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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Guilherme d'Oliveira Martins chamou-me a atenção para o facto de, na minha última carta, eu atribuir a autoria de uma quadra de Mário de Sá Carneiro a António Ferro: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto, / e hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim. Tem toda a razão  o meu amigo Guilherme: na verdade - e tal qual os transcrevo - estes versos integram um conjunto de quadras feitas e reunidas por Sá Carneiro numa poesia intitulada Dispersão que, aliás, dá  nome a um livro, publicado em 1914, mas composto em maio de 1913, marco cronológico das edições da obra poética do autor. Terá acontecido que  António Ferro, amigo de Mário, usou aquela primeira quadra de Dispersão como epígrafe (ou dedicatória) de um livro de poemas seus: Saudades de Mim. Li-os em 1957, ano da sua publicação, e nunca mais vi o livro. Mas a quadra de Sá Carneiro, que o encabeçava, ficou-me na memória e, quiçá por tê-la lido no livro de Ferro, associei-a a este. Mas terá sido assim? Estaria essa quadra mesmo lá? Eis que é antiga a lembrança, nada posso garantir para além de ter decorado esses versos... Curioso ainda é o facto de eu não encontrar, entre as dezenas de milhares de livros da minha biblioteca pessoal, a obra de António Ferro, mas de lá estarem as opera omnia de Mário de Sá Carneiro, cujo 2.º volume, na edição da Ática (em 1953), dá pelo nome de Poesias e inclui Dispersão e suas quadras. Neste volume, o adolescente que eu então era registou a data em que o adquiri: CALMO (as letras iniciais do meu nome e apelidos) 1956. Possuo ainda outras edições das Poesias, incluindo do poema Diapasão, como, por exemplo, a do Círculo de Leitores (1990) ou a chamada Obra Essencial, planeada por Fernando Pessoa, conforme desejo expresso do autor, e editada pela E-Imprimatur em 2016. Dessa respigo estes trechos do poema de Pessoa (1934) cujo título é SÁ CARNEIRO:

 

                     Nesse número do Orpheu que há-de ser feito
                     Com rosas e estrelas em um mundo novo.

 

                     Nunca supus que isto que chamam morte
                    Tivesse qualquer espécie de sentido...
                    Cada um de nós, aqui aparecido,
                    Onde manda a lei e a falsa sorte,

 

                   Tem só uma demora de passagem
                   Entre um comboio e outro, entroncamento
                   Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
                   Mas seja como for segue a viagem.

                   [...]

                   Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
                   Há almas pares, as que conheceram
                  Onde os seres são almas.

 

                 Como éramos só um, falando!
                  Éramos como um diálogo numa alma.
                  Não sei se dormes... calma,
                  Sei que, falho de ti, estou um a sós.

 

   A releitura destes versos traz-me memórias da amizade, em tempos bem mais antigos, entre Montaigne e La Boétie: esqueço a distância do tempo e das culturas, pensossinto a igual consciência de pertença e comunhão com o próximo. A morte de um amigo é sempre também um pouco de mim que me deixa só. [E todos nós o teremos experimentado, sobretudo depois de chegados a uma certa idade: ainda quando iniciava esta carta para ti recebi a nova da morte, consequente a uma contaminação por covid 19, do meu grande amigo e compadre Miguel João Rodrigues Bastos. Tê-la-ei sentido mais, talvez por não ter sequer havido uma despedida, nem a possibilidade de eu dar um abraço amigo à família...]  

   Quando, em carta anterior à presente, Princesa de mim, citei a quadra que de cor guardava, não pretendia falar doutro tema que não fosse a meditação que então fiz contigo. Hoje, já que veio à baila Mário de Sá-Carneiro (o hífen entre apelidos pondo-lhe o nome "à francesa", tal como ele quis durante o "exílio" parisiense), falaremos mais sobre o poeta.

   No prefácio que escreveu para a edição do Círculo de Leitores acima referida, Nuno Júdice começa por afirmar; Podia-se começar por uma constatação: a de que a escrita de Sá-Carneiro  é uma escrita doente. Não é uma doença física, mas «qualquer coisa de intermédio», como ele próprio diria - entre o corpo e a alma. E esta divisão reflete-se dolorosamente na sua imagem do mundo, transportando para o interior da ficção e da poesia um drama que o consumirá até ao instante do suicídio. Esse «qualquer coisa de intermédio» acima referido é verso de um poema, o 7, de Indícios de Ouro:

 

                    Eu não sou eu nem sou o outro,
                    Sou qualquer coisa de intermédio:
                    Pilar da ponte de tédio 
                    Que vai de mim para o Outro.

 

   Este é de 1914, mas já em 1911, no seu A um suicida, Sá-Carneiro escrevia:

 

                    Tu, morreste.

 

                    Foste vencido? Não sei.
                    Morrer não é ser vencido,
                    Nem é tão pouco vencer.

 

                    Eu, por mim, continuei
                    Espojado, adormecido,
                    A existir sem viver.

 

                   Foi triste, muito triste, amigo, a tua sorte - 
                   Mais triste do que a minha e malaventurada.
                   ... Mas tu inda alcançaste alguma coisa: a morte,
                   E há tantos como eu que não alcançam nada...

 

   Pensossinto que a morte, precisamente por ser certa e certeira, não é algo que deva estar ao nosso alcance. Não é preciso. Ela virá, e nunca sabemos nem o  dia, nem a hora. O que podemos sempre tentar alcançar é a vida, na medida possível  do nosso alcance. Afinal, é ela a nossa vocação, a alma que nos anima (perdoa-me o pleonasmo). E a vida é-nos dada, não nos pertence: chama-nos, mesmo que para fora de nós. É no dom de si mesmo que se semeia o amor e se comunica (e comunga) a vida. Mais um dos nossos humanos paradoxos: se o grão de trigo lançado à terra não morrer, permanecerá sozinho. Mas se morrer dará muito fruto. Quem amar a sua vida perdê-la-á... (João, 12, 24-25). E até sem citar os evangelhos, Georges Bataille escreveu que l´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort... 

   O drama, a tragédia, de Sá-Carneiro foi nunca ter percebido que é grande ilusão alguém ter saudades de si mesmo. Como, afinal, num texto publicado na revista Athena, nº. 2, Novembro de 1924, escreve, a dado passo, Fernando Pessoa: Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor. Dito que não é assim tão contrário ao que escrevo acima, já que pensossinto que tais deuses não morrem de amores.

   Mas para nos dar uma visão pela perspetiva de um crítico literáriotrago-te agora, Princesa de mim, uns trechos de João Gaspar Simões, que recolhi do estudo que esse crítico publica em apresentação do poeta. Pensando também como teriam certamente cabimento nas considerações da minha carta anterior, se então me tivesse lembrado de Sá-Carneiro, logo quando parti duma citação de versos seus pelo António Ferro. Vamos a Gaspar Simões:

   Os simbolistas, de acordo com os progressos da psicologia, inverteram os termos da inspiração. O poeta deixou de se inspirar na natureza, para se inspirar em si mesmo. Já não precisa de olhar as águas para ver que as mágoas correm como elas. Começa por olhar as suas mágoas e só depois procura, no domínio dos símbolos, quer naturais quer espirituais, uma correspondência equivalente...   ...O simbolismo é, portanto, um movimento poético em que o centro da poesia está no poeta. O poeta constitui-se fulcro do poema. A poesia não é uma introversão do mundo no poeta; o poeta é que o extroverte. O mundo está nele: dele, poeta, é preciso partir para encontrar o mundo...

   ... Tendência nativa, vento de feição - eis que o simbolismo nos trouxe os mais subjetivos dos nossos poetas. Mário de Sá Carneiro é a quinta essência desse simbolismo: será mesmo o seu símbolo vivo. 

   Todavia, não foi por isso que citei a primeira quadra de Dispersão. Fi-lo tão somente por ter guardado comigo aqueles versos, durante muitos e muitos anos. Talvez por eles me terem dito algo que, aos meus quinze anos, já sentira como tentação de auto refúgio e que, a pouco e pouco, paulatinamente, por lindos que os versos fossem, penseissenti que devia ultrapassar, buscando na minha circunstância, não a minha essência impossivelmente reconhecível, mas a minha existência efémera na sua razão de ser estando. 

   Finalmente, Princesa de mim, devo confessar-te que, ao reler escrupulosamente o poema Dispersão, alertaram-me a memória três outras quadras que, se bem recordo agora, me impressionaram há quase sete décadas, negativamente. Aqui vão:

 

                    Como se chora um amante,
                    Assim me choro a mim mesmo:
                    Eu fui amante inconstante
                    Que se traiu a si mesmo.

 

                   Não sinto o espaço que encerro
                   Nem as linhas que projeto:
                  Se me olho a um espelho, erro - 
                  Não me acho no que projeto.

 

                  Regresso dentro de mim
                  Mas nada me fala, nada!
                  Tenho a alma amortalhada,
                  Sequinha, dentro de mim.

 

      E concluo com a primeira: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto... Pois não será a ensimesmar-nos que daremos com uma saída airosa para qualquer crise do drama da nossa tão paradoxal condição humana. Não sei em quê a educação e o meio possam ter contribuído para Sá Carneiro ter sido o que foi. É esse um problema a que me não quero abalançar - escreveu, em 1940, João Gaspar Simões. Tampouco quero fazê-lo, mas talvez se possam situar já na infância do poeta algumas das raízes do tão doentio narcisismo que o desesperou. Perde-se no labirinto de si, não só o órfão de mãe mimado por avós e uma ama, e cujo pai se ausenta frequentemente, mas todo aquele que, talvez por outras razões, acaba por se sentir apenas na saudade de um si mesmo utópico que, por ser imaginável, ele próprio todavia desconhece. O encontro de mim com eu mesmo só será possível pelo Outro, que me dá a minha auto descoberta na minha circunstância. Na cultura japonesa, por exemplo, a contemplação da natureza é anterior à poesia. E brevemente te falarei, em rebusca do Japão, do conceito de fusosei, que o filósofo Watsuji Tetsuro define com elemento estrutural da existência humana. E talvez seja interessante comparar o livro dele, intitulado, na versão francesa Fudo, le milieu humain com uma obra de Teilhard de Chardin, lida também na minha adolescência, Le Milieu Divin.

   O velho que hoje sou aprendeu desta vez que até as falhas de memória podem abrir-nos portas para novas peregrinações. Bem haja, Guilherme amigo! 

 

Camilo Maria

   

Camilo Martins de Oliveira