal, mas por uma intenção muito maior, relacionada com a necessidade de prosseguir a vida com mais alegria, poesia e compaixão (porque se todos estivermos atentos e disponíveis estes propósitos podem ser encontrados a todo o tempo e em qualquer parte).


Com este livro e com Jacques Tati, aprendemos assim que o desejo de objetificação na vanguarda moderna muito contribui para a construção do humor dos filmes de Tati. Tati é esse comediante modernista que defende o verdadeiro indivíduo que não se automatiza, que hesita, que se engana, que continua livre e que aproveita todos os momentos para introduzir humor em todas as dimensões da vida (até o espaço físico é cómico), através das imperfeições que o constantemente rodeiam. Tati cria os seus filmes de maneira que todas as personagens embora anónimas, sejam autênticas, mesmo quando se situam numa sociedade inautêntica, hostil e mecânica. E sempre que arquitetura se afirma perfeita, imaculada, completa e estruturadamente encenada torna-se absurda. Segundo Turvey, tal como John Cage, Tati deseja que o verdadeiro espetáculo se inicie assim que os espetadores abandonem a sala de cinema, porque se encontram agora renovados e com um olhar novo sobre a arquitetura, as coisas, os sons, os outros e o mundo. Lembremo-nos, pois do que Tati dizia, segundo Malcolm Turvey, sobre a tentativa de mostrar que todo o mundo tinha o seu quê de caricato, porque a comédia está presente em tudo e pertence a todos.

 

Ana Ruepp