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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO XX

 

   A cultura japonesa, desde os mitos fundadores, nunca tratou com inibição qualquer sexo ou relações sexuais. Estas são tão naturais como o mundo em que vivemos, não há razão para as demonizar como concupiscentes, nem para as culpabilizar como pecado. Já nas duas crónicas mais antigas, o Kojiki (712) e o Nihonshoki (720) isso se afirma. No Kojiki (ou Recolha de coisas antigas) se pode ler a descrição do nascimento da terra japonesa, resultante da cópula de duas divindades, uma masculina, outra feminina: Tenho em mim um sítio que sai para fora, disse Izanagi, e eu tenho um que é côncavo disse Izanami; e Izanagi prosseguiu: disto deveria nascer a Terra. Muito bem, respondeu a deusa. É ainda no mesmo Kojiki que lemos a história da deusa do sol Amaterasu omikami que, por zanga com seu irmão Susanoo, se encerra numa gruta, deixando assim o mundo às escuras. Para a tirar cá para fora, a deusa Ama no Uzume lembra-se de encenar uma dança em que o seu vestido se rasga e abre deixando à vista de todos os encantos da sua feminilidade: A deusa, no furor do transe, arrancou o tecido que lhe tapava o peito e, desatando o cinto, fez cair o vestido para exibir toda a sua nudez... Então, em uníssono, as oito mil miríades  de deuses e deusas do planalto celeste desataram a rir. Eis que aqui se descreve como Amaterasu, alertada por tanto alvoroço, entreabriu a entrada da gruta e foi puxada para fora, ou ainda como o erotismo japonês tem, desde o início, algo de divertimento, de brincadeira, de comédia...


   De qualquer forma, esse universo a que chamamos sexo nunca ali foi, propriamente, objeto ou sujeito de regras morais, excetuando talvez o período Meiji, quando, em sequela da abertura do Império do Sol Nascente ao Ocidente, também certos conceitos e valores de ordem ética foram tentativamente impostos pelas autoridades nipónicas competentes, ao comportamento sexual do comum dos cidadãos. [A moral política e socialmente correta então reinante no mundo anglo-saxónico tornou-se conhecida como moral "victoriana"]. Em contrapartida, apesar da muita consideração e respeito granjeados sobretudo pelas prostitutas de primeira classe, foi prevalecendo uma cultura de proteção da família (ou da "casa", a ie, como já vimos) enquanto pilar importante do sistema económico e social vigente. Este, por um lado, submetia a filha, mulher e mãe a uma vida regrada (e dura), mas garantia-lhes um estatuto funcional de especial qualidade.


   O nosso quinhentista jesuíta Luís Fróis, arguto e rigoroso observador de muitas facetas da vida japonesa - que cotejava sistematicamente com os nossos próprios conceitos, usos e costumes  -  já em 1585 escrevia que a nossa gente lava o corpo sem se mostrar, mas no Japão homens, mulheres e bonzos se lavam em banhos públicos, tal como, à noite, na rua, em frente da porta de casa... Na verdade, confirmam em pleno século XXI Philippe Pons e Pierre-François Souyri (L’Esprit de Plaisir, Payot, 2020), os banhos coletivos, instalados designadamente em templos, existiam desde tempos remotos. Os «banhos públicos», que existiam nos burgos desde o século XIII, desenvolveram-se desde o fim do século XVI, com o nome de yuya. Homens e mulheres banhavam-se juntos sem que alguém se escandalizasse. Estava-se pois habituado a ver, desde a infância, pessoas nuas, homens ou mulheres. Aliás, é por isso que as pinturas eróticas apresentam corpos meio vestidos e raramente nus, porque os corpos, em si, não são eróticos... [Ter isto em conta talvez nos ajude a compreender a inocência básica dos campos nudistas. Tal como será interessante - embora à margem do tema deste texto - interrogarmo-nos sobre  o porquê de Adão e Eva só terem descoberto a sua nudez depois de terem comido o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Pensamos na palavra de Jesus: não é o que entra no humano que é impuro; impuro é o que dele sai.]


   Em 1810, ainda dois terços dos banhos públicos em Tokyo eram mistos, numa altura em que a simples autorização e existência dos mesmos seria impensável na China ou em qualquer país ocidental. Mas a política de restrição e interdição dos mesmos, iniciada já nos finais do período Edo e, rigorosamente, a partir de 1869, no início da era Meiji, conseguiu que em 1890 eles tivessem desaparecido de Tokyo. Para além de testemunhos mais antigos, como o de Fróis no século XVI, muitos outros nos expõem a realidade:


   Carl Peter Thunberg, botânico sueco que residiu um ano na feitoria holandesa de Deshima (Nagasaki), escreve em 1776 que as mulheres não tomam qualquer precaução para cobrir a sua nudez quando se banham num lugar público, nem que se trate de sítio onde se exponham aos olhos dos holandeses e de todos os que por lá passarem; 
o francês conde de Beauvoir, em 1872, já no início da era Meiji, avisa: «Não vos escandalizeis: no Japão vive-se à luz do dia, não se sabe o que é pudor ou impudor...  ...Todos para ali estão, aos molhos, homens, mulheres, rapazes e raparigas, como arcanjos... Esfrega-se, esfrega-se. Passeia-se, até se vem pedir um cigarro aos nobres estrangeiros [presumo que mirones]; as tatuagens mais esplêndidas dos homens brilham no meio de rosas cor de ninfas enleadas que os esfregadores profissionais ensaboam e limpam: aquela boa gente faz tudo isso com muito sangue frio, com ar de achar a coisa tão natural, que por um triz entraríamos no grupo sem pensar derrogar esse preconceito social que se chama «shocking»; o nosso já conhecido Basil Hall Chamberlain - que, em passo anterior desta rebusca do Japão, Lévy-Strauss apresentava como um sucessor de Luís Fróis no século XIX - afirmava que no Japão «a nudez é vista, mas não é olhada»; e Charles Grosbois, estudioso da cultura japonesa, dizia, por volta de 1960, que o banho japonês tradicional reunia homens e mulheres nus sem implicações sexuais.


   
Valerá a pena recorrer aqui à obra de Philippe Pons e Pierre-François Souyri acima referida para evitar conclusões imperfeitas ou apressadas. Cito: A atmosfera do banho público impunha alguma retenção e não era um lugar propriamente erótico. Mas não deixaria de ser um lugar de fantasmas, como testemunha um tríptico de Utagawa Kunisada (1786-1865) representando uma cena orgíaca ali se desenrolando. Muitas estampas apresentam cenas de copulação improvisada num banho público.


   A estrutura das casas japonesas, com as suas leves divisórias e papel translúcido (shoji), não abafava os ruídos, deixava ver as sombras e favorecia a exposição dos corpos. Nas casas de gente abastada, não era raro ser-se visto a fazer amor, por qualquer criada ou criado que espreitasse - cena aliás muitas vezes representada em estampas eróticas. O mais das vezes, a criada contempla a cena com algum desejo, ou até se toca.


   Mirone? Talvez não. Este conceito não aparece antes da era Meiji. Não se trata de surpreender à revelia uma cena considerada interdita. Os japoneses daquele tempo não tinham clara consciência de que fossem tabu as relações sexuais entre um homem e uma mulher que, livres, não eram, em si mesmas, objeto de opróbio. Contavam-se sem rebuço histórias ligadas ao sexo, desenhavam-se figuras sexuais e se, por acaso, se assistisse a jogos amorosos de um casal, tal era considerado permitido. Não existiam, nos meios populares, espaços íntimos como quartos de dormir, e, sobretudo no verão, as casas japonesas abriam-se sobre a rua. O ato sexual era frequentemente considerado como uma brincadeira.


   
Volto-me novamente para o excelente observador que foi o padre Luís Fróis, que notava como as raparigas japonesas (no século XVI!) podem ir onde muito bem lhes apetece, por um ou mais dias, sem terem de prestar contas a seus pais.


   Aliás, as frequentes peregrinações a santuários vários eram pretexto para tais deslocações e, como os peregrinos eram alojados em salas comuns, sucediam encontros mais íntimos e muitas jovens então perdiam a virgindade, sem que tal ofuscasse fosse quem fosse. O nosso quinhentista jesuíta reparou em que as mulheres do Japão não ligam nada à pureza virginal e, quando a perdem, tal não as desonra nem impede de virem a casar-se. Curiosamente, o cônsul plenipotenciário dos EUA, Townsend Harris, anota, com data de 16 de janeiro de 1856, no seu diário, o teor de uma conversa que tivera com o vice-governador japonês: Perguntei-lhe então o que fazia um homem que, tendo casado com uma mulher que supunha virgem, veio a descobrir que afinal ela não o era. «Não faz nada, que poderia ele fazer? Isso já me aconteceu, mas que podia eu fazer? De qualquer modo, a culpa não era minha».


   
Deixo para posterior desenvolvimento temas decorrentes do acima relatado, incluindo questões relativas ao enquadramento social (e administrativo) da sexualidade, bem como ao seu tratamento estético e literário. Sempre que nos debruçamos sobre as diversas perspetivas religiosas, morais, jurídicas, culturais, sociais e legais pelas quais as variegadas humanas gentes foram olhando para essa complexidade a que chamamos "sexo", surpreende-nos o seu carácter e força viral: transmite-se a tudo e tudo influencia, qual princípio fulcral da vida, essa perseverança do ser no ser - de que tão bem fala António Damásio ou tão brilhantemente definiu Georges Bataille (l’érotisme c’est l’affirmation de la vie jusque dans la mort). Mas não serão, afinal, as culturas humanas que tornam complexa, libertina ou tabu, a própria expressão do nosso inescapável princípio vital?  

 

Camilo Martins de Oliveira