Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“O Albatroz e o Chinês” (Ouro sobre Azul, Rio de Janeiro, 2004) de António Candido é um conjunto de ensaios dividido em três partes, as duas primeiras com maior extensão e a última constituida por pequenos textos, todos necessários à compreensão do pensamento do autor, um dos grandes pensadores da língua portuguesa.
LIGAR LITERATURA E SOCIEDADE
António Candido de Mello e Souza (1918-2017) foi Prémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 1993, e Prémio Camões de 1998. A sua obra mais marcante é “Formação da Literatura Brasileira” (1959), que influenciou várias gerações de professores e intelectuais. Permitiu entender melhor a encruzilhada de influências da cultura brasileira e foi uma ponte entre duas influentes gerações – aproximando Oswald de Andrade, João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Colega de Florestan Fernandes na Universidade de S. Paulo, desde 1942, tornou-se notado na “Folha da Manhã” pelo exercício brilhante da crítica literária, evidenciando, por exemplo, o valor de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Usando o método dialético e comparatístico, a partir da sua formação sociológica, pôde dar uma nova luz para a compreensão do caráter poliédrico da poderosa criação literária e cultural do Brasil. A sua tese de sobre “O Método Crítico de Sílvio Romero” constitui um prometedor anúncio do percurso que fez, através de uma leitura da criação literária integrada no contexto da sociedade e da cultura. “O Albatroz” é um dos poemas mais conhecidos de Baudelaire, alegoria do destino do poeta no meio da turba que não o compreende. Representa a poesia que procura registar a experiência do espaço aberto como estímulo para representar a natureza. O segundo termo do título está no pugente drama do criador sentido por Mallarmé (“Las d’amer repos”) e no “Cancioneiro chinês”, traduzido por António Feijó, no qual o poeta chinês Tché-Tsi está perante a “Folha branca” paralisado pela falta de imaginação – concentrado no espaço fechado, favorável à mente inventiva, que procura recriar a natureza. Para Celso Lafer: «“O Albatroz e o Chinês” é um grande livro de Antonio Candido, pelo qual, aliás, ele tinha especial predileção. Recebeu, no entanto, menos atenção da crítica do que outros que se inserem na mesma linhagem. (…) Os textos da segunda parte, em especial “Dos livros às pessoas” e “Portugueses no Brasil”, discutem e analisam a presença que tiveram em nosso país, e para a própria memória da formação de Antonio Candido, figuras intelectuais e personalidades culturais de Portugal. Também incluem reflexões sobre obras da literatura portuguesa que sempre o interessaram e sua recepção no Brasil, como é o caso de Eça de Queirós (“Eça de Queirós – passado e presente” e “Ironia e latência”), e, de maneira menos conhecida, Camilo Castelo Branco (“Duas máscaras”). São ensaios que, em sua especificidade, inserem-se no âmbito mais geral de sua constante dedicação ao romance como gênero literário».
PORTUGUESES NO BRASIL
Como tive oportunidade de verificar pessoalmente, no amabilíssimo encontro com o ensaísta, foram importantes as relações que estabeleceu com os portugueses que, por razões diversas, rumaram até ao Brasil – Jorge de Sena, João Sarmento Pimentel, Novais Teixeira, Agostinho da Silva, mas também Jaime Cortesão, Fidelino de Figueiredo, Adolfo Casais Monteiro, Fernando Lemos, António Pedro, Eduardo Lourenço e António José Saraiva. E é muito rica a invocação feita por Antonio Candido dessas diferentes personalidades que, cada uma à sua maneira, foram marcantes nas ligações e na compreensão das culturas da língua portuguesa. Ainda na mesma recensão, Celso Lafer recorda que a primeira aproximação dele ao Mestre foi feita através de Gil Vicente e de Camões, mas foi aprofundada mercê das leituras de Alexandre Herculano e também dos escritores da geração de 1870 – Eça de Queirós, Antero de Quental, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e seus seguidores, bem como de António Sérgio. Na invocação do encontro memorável que tivemos em S. Paulo Celso refere que Candido pensava de Oliveira Martins, que “prendia o leitor, não apenas pelo conteúdo das ideias, mas pela eficiência da escrita”, e lembra a devoção juvenil que devotava a Antero de Quental, sobre cujos “Sonetos Completos” planeara um estudo aprofundado. Na versatilidade e agudeza das análises avulta a leitura de “A Ilustre Casa de Ramires”. Como refere Celso Lafer: «Gonçalo Mendes Ramires, o protagonista do romance (…) é, na obra de Eça, o personagem mais complexo que engendrou. “Ironia e latência” insere-se (…) no âmbito da reflexão de Candido sobre o personagem de ficção, o homo fictus, que foi o tema do curso de Teoria Literária de 1961, no qual fui seu aluno. Esse ensaio destaca “a graça e a força de uma prosa da mais sedutora plasticidade, que sabe penetrar no modo de ser das personagens, sobretudo do protagonista” e do espaço aberto da natureza (p. 160)».
GONÇALO E A SAGA DOS RAMIRES
A. Candido concorda com Beatriz Berrini quando esta diz que é impossível querer mal a Gonçalo, apesar da sua fraqueza de caráter. O romance é admiravelmente composto e “a lei do desenho, isto é, do enredo é o que se pode denominar ironia estrutural, geradora de contrastes, sugerida no fim pelo próprio romancista. Ironia que em princípio poderia ter suscitado um texto trágico: a fim de ser deputado e sair do seu ‘buraco rural’, Gonçalo Mendes Ramires deserta do seu partido e entrega tacitamente a irmã casada a um antigo suspirante, quase noivo, que a rejeitara e ele passara a odiar e combater; mas uma vez eleito, percebe que tal baixeza era desnecessária, pois de qualquer modo os eleitores teriam votado triunfalmente nele”. O duplo registo entre a história da Torre de D. Ramires e a situação de Gonçalo revela que, “como a nação, degenera a nobre raça”… Os Ramires de outrora venciam com grandes lanças, o de agora vai para África plantar seringueiras, cacaueiros, coqueiros, em nome do revigoramento da consciência nacional… E assim encontramos um enredo latente, que ilude a tragédia, permitindo “escamotear os aspetos eventualmente dramáticos, relegando-os para o subsolo do relato”. Há um olhar pacificado sobre o campo português, que sentimos em Gonçalo, a ponto de vir a estabelecer a supremacia da serra sobre cidade. “E quem sabe esse gosto pela dimensão rural contribuiu subtilmente para amainar os fermentos de drama em “A Ilustre Casa”, que continua mais vivo do que nunca.”. E Antonio Candido chama a atenção para os arrabaldes do trabalho crítico e para as razões que determinam de que maneira somos levados a encontrar, conhecer e amar as obras que se tornam prediletas, “sobretudo quando nos fazem companhia pela vida toda numa sucessão de leituras”. E interroga as contradições e os paradoxos, como acontece com Jünger com as cobras do Butantã, ao mesmo tempo propícias e fatídicas, sendo o único animal que vive no espaço destinado ao saber, à ciência do bem e do mal, segundo a tradição. Enquanto sobre Darcy Ribeiro recorda as três bandeiras que cobriam o seu caixão: a do Brasil, a do seu Estado de Minas Gerais e a dos Sem-Terra, referindo que “elas não encarnavam o país dos donos da vida, nem eram pendões de festa cívica, objetos cansadíssimos de discursos em cerimónias rotineiras”. E assim se incorporavam “os pais dos pobres, dos que precisam ser finalmente incorporados à nação”…
Como bem sabes, desde muito jovem convivi com os livros e o pensamento de Ortega y Gasset. E fui guardando e remoendo certas ideias que me enchiam o coração. De algumas delas amiúde te falei, sobretudo quando as surpreendia na liça das minhas cogitações. Mas creio que nunca te disse algo especial que me ocorreu aquando da minha primeira visita ao Japão, há décadas.
Um esforçado professor universitário nipónico procurava explicar-me a "timidez" de pronomes pessoais no falar japonês, recorrendo a conceitos e exemplos - de que já tratei noutras cartas e textos meus - enraizados numa visão abrangente do mundo, do humano e da natureza. Com o desenrolar das explanações, ia-se acentuando em mim uma qualquer impressão de "já visto", mas de pernas para o ar. Ao fim e ao cabo, ocorreu-me então que a noção "gassetiana" de que yo soy yo y mi circunstancia, se poderia traduzir, em japonês, por yo soy mi circunstancia y yo... Pouco ou nada sabendo que, quatro décadas mais tarde, acharia em Lévi-Strauss, antropólogo que eu pouco lera antes, uma interessante interpretação do "mistério". Descobri-a relendo o texto de uma conferência que ele proferiu em Kyoto, a 9 de março de 1988, sobre o tema de La Place de la Culture Japonaise dans le Monde, de que seguidamente traduzo alguns trechos.
Os filósofos ocidentais veem duas diferenças maiores entre o pensamento oriental e o deles. A seus olhos, o pensamento oriental caracteriza-se por uma dupla recusa. Primeiro, a recusa do sujeito, já que, de modos diversos, o hinduísmo, o taoísmo, o budismo negam o que, para o Ocidente, constitui uma evidência elementar: o eu, cujo carácter ilusório aquelas doutrinas insistem em demonstrar. Para elas, cada ser mais não é do que uma montagem provisória de fenómenos biológicos e psíquicos, sem elemento duradouro como é um si mesmo: aparência vã, inelutavelmente destinada a dissolver-se.
A segunda recusa é a do discurso. Desde os gregos que o Ocidente julga que o homem tem a faculdade de apreender o mundo, utilizando a linguagem ao serviço da razão: um discurso bem construído coincide com a realidade, atinge e reflete a ordem das coisas. Pelo contrário, segundo o conceito oriental, qualquer discurso está irremediavelmente inadequado ao real. A natureza essencial do mundo - a supor-se que tal noção tenha sentido - escapa-nos. Transcende as nossas faculdades de expressão e de reflexão. Dela nada sabemos, sendo assim melhor que nada digamos. [Lembrando a simetria, ou inversão de imagem, de que já vínhamos falando, Princesa de mim, ocorre-me que o próprio São Tomás de Aquino, Doutor da Igreja - e estrela da escolástica - já dizia, no século XIII, que de Deus só não sabia nada. Na verdade, da Sua existência, avançou provas várias, racionais. Mas sabia e reconhecia que, da Sua essência, nada sabia...].
A ambas as recusas [do sujeito e do discurso], reage o Japão de modo inteiramente original. Não dá ao sujeito uma importância comparável à que o Ocidente lhe atribui, nem dele faz o obrigatório ponto de partida duma reflexão filosófica, nem de qualquer tentativa de reconstrução do mundo pelo pensamento. Houve mesmo quem dissesse que o «Penso, logo existo», de Descartes é, em rigor, intraduzível em japonês...
Mas também não parece que o pensamento japonês aniquile o sujeito: antes fará, dele, não uma causa, mas um resultado. A filosofia ocidental do sujeito é centrífuga, já que tudo parte dele. Mas o conceito japonês do sujeito é centrípeto. Tal como a sintaxe japonesa constrói as frases por determinações sucessivas, que vão do geral ao particular, o pensamento japonês põe o sujeito na meta: ele resulta do modo como os grupos sociais e profissionais, cada vez mais restritos, encaixam uns nos outros. O sujeito volta assim a encontrar uma realidade, como se fosse o último lugar em que se refletem as suas pertenças.
Este modo de construir o sujeito pelo lado de fora também serve à língua, propensa a evitar o pronome pessoal, tal como à estrutura social em que a «consciência de si» (jigaishi) se exprime no e pelo sentimento que cada um, mesmo o mais humilde, tem de participar numa obra coletiva. Até ferramentas de conceção chinesa, como certas serras e tipos de plainas, só foram adotadas no Japão, há seis ou sete séculos, com um modo de emprego invertido: o artífice puxa a si a ferramenta em vez de a empurrar para a frente. Situar-se à chegada, e não à partida, de uma ação exercida sobre a matéria revela profunda propensão a definir-se pelo exterior, em função do lugar que se ocupa numa família, num grupo profissional, em dado meio geográfico, ou, de modo mais geral, no país e na sociedade. Dir-se-ia que o Japão revirou, como se revira uma luva, a recusa do sujeito, para extrair dessa negação um efeito positivo e aí encontrar um princípio dinâmico de organização social que ponha esta também a salvo da renúncia metafísica das religiões orientais, da sociologia estática do confucionismo e do atomismo a que o primado do eu expõe as sociedades ocidentais.
A resposta japonesa à segunda recusa é de género diferente. O Japão operou uma completa reviravolta de um sistema de pensamento: posto pelo Ocidente na presença de outro sistema, retém o que lhe convém e afasta o resto. Visto que, longe de repudiar em bloco o logos, tal como os gregos o entendiam - isto é, enquanto correspondência da verdade racional ao mundo - o Japão tomou resolutamente partido pelo conhecimento científico, onde, aliás, vem a ocupar um lugar de primeiro plano.
Seja como for, proponho-me agora sublinhar a importância pragmática de pensarsentirmos o indivíduo, o eu, não como centro mas como parte de um conjunto solidário, necessário ontologicamente. O ser humano, e não só, é um ser em relação, não se explica, nem sequer existe por si e para si. Ao cartesiano cogito, ergo sum, prefiro o gassetiano yo soy yo y mi circunstancia, posto que, sendo arbitrária a ordem dos fatores, o mesmo é dizer que yo soy mi circunstancia y yo... Aliás, as últimas encíclicas do papa Francisco lembram à nossa cultura hodierna o dever de nos pensarsentir prioritariamente na fraternidade da nossa humanidade comum e com a terra, nossa mãe e abrigo. Assim também me ensinou, ao longo destes anos todos, o meu convívio japonês.
Já aqui temos referido o Cineteatro Odéon na perspetiva da sua arquitetura de espetáculo e na tradição da atividade sobretudo cinematográfica mas também cultural-teatral, mesmo que esta tenha sido menos consistente e menos prolongada no tempo.
Ora importa, a esse propósito, referir então o que mais se prolonga no tempo, hoje, precisamente, o abandono, podemos dizer, em que o Odéon se mantém desde que deixou de funcionar: e mais podemos ainda dizer que em 2019 falou-se na reabertura do Odéon como teatro, projetada para a temporada de 2019/20. O que efetivamente não ocorreu!...
E no entanto o Odéon marca a arquitetura de espetáculo. É inaugurado em 1927 e em 1931, as obras de acrescento da galeria da fachada, juntamente com um algo insólito e como tal inesperado balcão lateral, pouco adaptável ao espetáculo cinematográfico, destacou as obras de reconstrução, digamos assim, do cineteatro, que como tal se previa viesse a funcionar. Hoje pode admitir-se que essa intervenção se destinaria mais ao espetáculo teatral em si mesmo: pois a lateralidade da galeria adapta-se mal ao cinema…
E em qualquer caso, a vocação teatral estava patente.
Importa pois recordar que essas obras de 1931 tiveram presente a vocação cénica do Odéon. E efetivamente, a construção à época de um balcão lateral mais de adaptava à cena do que ao cinema… havia pois, pelo menos subjacente, a vocação cénica do Odéon, e a relevância que na época tinha.
E precisamente: no estudo intitulado “Os Cinemas de Lisboa” (Bizâncio Ed. 2012), que já aqui temos citado, Margarida Acciauoli evoca o impacto que o Odéon provocou. Escreve:
«Embora se reconhecesse que o Cinema Odéon tinha também uma orquestra “excelente” e que os seus “fauteilles” eram “aceitáveis”, criticava-se violentamente a traça do recinto e a sua decoração de discutível gosto», assim mesmo!...
Ora pode aqui recordar-se que o Odéon funcionou como cinema até finais do século passado, mas a certa altura, aí pelos anos 60, “especializou-se” em filmes espanhóis, o que correspondeu a uma articulação com o âmbito cultural então de certo modo dominante. Já tivemos aliás ocasião de o recordar.
Mas isso não impediu que o Odéon marcasse de forma considerável a atividade de espetáculo em Lisboa.
Remetemos então para a artigo que aqui publicamos em janeiro deste ano, assinalando os 175 anos da inauguração de dois teatros em Lisboa, o D. Maria II e o Ginásio.
Aí referimos o eixo de espetáculos que a zona do Chiado e da Avenida da Liberdade representa como área central de atividades de espetáculo.
Citamos então os exemplos do Odéon, mas também os sucessivos Teatros do Ginásio, os sucessivos Teatro e Cinema Condes, o Eden, o São Jorge, o Politeama, o Coliseu, o Teatro do Palácio Foz, para não falar dos teatros e cinemas do Parque Mayer.
E para terminar, reproduzimos o que em 2016 escrevemos sobre o Odéon e a sua implantação na cidade.
Aí se detalha efetivamente o eixo urbano constituído pelo Chiado, pela Avenida da Liberdade e zonas circundantes. Mantem uma tradição de áreas de espetáculo mesmo considerando as transformações no Parque Mayer e o desaparecimento da atividade cinematográfica do Condes, herdeiro de uma sucessão de teatros e cinemas que vinham do século XVIII como mais tarde o Olímpia, o Eden e o Cinema Restauradores, para já não falar do Teatro do Príncipe Real, esse de finais do século XIX, nos anos 50 denominado Teatro Apolo.
A CPLP, organização internacional dotada de personalidade jurídica, veio institucionalizar a lusofonia, não provida de personalidade jurídica.
Partindo do pressuposto de que os países da CPLP, mesmo os mais desenvolvidos, como Portugal e o Brasil, são economias com desempenhos periféricos no atual contexto económico mundial (para além das assimetrias entre as partes), em que a cidadania lusófona pouco mais é que mera retórica; indicia-se que a sustentabilidade da lusofonia e da CPLP dependerão, no essencial e imediato, do relacionamento cultural, educacional, científico e tecnológico entre os países e o mundo lusófono que a partilham, cuja aproximação é facilitada no imediato por uma fala comum.
Porquê não reforçar algo que nos une em permanência, através de um reforço da oralidade, som, luz, imagem, emoções e sentimentos, que uma mesma fala, no imediato, sem esforço e com naturalidade, comunica e transmite?
Desde a criação de uma rede de formação e de docência CPLP, de livrarias lusófonas, de uma agência de notícias, de uma rede de rádio e de TV do conjunto de países e comunidades lusófonas dispersas pelo mundo, de feiras, congressos, simpósios, festivais, certames ou concursos, eventos paralelos na área do livro, do audiovisual (do CD ao DVD, passando por telenovelas, filmes, séries, documentários, reportagens ou séries televisivas), da música, da dança, do cinema, do teatro, da pintura, da escultura, da informática, da investigação científica, universitária, técnica, jurídica, ou outra, de toda a espécie de literatura, desde a técnica e científica, passando pelo jornalismo. Enveredar, a nível de ensino, pelo estudo de literatura de língua portuguesa ou lusófona, e não apenas angolana, brasileira, cabo-verdiana, moçambicana, portuguesa, etc., consoante o país em questão.
À semelhança do Prémio Camões, para a literatura lusófona, serem criados e partilhados outros prémios para as artes e ciências em geral.
Investir no ensino, investigação, ciência, tecnologia e cultura em geral, numa perspetiva não estritamente linguística e imediatista, mas também porque é por aí que transitam e se produzem as ideias e o conhecimento.
Essa aproximação direta e privilegiada, proporcionada pela língua, pode ser estendida ao desporto, do futebol ao atletismo, da natação a outras modalidades relacionadas com o mar que nos abraça, suas costas e praias, além de outros desportos, através da realização de torneios, taças e campeonatos. E porque não uns Jogos Luso-Afro-Asiático-Brasileiros, ou quejandos?
Ou alguém duvida que iniciativas destas podem fazer mais pelo idioma e laços comuns do que as reuniões e cimeiras da CPLP até hoje feitas?
Estas apostas para o futuro, passem ou não no quadro da CPLP, ou tão só por associações ou por sociedades civis lusófonas (consoante as situações), não impedem, no mínimo, que não possam ter contribuições políticas, incentivando-as, se e quando conveniente, ou necessário.
Aliás, tais apostas devem ser feitas ou incentivadas pela CPLP enquanto bloco e não a nível bilateral, contrariando o que vem sucedendo e dando o exemplo, como referência, para as associações e sociedade civil em geral.
A beleza e o músculo dos seus poemas sempre me deixaram claro que o importante é viver na padaria da aldeia de cada um. E regar os gladíolos, e vestirmo-nos com traje de humor e em coração, a luta e a colcha que nos cobre os dias.
Ainda hoje leio o grande Alexandre O’Neill com a surpresa que me deixa sempre. A sua prosa, também marcada pelas influências surrealistas - ou não tivesse O’Neill sido um dos fundadores do Grupo Surrealista de Lisboa, com Mário Cesariny, José-Augusto França entre outros, tendo tido lugar as primeiras reuniões deste grupo na conhecida pastelaria Mexicana – utilizava um jogo de palavras lúdico e único e também se caracterizava por uma intensa sátira aos portugueses tão clara na expressão "meu remorso, meu remorso de todos nós".
O’Neill não conseguindo viver apenas da sua arte, chegou-se até ao campo da publicidade e é da sua autoria o lema
«Há mar e mar, há ir e voltar» ou, da campanha desse Verão «Passe um Verão desafogado». Alçada que tanto admirava Alexandre O’Neill e que sempre foi seu grande amigo, relatou-me que um dia tinha perguntado ao O’Neill, qual seria a razão do bom entendimento deles, ao que Alexandre teria respondido, dizendo de imediato “ A gente dá-se bem porque não se leva a sério”.
António Alçada considerava-se neste grupo de amigos, um crente entre os ateus e uma vez, num táxi, seguia O’Neill com José Cutileiro e disseram adeus ao António Alçada quando por acaso o avistaram. E o Alexandre terá dito para o José Cutileiro: “ O António ficou a pensar: lá vão aqueles para o ateísmo”.
Um dia o António escrevia a sua crónica para a revista Máxima quando me disse: “Sabes que o José Cutileiro tinha bons versos? Recordo aquele “ De si me sirvo amor como de tudo” e , como o declamou ao lado do Alexandre, este, fez-lhe o reparo
Falta aí uma vírgula. De si me sirvo, amor, vírgula, como de tudo.
Alexandre O’Neill sempre com humor era um prazer ouvi-lo, uma verdadeira fonte de achados linguísticos, assim me transmitiu o António Alçada num dos múltiplos dias em que do Alexandre me falou.
E tendo acordado naquele Domingo com um poema do Alexandre na memória, o António telefonou-me e lá fomos almoçar ao restaurante em Sintra. A verdade, é que a dada altura, subíamos a Serra de Sintra na 4L do António, enquanto eu lia em alta voz um poema do O’Neill que começava
Congresso de gaivotas neste céu Como uma tampa azul cobrindo o Tejo - Ó António !, gritei-lhe, olha que não estamos a subir. O carro não sobe? - Olha Teresinha senti o mesmo, mas não queria interromper o poema. - Ó António, não estás a ver que trazemos o caixote do lixo agarrado ao pára-choques?
E continuei
Querela de aves, pios, escarcéu. Ainda palpitante voa um beijo. E o Alçada olhou-me e comovidamente disse-me:
Ó Teresa ainda bem que não paraste a leitura do poema do O’Neill. Foi a melhor homenagem que lhe fizeste: o caixote do lixo pode perfeitamente querer ouvir o poema de um beijo.
Teresa Bracinha Vieira
Obs: Solicitou-se a reposição deste texto publicado em 2013 neste blogue.
Há uma vivência radical que põe o pensamento em sobressalto. Cada um de nós sabe que não esteve sempre no mundo, isto é, que nem sempre existiu e que não existirá sempre. Houve um tempo em que ainda não existíamos, ainda não vivíamos, e haverá um tempo em que já não existiremos, já não viveremos cá, deixaremos de viver neste mundo. Nesta constatação, experienciamos que somos de nós, somos donos de nós — essa é a experiência da liberdade —, mas não nos pertencemos totalmente, não somos a nossa origem nem temos poder pleno sobre o nosso fim. Viemos ao mundo sem nós — ninguém nos perguntou se queríamos vir — e um dia a morte chega e leva-nos pura e simplesmente. Não nos colocámos a nós próprios na existência nem dispomos totalmente do nosso futuro, não somos o nosso fundamento. Aqui, perante a certeza de que nem sempre estive cá e de que não estarei cá para sempre, pois morrerei, ergue-se, enorme, irrecusável, a pergunta: donde vim?, para onde vou?, qual é o sentido da minha existência?, que valor tem a minha vida?
Esta pergunta formula-se em relação a todos os seres humanos, à vida em geral, a toda a realidade.: Porque é que há algo e não nada?, perguntaram Leibniz e Heidegger, entre outros, mas ela diz respeito concretamente a cada um, a cada uma, de modo existencial e tem carácter ao mesmo tempo teórico e prático, uma vez que implica a liberdade. Ela é a pergunta mais originária e fundamental, como bem viu Albert Camus: “Se a vida tem ou não tem sentido, essa é a questão metafísica”. De facto, o ser humano não pode viver sem sentido. Aliás, a existência humana está baseada na convicção do sentido. Há um pré-saber do sentido, de tal modo que a sua própria negação ainda o afirma. No limite, não é possível o “suicídio lógico”, pois quem pegasse numa arma para suicidar-se, porque tudo é absurdo, estava a negar o absurdo e a afirmar o sentido: pelo menos esse gesto tinha sentido...
Assim, quando se fala em sentido da vida, é preciso referir o “ter sentido” — há inteligibilidade e valor no ser —, e o “dar sentido”: comprometer a liberdade na tarefa de realização da existência própria. Dar sentido pressupõe encontrá-lo antes. E fundamentalmente sente a vida como tendo sentido quem vê a sua existência reconhecida.
A nossa vida não tem sentido, quando não vale para ninguém. No entanto, suportamos e superamos sofrimentos e fracassos, se alguém nos reconhece; erguemo-nos outra vez, apesar de tudo, se a nossa vida continua a ter valor para alguém, se alguém nos ama. Então, reciprocamente, a vida tem sentido, quando saímos de nós e nos dedicamos a alguém ou a uma causa. Quem não ama nem é amado sente a vida vazia de sentido, isto é, sem valor, como não valendo a pena. E como pode encontrar sentido quem não tem uma causa que o transcende e pela qual se bate?
O famoso psiquiatra e psicoterapeuta, Viktor Frankl, fundador da logoterapia, mostrou — ele sabia-o por experiência, pois esteve prisioneiro nos campos de concentração nazis — que a experiência mais radical do ser humano é o sentido, razões para viver. Ao contrário do que afirmaram Freud e Adler, no mais fundo de nós não se encontra a exigência de prazer e de poder, respectivamente, mas a vontade de sentido. Claro que o prazer é importante na vida, mas o prazer não garante a felicidade, um dos maiores enganos e ilusões consiste mesmo em confundir a felicidade com a soma de prazeres; concretamente, o prazer erótico, sem amor, sem encontro pessoal de liberdades em corpo, vai definhando e morrendo em frustração pornográfica. O poder pelo poder passeia-se pela vaidade oca de estrelas cadentes e na dominação político-económica arrogante e totalitária, e, depois... o que resta senão a ilusão de grandezas que murcham e se apagam? Ah!, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade!”, constata o Eclesiastes.
O paradoxo é este: a felicidade não pode ser buscada por si mesma, pois surge como consequência da realização dos valores e do sentido: é esquecendo-se de si e entregando-se a alguém, no serviço de grandes causas, que os seres humanos verdadeiramente se encontram a si mesmos. Investigadores sociais e psiquiatras não têm dúvida de que o vazio e a frustração existencial são uma das causas maiores dos desequilíbrios psicológicos do Homem contemporâneo. E mostram que a carência de sentido está frequentemente na base da dependência da droga, do alcoolismo, da criminalidade, do suicídio.
E a prova do sofrimento? Em primeiro lugar, até porque muitas vezes a religião sacralizou o sofrimento, como se Deus precisasse do sacrifício dos seres humanos para aplacar a sua ira, é preciso dizer que o sofrimento pelo sofrimento não só não vale nada como deve ser evitado como um mal. Mas é preciso acrescentar com igual veemência, concretamente neste tempo de hedonismo selvagem, que nada de grande, bom e valioso se consegue sem sacrifício. Quem, por exemplo, não está disposto a sofrer pela pessoa amada não ama verdadeiramente. É necessário aprender a alegria de superar obstáculos para atingir objectivos valiosos: já os Gregos associaram sofrer e aprender. Viktor Frankl verificou, concretametnte nos campos de concentração, que sobreviviam aqueles que ainda tinham um sentido para a sua existência: reencontrar a família, realizar uma obra, bater-se por uma causa, lutar por um ideal, proclamar ao mundo: “Nunca mais este horror!” “Dos que pudemos sobreviver só sobriveram os que encontraram sentido para o sofrimento.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 30 JAN 2021
Jean Graton, criador da personagem Michel Vaillant, morreu aos 97 anos em Bruxelas. É uma das grandes referências da escola franco-belga da “linha clara”, com Hergé, Greg, Tibet, Jacques Martin, E.P. Jacobs, Franquin, Albert Uderzo e René Goscinny. Nascido em Nantes em 1923, Jean Graton cultivou duas paixões - arte e desporto – transformando-as em grande sucesso nas pranchas da banda desenhada, ao criar em 1957 o piloto de Fórmula 1 Michel Vaillant (Miguel Gusmão em Portugal).
Os começos nas histórias de quadradinhos deram-se na revista Spirou (“As Mais Belas Histórias do Tio Paulo”). No ano de 1953, já na revista "Tintin", publica "A primeira corrida", traduzida em português, no "Cavaleiro Andante" no mesmo ano. Era a primeira de muitas narrativas curtas de temática desportiva.
"Michel Vaillant" estreou-se em 12 de junho de 1957, em histórias de quatro páginas, tendo "A 24.ª hora" sido publicada em português no "Falcão". "O grande desafio" (1958, "Cavaleiro Andante" n.º 357) seria a primeira de 70 histórias longas, que levariam o piloto francês, filho de um construtor de automóveis, a competir na Fórmula 1, em motas, stock cars, ralis e karts. A opção pelo mundo da competição automóvel, segundo Jean Graton escreveu no primeiro volume integral da série, surgiu porque "gostava de desenhar automóveis e conhecia bem o mundo das corridas". Por isso, "o meu herói foi um piloto".
O portal Lambiek, dedicado à banda desenhada, que eu frequento muito, refere que o artista francês era muito rigoroso no tocante ao desporto automóvel e fazia bastante pesquisa, incluindo idas a corridas, a fábricas e encontros com especialistas e pilotos. "Jean Graton participou em corridas e ralis em quase todo o mundo, tendo-se apaixonado pelo Rali de Portugal e ganhando a amizade de Alfredo César Torres, grande nome do automobilismo em Portugal. É impressionante a documentação que foi recolhendo, o que dava uma grande verosimilhança às ilustrações e às narrativas. Desde 1982 que Jean Graton tinha a titularidade plena dos seus direitos de autor, tendo criado a sua própria editora, Studio Graton, com a participação do filho, Philippe Graton, que se tornou, entretanto, argumentista das histórias de Michel Vaillant, que continuam a publicar-se. Quando Jean Graton se reformou em 2004 tinham sido já editados cerca de 70 álbuns da série com o piloto.
É muito difícil de explicar aos neófitos o extraordinário sucesso de Jean Graton em todo o mundo, mas em especial no caso de Portugal. Vários são os álbuns referem Portugal, podendo dizer-se que teve na divulgação turística entre nós um papel fundamental. Duas das suas aventuras decorrem inteiramente no nosso país: "Rali em Portugal" (1969) e "O homem de Lisboa" (1984), e esta última com um enredo de base policial.
Ao longo de quase 50 anos, a série aos quadradinhos foi um reflexo da realidade desportiva, com o herói a manter-se jovem e a acompanhar não só a evolução dos automóveis como a de várias gerações de pilotos com quem confraternizou e competiu como: Graham Hill, Jackie Stewart, Jacky Ickx, Niki Lauda, Ayrton Senna, Michael Schumacher ou o português Pedro Lamy (em "A prova", 2003). Perdemos um grande amigo de Portugal e um mestre da Banda Desenhada.
A decisão aprovada por unanimidade na Assembleia da República visando conceder honras de Panteão Nacional a José Maria Eça de Queiroz constitui um ato de elementar reconhecimento em relação a quem é referência indiscutível das culturas de língua portuguesa. No lugar cívico de homenagem a figuras referenciais da história portuguesa, está em causa a valorização do Panteão, de modo a melhor dignificar uma identidade nacional antiga, aberta, complexa e fecunda.
PANTEÃO NACIONAL Em Portugal, o estatuto de Panteão Nacional está hoje atribuído ao antigo templo de Santa Engrácia em Lisboa, ao Mosteiro Santa Cruz em Coimbra e ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha), onde se encontram os túmulos dos dois primeiros reis de Portugal e dos fundadores da Dinastia de Avis. No Panteão estão sepultadas figuras nacionais marcantes e são ainda recordados, através de “cenotáfios”, os nomes de: Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e Luís de Camões. O mosteiro dos Jerónimos funcionou provisoriamente como Panteão, mas não tem hoje esse estatuto formal, ainda que tenha os túmulos de Vasco de Gama e de Luís de Camões, na nave do templo, de Alexandre Herculano, na antiga Sala do Capítulo e de Fernando Pessoa. Em S. Vicente de Fora, está o Panteão da Dinastia de Bragança, onde se encontram sepultados membros da família real que reinou após a Restauração de 1640. No entanto, trata-se aqui de um Panteão familiar. Desde a antiga Grécia e depois em Roma, a palavra Panthéon designava o templo onde se honravam os deuses com culto reconhecido. A palavra é grega e significa literalmente “todos os deuses”. Em Roma, o Panteão que chegou aos nossos dias é a homenagem ao cônsul Marco Agripa (63-12 a.C.), que o mandou construir em 27 a.C. No ano 80, foi praticamente destruído por um incêndio. Quatro décadas depois, o imperador Adriano (76-138) ordenou a sua reconstrução. Foi o cristianismo que, em virtude da doação de um rei bizantino ao Papa Bonifácio IV no século VII, salvou o monumento da pilhagem e da destruição, adotando o orago de Santa Maria e Todos os Santos. No Panteão de França, em Paris, a construção como templo religioso foi iniciada em 1764, por encomenda de Luís XV, em ação de graças por ter recuperado de uma grave enfermidade. A obra apenas foi concluída em 1790, depois da Revolução tendo sido então transformado num edifício secularizado, com a função de homenagear os vultos que se notabilizassem na pátria. Também na Abadia de Westminster, em Londres, estão sepultadas grandes figuras britânicas como William Shakespeare, Isaac Newton e Charles Darwin. Foi assim a partir duma tradição ora religiosa ora secular que foram criados os Panteões Nacionais.
VENCIDOS, MAS VENCEDORES Se há figura histórica em Portugal cuja presença no Panteão Nacional se justifica plenamente, é o autor de Os Maias e de A Ilustre Casa de Ramires, como romancista que retratou a sociedade portuguesa do final do século XIX em termos que nos permitem compreender melhor de onde vimos e quem somos. Não significa isto que a sociedade contemporânea não tenha mudado. Mudou muito, mas prevalecem elementos duradouros que nos permitem pôr em confronto o que resiste e o que se transforma. Ainda se usa a expressão vencidismo para caracterizar a geração de Eça de Queiroz – no entanto não tem sentido negativo essa expressão, uma vez que a palavra “vencidos” nasceu como uma ironia (“battus de la vie”) que o tempo não confirmou como fatalidade profética, mas sim como orientação crítica e como obrigação de uma modernização cosmopolita e europeia. Não transigir com a mediocridade e o atraso foi a marca dessa geração de 1870. E se virmos bem, Eça de Queiroz, sendo um diplomata a viver fora de Portugal, foi sempre na perspetiva de português que retratou a nossa sociedade. A marca própria está na visão citadina que sempre imprimiu à sua obra, enquanto alguém como Camilo Castelo Branco (romancista de primeira água, a merecer também as honras de Panteão) foi mais próximo do país profundo rural, apesar da sua extraordinária cultura erudita. Afinal, é uma geração que não se deu por vencida, tendo ousado diversas tentativas políticas, que pecaram tantas vezes por uma razão fora do tempo ou pela fragilidade dos meios disponíveis. Contudo, até aos nossos dias essa geração foi transversal na sua inequívoca influência, marcando (pode dizer-se) as várias famílias políticas e correntes de opinião na cultura e nas artes, dos conservadores aos modernistas. Como dirá Oliveira Martins a Ramalho Ortigão, a propósito de “As Farpas”: “V. e o Queiroz reúnem os dois modos eminentemente modernos de rir. A um o espírito francês, ao outro o humorismo alemão. Enquanto um põe fria e secamente o problema e tira dele todas as conclusões, lógicas até ao absurdo, o outro fantasia com uma ironia dolorosa e profunda”… Esse sentido crítico, esse pendor picaresco fazem parte da necessidade inconformista e da exigência de superação da indiferença. E em Os Filhos de D. João I, diz Oliveira Martins: “Ocorre, portanto, indagar qual vale mais, se vencer, ou ser vencido? Convém perguntar se num mundo incompleto e imperfeito, como tudo o que é real, a bondade, a virtude, a nobreza e esse bater de asas para o ideal, representado à imaginação dos gregos na fábula de Ícaro, não serão em verdade causas de permanente desgraça? Feira de ironia, a realidade parece condenar aqueles que ousam querer desvendar-lhe as leis, quebrando o selo terrível do mistério. Contraditório na essência íntima do seu próprio ser, o mundo esmaga quem se propõe vencê-lo, desflorando-lhe a intimidade dos segredos. Viver é ignorar”. No fundo, o desvendar desse mistério e o tentar propor soluções para os problemas pode não ter resultados imediatos, mas é suscetível de abrir caminhos futuros. Eis o que procurou a geração de Eça de Queiroz. No debate parlamentar, o deputado José Luís Carneiro lembrou que este preito de homenagem constitui também um agradecimento à família de Eça, que legou o seu património material e imaterial à Fundação sediada em Santa Cruz do Douro, em Baião, agora presidida pelo bisneto do escritor, Afonso Cabral. E recordou o papel de Manuel de Castro, neto do romancista, que presidiu à Câmara de Baião, e de D. Maria da Graça Salema de Castro, promotora de um extraordinário projeto de desenvolvimento, que constitui a afirmação do património cultural como irradiação de iniciativas que através da memória promovem a emancipação dos povos e a justiça social. E assim se concretiza a fidelidade ao pensamento de Eça de Queiroz e da sua geração – para quem o País não poderia ser condenado ao atraso e à mediocridade. E as “honras de Panteão Nacional” significam reconhecimento de um excecional contributo cultural e cívico.