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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim:


   Vieram ter comigo agora uns versos de António Ferro que li na minha adolescência. Se a memória me não trai, diziam, mais ou menos, isto: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto / e hoje quando me sinto / é com saudades de mim... Mas não garanto a justeza da citação, vai para sete décadas que os li.


   Na teima de alguém se enfronhar no seu eu (ou no que julga ser ele) acaba sim, por se perder, pois o eu mesmo é uma utopia. Quiçá saudades de mim sejam, mais propriamente, saudades da infância, do tempo natalício da consciência de si. Tempo de relações zelosas, em que o mimetismo vai construindo esse paradoxo do ser humano ser ele, a sua alteridade e o que os rodeia. E pela vida adiante vamos sempre sendo eu e a minha circunstância ou, talvez melhor dizendo, a minha circunstância e eu. E será o dasein, isto é, o "ser ou estar aí", como que um momento dialético, algo só existencialmente verificável em dado instante desse entendimento do si mesmo com a sua circunstância?


   Ser-se será diferente de estar-se? Ou será, apenas e contudo, o estar, ou mesmo ser-se, ansioso de permanência? Desde que se "libertou" da lógica dita aristotélica, a filosofia "ocidental" foi-se enredando numa espécie de labirinto ontológico. E, certamente, os progressos da descoberta do universo extraterrestre abriram brechas por onde entram dúvidas e interrogações novas, abalando fundações antigas do nosso pensarsentir o espaço e o tempo onde  pressupúnhamos mover-nos. Serão finitos, em expansão, ou infinitos?  E poderão ser quer  categorias mentais, quer seres em si - classificações lógicas, ou realidades ontológicas?


   A simples circunstância deste novo pensarsentir faz de mim um eu mesmo diferente do que terei sido ontem, não na realidade de mim, que desconheço, mas no estar aqui, na minha circunstância. Todavia, posso estar enganado, na medida em que for eu mesmo o sustento do diferente, já que sou a minha circunstância e eu mesmo. Ou não será assim? A recusa oriental do eu, de que já falámos, pretende que este mais não seja do que um aglomerado de contingências biológicas e outras, ilusório e evanescível. Mas, seja como for, ele surge sempre como um momento de consciência de si em circunstância. E continuará a revelar-se por essa presença recíproca na relação que o constitui, o faz evoluir, o torna atual (no próprio sentido aristotélico do termo). 


   Receando  reconhecer-me essencialmente, contento-me com verificar-me existencialmente enquanto eu e a circunstância minha que, qual mundo flutuante, é sempre efémera, mas sempre deixa um rasto, promessa de permanência. Tudo junto e misturado dá um "panaché", faz de cada um de nós um mestiço de passado e presente e mais sonhos de futuro, de contrastes e combates, de esperanças apesar das desilusões, de loucuras apesar das evidências...


   Mas, contas feitas, o que fica do rosário de efemérides da nossa vida? Eu que para aqui estou - e, nesse estar aí, como eu mesmo me surpreendo agora e em qualquer instante do meu existir - sou, afinal, o quê? Uma relação, um ténue fio no tecido imenso, infinito, do universo? Que sentido tem o ser humano? Poderemos construir um humanismo? E como deverá ele ser? Sobre a sua obra Autrement qu'être ou au delà de l´essence, diz Emmanuel Levinas (traduzo): Falo aqui  da responsabilidade enquanto estrutura essencial, primeira, fundamental, da subjetividade. Pois é em termos éticos que descrevo a subjetividade. A ética não aparece aqui como suplemento para uma base existencial precedente: é na ética entendida como responsabilidade que se dá o próprio nó do subjetivo...  


   
Deves lembrar-te, Princesa de mim, de alguns passos antigos dessas minhas cartas, em que, inspirado por trechos de S. João evangelista, meditava sobre o amor constitutivo das pessoas, ou o valor divino do humano, para que maior seja a nossa alegria. Curiosamente, descobri hoje - dia de chuva intensa, em que, confinado numa casa de quinta solitária entre o silêncio cúmplice dos campos invernosos, escutei um ofício de trevas do Couperin interpretado pelo Arts Florissants e seu William Christie - uns trechos do belíssimo Humanisme de l´autre homme, do Emmanuel Levinas, que te traduzo:


   O homem livre está votado ao próximo, ninguém pode salvar-se sem os outros. O campo do outro lado da alma não se fecha por dentro. Foi «o Eterno que fechou sobre Noé a porta da Arca», diz-nos um trecho do Génesis com precisão admirável. Como se fecharia ela na hora em que perecia a humanidade? Haverá horas em que o dilúvio não seja ameaçador? E eis aqui a interioridade impossível que desorienta e reorienta as ciências humanas nos nossos dias. Impossibilidade que não nos ensina nem a metafísica, nem o fim da metafísica. Distância entre o mim e o si, recorrência impossível, identidade impossível. Ninguém pode ficar em si: a humanidade do homem, a subjetividade, é uma responsabilidade para os outros, uma vulnerabilidade extrema. O regresso a si torna-se interminável desvio. Antes da consciência e da opção - antes que a criatura se recomponha em presente e representação para se tornar essência - o homem aproxima-se do homem. Está tecido por responsabilidades. Por elas, lacera a essência. Já não se trata de um sujeito assumindo responsabilidades ou furtando-se a elas, dum sujeito constituído, posto em si e para si como identidade livre.


   Talvez devêssemos pensarsentir melhor a advertência sobre a vigilância perene: não sabemos o dia nem a hora...Tal pouco ou nada tem a ver com a surpresa de sermos enviados para um qualquer eterno castigo. Antes nos diz, e ensina, que o alerta da nossa circunstância  -  sobretudo a evolução e a situação da natureza e dos nossos próximos  -  é algo que devemos ter sempre presente à nossa atenção. É precisamente a nossa incompletude ou imperfeição que nos induzirá a estarmos sempre atentos aos sinais dos tempos e à circunstância do nosso ser estando. A parábola do Bom Samaritano ensina-nos a ser o próximo dos outros pela atenção e descoberta, pelo encontro e o cuidado. Aliás, a simples atenção ao outro poderá conduzir-nos à descoberta de nós mesmos e a uma metanoia: na cena evangélica da mulher adúltera, todos os que se prontificavam a lapidá-la foram saindo, depois de Jesus lhes ter dito que quem não tivesse pecado lhe atirasse a primeira pedra... 


   O humano ser estando é a nossa consciência ética, formada pelo si e a sua circunstância. Estranho a si próprio, obcecado pelos outros, o eu é refém, até na própria recorrência de um eu que incessantemente se falha a si, como escreve Levinas. Mas acrescenta : E fica assim cada vez mais próximo dos outros, mais obrigado, agravando a falta que se faz a si mesmo. Tal passivo só se reabsorve alargando-se: glória da não-essência!


   
Ao dissertar sobre a "estranheza ao ser", conceito filiado na ideia heideggeriana da "estranheza do homem ao mundo" - ou, se assim melhor entenderes, Princesa de mim, ao exílio que é a condição humana -, Levinas cita um passo do salmo 119 (v.119): Sou um estrangeiro na terra, não me ocultes os teus mandamentos. E encontra esta afirmação fundamentada no Levítico (25, 23), anterior aos gregos Sócrates e Platão: Terra alguma poderá ser irrevogavelmente alienada, porque a terra pertence-me, e vós mais não sois do que estrangeiros que moram em casa minha. E o filósofo judeu prossegue: Não se trata aí da estranheza da alma eterna exilada entre sombras fugazes, nem de um desterro que a construção de uma casa e a posse de uma terra pudessem ultrapassar, eliminando pela sua construção, a hospitalidade de um sítio que a terra envolve. Porque, tal como no salmo 119, que apela aos mandamentos, esta diferença entre eu e o mundo  prolonga-se pelas obrigações para com os outros... ... A condição, ou incondição, de estrangeiros e de escravos no Egipto aproxima o homem do próximo. Os homens procuram-se na incondição de estrangeiros. Ninguém está em sua casa. A lembrança dessa servidão reúne a humanidade. A diferença que se abre entre mim e si, a não-coincidência do idêntico, é uma profunda não-indiferença relativamente aos homens.


   
Na circunstância geral da nossa presente atualidade, enfrentando uma pandemia soez, levantam-se vozes de protesto contra algumas das medidas sanitárias impostas profilaticamente, tais como a obrigatoriedade do uso de máscara, do confinamento domiciliário, ou do encerramento de estabelecimentos comerciais, etc. Esses protestos surgem de diferentes quadrantes, refletindo sobretudo a indignação de desconfortos pessoais e rebeldia de indisciplinas confundidas com liberdades individuais, mesmo quando recorrem a diatribes solenes acerca da ameaça de estados totalitários contra princípios fundadores da democracia... Muito embora existam casos pungentes de injustiça sofrida - e por inimputáveis autores, ou apenas imagináveis bodes expiatórios...


   Todavia, a questão que agora se levanta não tem, nem pode nem deve ter, uma base ética individualista, egocêntrica, mas antes nos coloca, a todos, perante essa realidade que é cada um e a sua circunstância, o eu mesmo como próximo de todos os outros. Ninguém se salvará sozinho. Qualquer de nós sente bem, sendo honesto consigo, que todo o nosso relacionamento é, em cada um, também um elemento da sua própria subjetividade. Yo soy yo y mi circunstancia.


   
Hoje, nenhum de nós está fora, é  estrangeiro, nem pode ser estranho a esta pandemia que nos obriga a ser um por todos, todos por um.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

P.S. Na verdade, como me lembrou um amigo, os versos citados não são de António Ferro, mas de Mário de Sá Carneiro. No labirinto por vezes escuro da minha memória, ficaram mal registados, quiçá por tê-los lido citados num livro de António Ferro.