A FORÇA DO ATO CRIADOR
Jacques Tati e a Arquitetura Moderna Cómica.
O livro, PlayTime. Jacques Tati and Comedic Modernism (2020), do historiador de arte Malcolm Turvey, sugere que, nos filmes Mon Oncle e Playtime, existem certos elementos da arquitetura moderna que a transformam em potencial cómico. Esses elementos são: o autoritarismo e a homogeneidade das formas do mundo moderno; o engano, ao fazer parecer aquilo que não é; o acaso; o erro; e o impulso irresistível.
O autoritarismo da arquitetura moderna concretiza-se, em Playtime e Mon Oncle, através de um cenário urbano que obriga as personagens a andar em linhas determinadas por um desenho muito rígido. Turvey acentua que é este autoritarismo que anula a individualidade dos ambientes modernos e que controla todas as deslocações dos seus utilizadores. Os caminhos desenhados são estreitos e limitam os movimentos livres. Aparecem pedras que marcam caminhos e setas no chão e no teto que indicam para onde ir, onde estacionar e onde andar. Em Mon Oncle, o exaustivo e muito esculpido desenho do jardim, da casa da família Arpel, controla todos os caminhos das personagens e os seus movimentos tornam-se, por isso, absurdos.
Em Playtime, o cenário urbano obriga a andar em linhas retas e a contornar ângulos de noventa graus (Turvey 2020, 214-15). E sempre que as formas arquitetónicas, se impõem muito autoritárias, Monsieur Hulot fica confuso e a sua reação fora do esperado provoca também confusão a todos os que se cruzam com esta personagem.
A homogeneidade das cores e das formas do mundo moderno (Turvey 2020, 213), deixam Monsieur Hulot sem referências de espaço e de tempo. Em Mon Oncle, os edifícios modernos são todos prismas cinzentos. Em Playtime, os posters turísticos que se espalham por toda a cidade, mostram que só existe um único tipo de arquitetura, utilizado em todo e qualquer sítio do mundo. Por toda a cidade, o corpo está ausente, existem só reflexos na arquitetura homogénea de vidro. Os edifícios já não são uma massa plástica diversa, mas sim uma construção uniforme, geométrica, de planos ortogonais e transparentes no espaço.
O autoritarismo e a homogeneidade geram o engano, ao não permitirem a distinção e ao não acentuarem as características singulares, que informam as qualidades únicas e especiais de cada objecto construído. Hulot confunde reflexos, portas, espaços e funções, porque tudo é semelhante.
«What I condemn in the ‘new’ life is precisely the disappearance of any respect for the individual.» (Turvey 2020, 225)
A uniformidade enfatizada nos subúrbios modernos da família Arpel, em Mon Oncle, é para Tati um assalto à individualidade: «’Paris will end up looking like Hamburg’ (…) And it is the uniformity I dislike. You go to a café on the Camps-Elysees these days and you get the impression that they will soon announce the landing of Flight 412; you don´t know anymore if you are in a pharmacy or a grocery store.» (Turvey 2020, 225)
Turvey escreve que, em Mon Oncle, de facto, é cómico não se conseguirem distinguir formalmente a fábrica Plastac, da escola de Gérard, nem da fábrica de derivados de carvão SDRC. Todos estes volumes cúbicos cinzentos com linhas azuis se assemelham e, por sua vez, relembram o desenho da casa da família Arpel.
Mas para Turvey, Playtime, é o culminar da comédia que surge através do engano e da confusão gerada por mal-entendidos. Tudo e todos reagem como autómatos - em movimentos retos, repetidos e iguais. Não se distinguem tipologias arquitetónicas - o aeroporto, o hotel, o escritório, a loja e a habitação. Tudo se parece. O dentro e o fora misturam-se. O espaço privado e o espaço público confundem-se. Caixas de vidro aparecem dentro de caixas de vidro. Reflexos no vidro fazem as personagens ficarem perdidas e desorientadas. O aeroporto parece um hospital e o edifício que se encontra em frente ao hotel, onde Barbara está instalada, parece um aparelho radiofónico. O ambiente urbano filmado, em Playtime, retrata também apartamentos todos iguais. A visão, através das grandes janelas, com as famílias burguesas dentro de cada um do seu espaço privado, acentua ainda mais o contra-senso gerado pelos ambientes uniformes (Turvey 2020, 213). Os quatro apartamentos revelam-se todos idênticos, com a mesma organização do espaço, com as televisões no mesmo sítio, com as cadeiras iguais (antes vistas na sala de espera do edifício de escritórios e na loja) e com cores semelhantes. Ao ser revelada uma só fachada de quatro grandes janelas, propositadamente, faz parecer que se trata de um único espaço de habitação, em que as famílias estão viradas umas para as outras, vendo-se e comunicando constantemente entre elas.
Para Malcolm Turvey, o modernismo cómico de Tati manifesta-se ainda, por via do acaso, através de objetos análogos aleatórios, isto é, qualquer objeto que perturba uma uniformidade e uma formalidade, embora que momentaneamente, e que se transforma inevitavelmente em potencial humorístico:
«Tati was not a surrealist attempting to liberate thought from rationality (…) he was deeply disturbed by the uniformity of modern environments, and he doubtless valued aleatory object analogs in part because they disrupted this uniformity, albeit momentarily.» (Turvey 2020, 65)
O acaso manifesta-se, assim, de maneira inesperada, sempre que a arquitetura toma formas antropomórficas e absurdas. Por exemplo, em Mon Oncle, quando Monsieur e Madame Arpel olham pelas janelas circulares, desenhadas na fachada principal da casa, à noite, as suas silhuetas pretas fazem as janelas parecerem olhos que se movem. Os ruídos fumegantes e regulares da fábrica Plastac fazem parecer que o edifício está a respirar. No filme Playtime, por acaso, os vizinhos Giffard e Schneller parecem comunicar entre eles quando estão nos seus respetivos apartamentos, porque todos estão os dois virados para a mesma parede (que não se vê) para ver televisão.
Mas é, na festa do Royal Garden, que Tati, muda completamente o ambiente autoritário da cidade, por meio do acaso. A obra do restaurante não está terminada e as pessoas da festa vão-se apropriando daquele espaço através de movimentos aleatórios, circulares, singulares e irrepetíveis, porque são provocados por uma arquitetura que por acaso colapsa, que falha, que está incompleta e que não funciona.
«…people are moving around and around, and, well, I’m not a painter, but you can see how it’s like a modern painting. We end up with this merry-go-round, and you can see that it’s the people in the film who have taken on their own identity against this background, they are living the way they want to.» (Turvey 2020, 230)
Deste modo, segundo Turvey, no filme Playtime, é o erro que humaniza o espaço uniforme e homogéneo de todo o ambiente urbano. É a expressão de libertação e de uma identidade muito própria. É o erro que traz individualidade ao Royal Garden. A humanização daquele espaço acontece assim que Monsieur Hulot tenta apanhar uma laranja que está colada ao teto. A irregularidade, a incorreção, o amor pela alteração e pela imaginação confusa, o excesso e a redundância, a mistura das partes e a união do todo, só se consegue a partir desse preciso momento, naquele pequeno espaço dentro do Royal Garden, que se gera por causa de um erro.
Não esqueçamos, que em Playtime, todo o ambiente urbano se organiza sem erro e sem nódoa e é Turvey que esclarece que é a festa do Royal Garden que deixa transparecer a necessidade de um espírito profundo, individual e livre, que deve estar constantemente por detrás de tudo o que é criado (por mais insignificante que essa criação seja). Naquele pequeno espaço, irregular do Royal Garden, estabelece-se de repente uma festa paralela, que é expressão da vontade do tempo e do ser humano, formado pelo acaso, não planeado.
Em Mon Oncle, os únicos sinais de vitalidade da casa dos Arpel só acontecem quando se manifesta o erro ou o improviso – sempre que um objeto aparece fora do sítio ou deixa de funcionar.
«Tati protested that he was not criticizing modern architecture in his films and he objected that Mon Oncle “is not about the house”: “I am sure if a young couple were married and went to live in that house they would be happy... It is not the architecture I am complaining about (…) it is the way that people use it that is the problem.» (Turvey 2020, 185)
Finalmente, no livro de Turvey lê-se que é o filme Mon Oncle que encerra em si o confronto entre o mundo altamente controlado e o mundo do impulso irresistível. (Turvey 2020, 193)
Para Turvey, Tati associa os Arpel a atitudes burguesas, há muito tempo criticadas e ridicularizadas pela vanguarda modernista, e que se manifestam na rejeição da expressão das necessidades corporais - impulsos irresistíveis - em direção à racionalização total da vida. (Turvey 2020, 193)
No livro, Turvey demonstra que o mundo da família Arpel revela uma obsessão pelo controlo. É um mundo privilegiado que se descreve por valores relacionados com o autoritarismo, o materialismo, o consumismo e o conservadorismo e que se manifestam no desejo pela visibilidade, artificialidade, rapidez, eficácia, rigor, rigidez e excessiva limpeza. A arquitetura da casa dos Arpel é usada para exibir um determinado estatuto, não para ser uma casa vivida e nem ser um meio de expressão. A maneira como os utilizadores se comportam conduzem-nos a pensar, por vezes, que a casa parece uma fábrica, um laboratório e até mesmo um hospital.
Em contraste, o bairro onde Monsieur Hulot mora, deixa-se apropriar pelo impulso irresistível, inerente à vida. Apercebe-se no filme que as casas desse bairro são pequenas e que o espaço público completa forçosamente o resto desse espaço que falta. Por isso, o espaço público acaba por se tornar num espaço comum democrático, onde se é livre de escolher para onde ir e que também tem a capacidade de incluir o movimento livre do corpo, a singularidade de cada pessoa e até ser capaz de adquirir uma personalidade própria.
Ana Ruepp