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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

FRANCISCO E O PÓS-PANDEMIA. 1


São 187 os países que têm relações diplomáticas com a Santa Sé/Vaticano. Também várias organizações internacionais, como a União Europeia, a Liga dos Estados Árabes, a Organização Internacional para as Migrações, o Alto-Comisssariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Ordem Soberana Militar de Malta, têm um representante junto do Papa.


1. Como habitualmente, também este ano o Papa Francisco saudou o Corpo Diplomático num discurso com propostas para o futuro novo. Derrotar o vírus é “uma responsabilidade que nos envolve a todos: cada um de nós pessoalmente e também os nossos países.” O ano de 2020 “deixou atrás de si um peso de medo, desânimo e desespero, a par de muitos lutos.” A pandemia mostrou como somos interdependentes: os seus efeitos são verdadeiramente globais, afectando toda a Humanidade. “Pôs-nos em crise, mostrando-nos o rosto de um mundo doente, não só pelo vírus, mas também no meio ambiente, nos processos económicos e políticos, e ainda mais nas relações humanas. Colocou diante de nós uma alternativa: continuar pelo caminho que temos seguido ou empreender uma nova via.”


Francisco apresentou as crises causadas ou manifestadas pela pandemia, examinando ao mesmo tempo “as oportunidades que delas derivam para construir um mundo mais humano, justo, solidário e pacífico”.  O ponto central é a dignidade inviolável da pessoa humana. Tendo I. Kant em fundo, disse: “Cada pessoa humana é um fim em si mesma, nunca um simples instrumento cujo valor é medido só pela sua utilidade, e foi criada para conviver na família, na comunidade, na sociedade, onde todos os membros têm a mesma dignidade. Desta dignidade derivam os direitos humanos, bem como os deveres”, e lembra, por exemplo, a responsabilidade de acolher e ajudar os pobres, os doente, os marginalizados. “Se se suprime o direito à vida dos mais débeis, como se poderá garantir de facto todos os outros direitos?”.


Aqui, impõe-se perguntar: qual é o fundamento da dignidade da pessoa humana, fim em si mesma e não simples meio? Pessoalmente, defendo que esse fundamento se mostra e se encontra na constituição do ser humano, constiuição que o faz perguntar, mas de tal modo que, de pergunta em pergunta, inevitavelmente chegará à pergunta pelo Infinito. Nesta capacidade de perguntar ao Infinito pelo Infinito, em última análise, por Deus, mostra-se que o Homem tem em si algo de infinito. E só o Infinito é fim e não meio: na verdade, o que é que há para lá do Infinito? Por isso, a pessoa humana é livre e faz a experiência da liberdade no ser dada a si mesma. Cada um/a é senhor/a de si mesmo/a e das suas acções, autopossui-se, é dono/a de si e das suas acções, respondendo por elas: é responsável.


2.1. Crise sanitária.
A pandemia colocou de modo violento à nossa frente “duas realidades iniludíveis da existência humana: a doença e a morte”. Perante elas, tomámos consciência mais aguda do valor e dignidade  de cada vida humana. De facto, perante a morte, cada um/a é confrontado/a  com o seu ser único, como revela aquele clamor dramático de Miguel de Unamuno frente à morte: “Ai que roubam o meu eu!” A doença e a morte lembram-nos também a necessidade e o direito ao cuidado: precisamos de ser cuidados e de cuidar. Aos responsáveis políticos e de governo impõe-se, portanto, o esforço para favorecer “o acesso universal à atenção sanitária de base”, não podendo ser só “a lógica do lucro” a guiar um sector tão delicado como decisivo. Evidentemente, no imediato, é necessário assegurar “a distribuição equitativa das vacinas, que devem beneficiar toda a Humanidade”. Aqui, diria eu, até por uma imposição de um egoísmo esclarecido: de facto, dada a interdependência, enquanto não forem todos vacinados, estamos todos ameaçados, tanto mais quanto há o perigo de contínuas novas variantes do vírus. Ninguém é uma ilha; como escreveu John Donne, “a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte da Humanidade.”


2.2. Crise ambiental.
Percebemos agora melhor que não é apenas o ser humano que está doente, também o nosso planeta Terra está doente, e “a pandemia mostrou-nos mais uma vez a medida em que também é frágil e quanto precisa de cuidados.” Francisco espera que a próxima Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), em Glasgow, em Novembro próximo, “permita chegar a um acordo efectivo para enfrentar as consequências das mudanças climáticas. Este é o momento de agir, pois já estamos a sentir os efeitos de uma prolongada inacção.”


2.3. Crise económica e social.
A pandemia impôs restrições à circulação e confinamentos, que acabaram por provocar inevitavelmente uma terrível crise social e económica a nível global. Esta crise “é uma ocasião propícia para recolocar a relação entre a pessoa e a economia. É necessária uma espécie de “nova revolução copernicana” que ponha a economia ao serviço do Homem e não ao contrário, começando a estudar e a praticar uma economia diferente, “a que faz viver e não mata, que inclui e não exclui, que humaniza e não desumaniza, que cuida da criação e não se alimenta da depradação.” Não se pode buscar soluções particulares para problemas que são globais. Neste sentido, o plano Next Generation EU é um bom exemplo de colaboração e solidariedade.  “Que a conjuntura seja também um estímulo para perdoar ou pelo menos reduzir a dívida dos países mais pobres, que de facto impede a recuperação e o pleno desenvolvimento.”   (Continua)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 MAR 2021

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Louis Kahn e a busca pela essência das coisas através de três ideias.


Durante os últimos vinte anos da sua vida, Louis Kahn busca pela essência das coisas através de três ideias, hierarquicamente dispostas: a ideia de natureza do espaço; a ideia de ordem; e a ideia de dispositivo.


A ideia de natureza do espaço
diz respeito ao que o espaço quer ser - porque um determinado espaço tem vontades específicas para existir (uma escola deve ser a escola; uma casa deve ser a casa). Segundo Kahn, existem também leis universais que o ser humano intuitivamente entende por apresentarem uma estrutura proveniente do inconsciente coletivo (arquétipo). Esta ideia implica a noção do todo, a ligação de intuição à concretização e a individuação de cada forma. Cada espaço tem uma natureza própria e está sempre em constante relação com os outros espaços: “The plan is a society of rooms. The rooms relate with each other to streghten their own unique nature.” (Kahn 1971)


Nature of space - Desire - What do you want?
(Kahn 1954)


A ideia de ordem
natural conduz à ordem humana concretizada pela ordem estrutural que, por fim, pode trazer a Luz. Para Kahn, a ordem, baseada na geometria e nas formas do passado, é um resultado de forças criativas, é um modelo de organização da natureza do espaço. Kahn acredita que mesmo as formas da natureza são criadas a partir de forças que atuam sobre elas e, por isso, tudo obedece a uma lei física e universal que apela a uma determinada ordem. Anne Tyng em muito contribuiu para a procura de Kahn pela ordem das coisas. Tyng baseava o seu trabalho em princípios de organização geométricos, fixando elementos que guiavam a intuição para o desenvolvimento do desenho.


Para Kahn, a intuição do arquiteto tem assim de ser capaz de entender a natureza humana, a natureza das leis universais, o arquétipo e a intuição.


Order - Seed - What are the principles which lead to its being? - From an Order of common usage emerges style.
(Kahn 1954)


Por fim, a ideia de dispositivo consiste em considerar as condições reais e programáticas, que contêm já em si ordem e que articulam, respeitam e intensificam a natureza dos espaços criados.


Design - Composition - What are the circumstances (environment) which are at play? Design does not evolve style. Imagery is gotten from order.
(Kahn 1954)

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

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   De 29 de março a 4 de abril de 2021

 

«Sinais de Fogo» de Jorge de Sena (Livros do Brasil, 2017) é na obra do autor uma referência fundamental.

 

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A MEMÓRIA DOS ANOS TRINTA

Os anos de 1930 em Portugal foram literariamente marcados pela confluência entre o psicologismo e a incerteza social, num momento em que, ao contrário do que acontecera nas vésperas da Primeira Guerra, havia consciência de que algo de trágico se preparava. Em Sinais de Fogo, publicado postumamente em 1979, Jorge de Sena, com essa consciência, faz a análise de um tempo perturbador. O panorama geral é o de uma guerra próxima, que se indicia no seio da sociedade, e deixa as pessoas inseguras. Era uma sensação estranha e, ainda que pudesse não nos tocar diretamente enquanto país, teria sempre efeitos. E o romance, que procura retratar esse tempo, regista uma lembrança autobiográfica. O realismo cruza-se com o sonho, e o desenho geral da narrativa não esquece a tónica surrealista. Sinais de Fogo é concebido como o início de um ciclo não cumprido, que se intitularia como Monte Cativo, e que decorreria entre 1936 a 1959. Tudo começa na Figueira da Foz, subitamente cheia de espanhóis, com uma guerra civil em curso do lado de lá da fronteira, a perturbar já a tranquilidade da província.

 

A GUERRA TÃO PRÓXIMA

O ambiente político da guerra e de um regime policial recém-implantado constitui a base da ação – num romance de formação marcado pelo acordar dos sentimentos mais íntimos de um adolescente... E o protagonista interroga-se: “Era eu diferente dos outros? Estivera, desde sempre, destinado a sê-lo? Ou um conjunto de circunstâncias excessivamente extravagantes me transformara o suficiente para isso? Mas, se as circunstâncias haviam podido ter um tal resultado, não seria porque já eu estava destinado à diferença (que poderia dar-se ou não dar-se) de um conjunto delas agir sobre mim? Eu não queria ser diferente dos outros em nada, e não me sentia diferente. Pelo contrário, o que eu descobrira, ou descobria, é que todos são diferentes, desde que a hora ou o momento surjam”… A poesia, os sentimentos íntimos, a consciência política, tudo emerge num torvelinho de acontecimentos. E é um poeta que vai nascendo… “Poeta, para mim, como para a minha família, e para os meus amigos, era uma pessoa algo caricata, segregada da normalidade da vida, e que se instalava na personalidade romântica de falar por conta própria ou dos outros, como se o que ele dissesse fosse da mais alta e especial transcendência, não o sendo realmente para ninguém a não ser em ocasiões muito especiais”. Como diz Jorge Fazenda Lourenço: “Sinais de Fogo seria uma longa meditação sobre o caminho que vai do instante de se ‘ter nascido poeta’ (por Graça) ao momento de ‘reconhecer-se poeta’ (por Obra)” (“Relâmpago”, nº 21, outubro de 2007). E esse percurso, neste romance de formação, acompanha o drama violento da Guerra de Espanha e descreve a evolução difícil do desenvolvimento espiritual, do desabrochamento sentimental, da aprendizagem humana e social. A instabilidade externa pontua a agitação íntima numa metamorfose, que antecipa e justifica a profunda alteração das circunstâncias do mundo. Daí a preocupação de Jorge de Sena, como romancista, distanciado no tempo, em misturar propositadamente a realidade e o sonho, o conjunto e a singularidade… E assistimos assim à sucessão de uma guerra e de um armistício entre Jorge, o protagonista, e as suas memórias, quando o país e o mundo mudam intensamente. E os anos trinta anunciam com nitidez esse contraste entre a ilusória placidez interna de um Portugal ameaçado, mas incrédulo, e a proximidade de uma grande tragédia que, como sabemos, vai ser global, sem se conhecer se seríamos também envolvidos no drama anunciado. De qualquer modo, avista-se no horizonte o negrume da morte… O certo é que “a imprevisibilidade não era senão o sinal de que o maior horror da responsabilidade estava em não poder haver responsabilidade alguma”. E, ao cair do pano, com a ameaça irónica de uma intentona sem sucesso, vislumbramos a estranha contradição entre o medo e a angústia das tragédias imprevisíveis. E é a própria responsabilidade que se desvanece, perante a negação da liberdade. “Não era que as pessoas fossem coniventes de uma revolução falhada (…). Algumas, por certo leriam o jornal com o mesmo ansiado prazer de a ordem e a disciplina serem mantidas, que houvera na voz de minha mãe. E, todavia, essas mesmas sentiam-se sós e incomunicáveis, por terem aceitado que a ordem e a disciplina fossem uma coisa exterior a elas, defendida por outros, em nome de um governo que tomara sobre si o defini-las e se atribuía a omnisciência mesmo de revoluções que chegavam a sair e causavam mortos e feridos…”.

 

REFERÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS

Este é o tempo em que a revista “Presença” (1927), órgão do nosso segundo modernismo, valoriza a narrativa de aventura individual e das questões não redutíveis aos conflitos sociais. É a “Literatura Viva” que está em causa. Casais Monteiro teoriza sobre o Romance Contemporâneo. Elói – ou Romance numa Cabeça, de João Gaspar Simões (1932) e O Jogo da Cabra-Cega de José Régio (1934) ilustram essa preocupação. Régio assume um tema confessional, no qual estão ligados os conflitos interiores entre o humano e o divino, o bem e o mal, a carne e o espírito. Pedro Serra descobre a pós-adolescência, com um alter-ego, Jaime Franco, como contraponto diabólico de si. Diferentemente, a novela O Barão de Branquinho da Fonseca (1942) baseia-se numa complexa invenção mítica de uma personalidade dominadora que leva o narrador para surreais caminhos mágicos. É o tema da singularidade pessoal que ocupa os caminhos do novo Romance. Note-se, aliás, que alguém distante do presencismo, como José Rodrigues Miguéis, publica em 1932 Páscoa Feliz, sob a influência de Dostoievsky e Raul Brandão, em registo psicológico: “a verdade é que psicologia a mais, angústia a menos, o Renato desta novela é apenas o subproduto de uma fauna provinciana que em Lisboa desagua, se dissolve e perece”, na expressão do autor. E a dimensão psicológica social termina em pura esquizofrenia. Por outro lado, José Marmelo e Silva em Sedução (1937) aborda o tema complexo da adolescência e da libertação moral de um modo reconhecidamente acutilante e original com apreciável capacidade analítica e sentido romanesco, mais tarde confirmado em Adolescente Agrilhoado (1948).

1934 é ainda para Miguel Torga, que se afastara do grupo da “Presença” com Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca em 1930, o ano emblemático do surgimento do nome literário, que invoca a vocação ibérica de Cervantes e Unamuno e a urze dos montes transmontanos. Isto ocorreu com a novela A Terceira Voz, onde o escritor procura mostrar a força do espírito inconformista, da independência de espírito, da resistência, do antes quebrar que torcer, do sacrifício propiciatório de reacender o fogo pátrio… Se é certo que não foi esta a obra que pôde consagrar, depressa a força que lhe estava subjacente projetou-se nas páginas de A Criação do Mundo e no Diário, que vieram a consagrar o escritor como referência fundamental – consciência crítica, cidadão capaz de ligar duravelmente a salvaguarda da singularidade e a capacidade de compreender a força emancipadora da sociedade. Será diferente a década seguinte, mas a tomada de consciência de uma singularidade que se torna ponto de encontro entre o reconhecimento da criatividade individual e a necessidade libertadora do espírito crítico marca decisivamente a caminhada que Jorge de Sena descobre em Sinais de Fogo, no sentido da presença do eu no mundo.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XXIII

 

Minha Princesa de mim:


   Nitobe Inazo nasceu em 1862, pelo que a queda do shogunato Tokugawa o pôs em plena restauração Meiji e a duração da sua vida lhe permitiu ainda viver, além da Meiji, as eras Taisho e parte da Showa. Tendo morrido em 1933, foi poupado à loucura e à derrota do Japão na Segunda Grande Guerra. Foi claramente um homem do renascimento japonês do seu tempo, tendo vivido na Alemanha, Reino Unido e, sobretudo, nos EUA, sem todavia jamais deixar de refletir sobre as questões que um processo de modernização coloca ao bom governo e educação de uma sociedade em vias de aculturação. Converteu-se ao cristianismo, casou com uma americana quaker, traduziu abundantemente do alemão e do inglês, chegando ainda a escrever, em ambas essas línguas, obras de sua autoria, mas manteve-se sempre ao serviço da sua pátria, quer como universitário e professor, quer como diplomata (esteve na conferência de Versailles, em 1918, e representou o Japão na Sociedade das Nações). Feita a apresentação, apenas o recordo aqui para citar, em tradução minha, um breve trecho do seu Bushido, l0âme du Japon (versão francesa da Budo Éditions, Noisy-sur-École, 2000):


      A erudição é um legume malcheiroso que é preciso ferver e voltar a ferver antes de se poder consumir.


   Parece-me, minha Princesa de mim, que sendo nós um povo cuja cultura se compraz no amanho de algum exibicionismo e, designadamente nos meios ditos intelectuais, de um alarde de erudição que mais recorda excessos decorativos de um gosto "kitsch" do que, propriamente, a busca e partilha de referências pertinentes, será certamente salutar refletirmos sobre o saber  cozinhar e digerir muito daquilo que, por aí, se afixa ou proclama como "bagagem cultural". Por vezes, aliás, o artifício é tão artificial - como, desta tão enfática forma, me ocorre observar - que torna insuportavelmente vistosa a vaidade irreprimível de um autor ou orador: assim o despropósito de umas citações rebuscadas em discursos cujo pensarsentir deveria ser bem distinto... Até por respeito pelos ouvintes... Mas passa-se como se alguém, inspirado pelo filme Zorro, the Gay Blade, surgisse de sopetão perante a assistência e as câmaras gritando, em jeito de Coucou me voilà! «eis-me aqui, que sou tão "culto"!» Mas deixarei para outra carta, Princesa de mim, mais observações sobre este e outros aspetos da pitoresca construção mediática de fulanismos míticos em Portugal... Por hoje, regresso ao Japão.


   Urabe Kenko, o autor medieval de Tsurezuregusa (Horas de Lazer), de que já falámos, tem, na mesma obra, esta curiosa observação acerca dos valores cultivados pela aristocracia da corte imperial: A verdade encontra-se no estudo sistemático das letras clássicas, na arte da composição chinesa e da poesia japonesa, na prática da arte musical ; mais ainda, no conhecimento das regras da corte imperial e das cerimónias tradicionais... ...ou em possuir mão hábil para a escrita ágil [não te esqueças, Princesa, de que esta é caligrafia, a pincel e tinta da China], ou em poder exibir uma bela voz, marcando o compasso...


   
Pierre-François Souyri, no seu Les Guerriers dans la Rizière - La Grande Épopée des Samouraïs (Paris, Flammarion, 2017), contrapõe aquela nota a outra, constante do Soga Monogatari (Contos dos Soga), realçando assim a oposição histórica da cultura guerreira (bushido ou via do guerreiro) à da aristocracia da corte:


   O canto e a poesia, os instrumentos de cordas, o jogo de bola no pé, o tiro ao arco pequeno, eis alguns divertimentos que se praticam na corte ou em casa do imperador reformado, mas nós cá somos guerreiros, fazemos a guerra a cavalo, combatemos a pé, medimos a nossa força pelo braço de ferro, sabemos galopar os nossos cavalos saltando obstáculos. Estamos hoje aqui reunidos, vindos de toda a parte...  ...Organizemos, pois, um torneio de sumo [combate sem armas] entre nós!


   
Não tenciono alargar por aqui este tema da cultura bushido, ultimamente tão debatida, como nos diz o próprio título de um livro de Olivier Ansart, Paraître et prétendre: l´imposture du bushido dans le Japon pré-moderne (Paris, Les Belles Lettres, 2020), autor que, tal como Pierre-François Souyri, foi diretor da Maison Franco-Japonaise em Tokyo (cuja fundação, aliás, muito deve a Paul Claudel, embaixador de França no Império do Sol Nascente, nos anos 20 do século passado). Mas voltarei ao quaker japonês Nitobe, logo depois desta citação da Crónica Militar de Nitta Yoshisada (morto em 1338): Desde a Antiguidade até aos nossos dias, existe essa divisão entre as armas e a cultura literária. As respetivas virtudes são como o céu e a terra. Se qualquer delas faltar, deixa de ser possível governar o mundo. Assim, os nobres da corte privilegiam a cultura literária, que são as artes dos poemas e da música. Mas no bushido (via dos guerreiros), as armas são o princípio: eis a via do arco e setas, e das batalhas. 


   
Mas a tal via dos guerreiros, afinal, vai tendo, no decurso da história, várias faces moldadas pelas variáveis circunstâncias do tempo e do modo... Bushi se pretenderam e proclamaram sucessivas gerações de guerreiros, com estatutos e condições sociais e morais que iam de bandos de bandidos e salteadores de estradas e aldeias, a funcionários imperiais, vassalos feudais, vinculados por juramentos de fidelidade e serviço que, todavia, nem sempre escaparam a tentações de traição ou mudança de partido, sobretudo quando se apresentavam alternativas mais favoráveis a promoções e enriquecimento próprios... Mas tinham em comum algo a que chamarei "vocação mitológica", quiçá soprada pela contemplação de valores profundamente enraizados na alma ou cultura nipónica: rasgo e resistência, solidariedade, transitoriedade e permanência do efémero.  


   O mito (ou mitos) do bushido, curiosamente, foi inicialmente popularizado no Ocidente pelo livro - escrito originalmente em inglês por um filho de samurai - Bushido, the Soul of Japan (1900). O autor é já nosso conhecido Nitobe Inazo, diplomata e professor universitário, convertido ao cristianismo quaker e casado com uma americana, como acima contei. A imagem exemplar que transmite da via dos guerreiros inspira-se certamente na educação que, enquanto descendente duma família de samurai, Nitobe recebeu e, também, na preocupação e desejo de nobilitar, perante estrangeiros, as gentes japonesas. Por outro lado, sabemos que o autor era cristão, casado em terra estranha com uma estrangeira... Mais ainda: Nitobe Inazo era pacifista e nunca se sentiu bem com a propensão ao autoritarismo e belicismo nacionalista que, pelos anos 20-30 ia desenhando as opções políticas do Império do Sol Nascente, conduzindo-o, finalmente, à guerra.


   Com o devido pudor, não irei, Princesa de mim, emitir juízos nem sobre o drama interior de Nitobe - e tantos outros lúcidos apoiantes da restauração Meiji, entendida como abertura do Japão ao mundo novamente imposto, oferecido e descoberto  - nem sobre a conversão ou teatralização de tradições que, mais ou menos verdadeiras, se tentou que encarnassem a tal "Japanese soul"... Por hoje, apenas quero deixar-te um apontamento que ilumina uma relação com a fidelidade e a morte que, tão japonesa no seu sentido, me parece aqui merecedora de atenção. Trata-se de um episódio da saga da queda final, nos anos 30 do século XIV, do shogunato Hojo, com sede em Kamakura. Conta-nos Pierre-François Souyri:


   Vencido por Ashikaga Takauji, o general Hojo Nakatoki fugiu com alguns dos seus vassalos, mas logo se viu cercado por bandos armados de milhares de homens: «Nã vejo saída nem refúgio possível... Terei pois de abrir o ventre, como é dever de qualquer homem de honra». 


  O general Nakatoki dirigiu-se então aos seus homens, convencido de que um bom senhor deve saber recompensar os seus servidores pelos serviços prestados. Ora, não estando em condições de o fazer, só lhe restava morrer: «Não encontro palavras que falem aos vossos corações leais, a vós que tão fielmente me servistes até ao dia de hoje. Lembro-me do sentido da honra 
que nos ensina a Via do arco e das setas e não me esqueço da vossa solidariedade já tão antiga. Sabeis todavia que a sorte das armas nos não foi favorável, e que o clã Hojo sucumbiria. E como é profunda a minha gratidão! Gostaria, com todo o meu coração, poder recompensar-vos pelo vosso mérito, mas o funesto destino do meu clã não permite que o faça. Vou, portanto, suicidar-me aqui, para saldar a dívida que para convosco contraí» O seu vassalo mais próximo, Kasuya Muneaki, logo se suicidou também, «para poder guiar o seu senhor no mundo das trevas». Mas não foi o único: os quatrocentos e trinta dois samurais presentes abriram simultaneamente os ventres. «O sangue corria-hes dos corpos, como caudal do rio Amarelo, e os corpos cobriam o chão como carne num talho». 


   
Creio, Princesa de mim, que nos ajudará a melhor entender este episódio que Souyri foi buscar ao Taiheiki, recordar aqui a origem da palavra samurai: deriva do verbo antigo saburafu, que significa servir. O samurai é, portanto, inicialmente, um servidor, mas especial: armado, pertencente a uma escolta, uma espécie de guarda-costas. Lado a lado com o termo samurai aparecem muitas vezes outros, tais como bushi, cuja etímolo chinês se refere às artes marciais ou budo, a via das armas, sendo esse bu frequentemente oposto a bun, ou letras. Shi significa alguém de qualidade e, assim, um bunshi é um letrado e um bushi um guerreiro. Com o andar dos tempos, bushi e samurai tornaram-se sinónimos.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

REFERÊNCIAS A UM ESPETÁCULO MEDIEVAL

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Fazemos hoje aqui breve referência a um espetáculo descrito por Alexandre Herculano nas "Lendas e Narrativas", espetáculo esse realizado em 1401, portanto há exatos 620 anos, para celebrar a sagração do Mosteiro da Batalha.

E é desde já assinalável este recurso a artes de teatro numa cerimónia régia de agração de um edifício religioso, ou, pelo menos com expressão sacra. De certo modo, isto mostra-nos que o teatro em Portugal surge anterior a Gil Vicente o a Henrique da Mota, o que não obsta a que o chamado "Mestre Gil" como durante séculos era designado, seja referido como o efetivo introdutor, digamos assim, do teatro-texto em Portugal.

Hoje iremos pois fazer só a transcrição do texto de Alexandre Herculano. Eis o que ele diz, no Tomo I das "Lendas e Narrativas", sobre o que terá sido o teatro em Portugal antes de Gil Vicente:

"Pela primeira porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos menção.
Essas primeiras figuras eram seis formando uma espécie de prólogo ao auto. Três que vinham adiante representavam a Fé, a Esperança e a Caridade; após elas, vinham a Idolateria, o Diabo e a Soberba; todas com suas insígnias mui expressivas e a ponto; mas o que enlevava mais os olhos da grande multidão dos espectadores era o Diabo, vestido de pele de cabra, com um rabo que ele arrastava pelo tablado e seu forcado na mão, mui vistoso e bem posto.

Feitas as vénias a El-Rei, a Idolateria começou o seu arrazoado contra a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em que estava de receber cultos de todo o género humano, ao que a Fé acudia com dizer que, ao início, estava apontado o dia em que o império dos ídolos devia achar e que ela Fé não era culpada de ter chegado tão asinha esse dia.

Então o Diabo vinha lamentando-se de que a Esperança começasse a entrar no coração dos homens; que ele Diabo tinha jus antiquíssimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia; e com isto, carreteava, com tais momos e trejeitos, que o povo ria a rebentar o mais devotamente que era possível."

Ora bem, vale a pena recordar que Alexandre Herculano, nos "Opúsculos" publica um texto de 1837, onde de certo modo completa mas limita esta oposição, pois escreve que "em Portugal é provável que começassem as representações cénicas pelo mesmo tema em que principiaram na Espanha, mas nenhum vestígio resta desse teatro primitivo".

O que é no mínimo discutível!...

                                                                                                                       Duarte Ivo Cruz

 

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO


LXXIX - FONIAS “BOAS” E “MÁS”


Há teorias, tipo imperialista, que defendem haver línguas superiores, eleitas, mais perfeitas, coerentes e harmoniosas, baseadas na sua perfeição intrínseca, na superioridade de um povo, de uma raça, face às quais cedem as línguas inferiores e imperfeitas.   


O mesmo sucede para quem defende a teoria das línguas ricas e desenvolvidas, por confronto com as pobres e subdesenvolvidas.   


A ser assim, um país pobre, subdesenvolvido ou em vias de desenvolvimento, não falante de uma língua de eleição ou superior, deveria juntar-se ao grupo de línguas ricas e de países desenvolvidos.      


Sucede, porém, que apesar da maioria dos países africanos terem como língua oficial o francês e o inglês, nenhum deles consta do grupo dos países mais desenvolvidos e ricos, embora contribuam com os seus recursos naturais para o desenvolvimento e riqueza daqueles.      


Conclui-se, assim, que não é suficiente falar e ter como idioma oficial o inglês ou o francês para se chegar a desenvolvido e rico mais depressa. 


E aceitar que há fonias “boas” e “más” é não querer perceber a estratégia e dinâmica dos blocos, ou estar ao serviço das supostas “boas”, colocando as presumíveis “más” numa inaceitável posição de subalternidade e subserviência.  


Daí que quando se fala em anglofonia, francofonia ou lusofonia, o importante é o que tais conceitos encerram como definição de espaço linguístico.

 

26.03.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

JÜRGEN HABERMAS

O grande pensador que nos diz:
envergonha-te de morrer antes de teres alcançado uma vitória para a humanidade.


No passado dia 28 do corrente na Fundação Calouste Gulbenkian colocaram-se as questões inerentes aos livros e às leituras, tendo em conta os desafios da era digital.

Debater o papel do livro e da leitura na era da internet tendo como convidado o filósofo e sociólogo alemão, Habermas, figura central do pensamento contemporâneo que desde logo, confessa:

No meu trabalho diário sentir-me-ia perdido sem o meu computador pessoal, mas não sou verdadeiramente um habitante do novo espaço virtual. Não participo nas redes sociais, não leio 'e-books' e de tempos a tempos escuto os relatos da minha neta sobre o seu admirável mundo novo.

Gomes Canotilho deu-nos conta que em 2010 Habermas falhou a presença em Portugal por razões de saúde. Desta feita aceitou fazer a viagem até Lisboa por se tratar de uma conferência sobre educação

Habermas um dos mais influentes filósofos do mundo a dois passos de física distância disse-nos: temos um ascensor comum.

Na semana passada, tinha lecionado uma aula sobre a Europa alertando, naturalmente, para os raciocínios de Jügen Habermas.

Expressei o que entendia ser a necessidade de uma política de saúde comum entre os povos, nos quais enfim, até se enraízam os mesmos princípios constitucionais, mesmo que sem as mesmas origens étnicas, linguísticas ou culturais.

Recordei a importância da Europa no pensamento de Habermas e que atravessa áreas como a ética, a filosofia da religião, a linguagem, a estética, entre outras temáticas, e recordando que a Fundação C.G. já editara este ano a obra de Habermas “A transformação estrutural da esfera pública”.

Para o filósofo, "no caso da pós-democracia, a perceção é a de que os governos não só perderam a vontade como também a força para intervir de modo a alterar o estados dos mais desfavorecidos".

Deste modo, poderemos colocar a possibilidade de alargar as fronteiras da legitimação democrática para lá das fronteiras do estado-nação?

Habermas entende que a transnacionalização da democracia oferece uma saída que não se compadece com a apatia do mundo ocidental, nem com o distanciamento em relação aos políticos, existindo mesmo uma exigência, por parte dos cidadãos e grupos de protesto, de uma democracia direta.

Aqui um silêncio interrogativo do auditório. E acrescentei que mais nos atiçara o pensador:

o preço a pagar pela governação para lá dos estados é a crescente insignificância dos processos de legitimação no interior do estado-nação (…)”

Então a resposta reforça a afirmativa:

 necessário se torna que surjam novos tipos de comunidades transnacionais e a União Europeia é suposta ser a primeira desse tipo de instituições, explicou o autor da “Teoria da Acção Comunicacional”.

No entanto, prosseguiu Habermas, a crise da zona euro é a prova de como é difícil o caminho até se chegar a um “sistema democrático supranacional ambicioso e com vários níveis”.

Ultrapassar o atual estado de coisas implica, defendeu, uma mudança no espaço público europeu, um espaço que é mais uma soma de espaços públicos nacionais do que um fórum de discussão de questões genuinamente europeias e comuns a todos os estados-membros.

A mundialização, a busca planetária, a Europa de geometria variável ou a la Carte, os laços de pertença interrompidos pelo “poder de agenda”, mostram-nos que, esta crise nos clareou o quanto é necessário mudar de política, e levá-la a enquadramentos partilhados por políticas económicas e sociais que nos libertem dos mercados financeiros, neles responsabilizando investidores e não contribuintes.

Claro está que para se caminhar neste futuro os países têm que se afastar dos egoísmos nacionais e adotar verdadeiras perspetivas europeias comuns, não conformadas ao mercado, mas sim, à modificação do seu papel em prol de um advir consciente, responsável e inequivocamente seguro da geração que se deseja por uma justiça a recriar, começando esta em cada um.

Mas os partidos políticos evitam a questão da solidariedade europeia, daquilo que os europeus devem uns aos outros. Vejo isto como um sinal de timidez política, quando não de puro oportunismo, perante um desafio de dimensões históricas, concluiu o filósofo.

Quantas vezes a política do dar e do haver prejudicou a identidade dentro da União Europeia? Lancei aos alunos. Quantas vezes? E repito a análise de Habermas

Vejo isto como um sinal de timidez política, quando não de puro oportunismo, perante um desafio de dimensões históricas, concluiu o filósofo.

Habermas, um dos maiores pensadores do nosso tempo, encerrou com estas palavras a sua conferência sobre a democracia na Europa, na passada segunda-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Fica por repensarmos a razão e o limite das transferências de soberania que não colocam em causa a coragem da revisão dos tratados, e fica por saber o quanto os meus alunos puderam compreender que qualquer dos caminhos tem custos, mas que é preciso sair do conforto dos egoísmos nacionais que nos condenam, e que saibamos olhar-nos como parte de uma comunidade, independentemente de fronteiras, na qual saibamos responder à  questão: quem somos nós?

Ou

E se precisarmos um dia, absolutamente de resolver um trágico problema comum?

Se estas controvérsias não forem lançadas nos espaços públicos nacionais, estes serão moldados de acordo com o formato das ‘democracias conformadas”, digo.

Mas, os partidos políticos evitam a questão da solidariedade europeia como se ela não fosse o grande desafio de dimensões históricas.

Nasceu em Düsseldorf, em 1929 Habermas, e foi fortemente influenciado pelo pensamento de Martin Heidegger.

Habermas para quem

O Homem é um “sim” que vibra com harmonias cósmicas

Recorde-se também o encontro entre Habermas e Ratzinger, no qual se discutiram "as bases pré-políticas e morais do Estado democrático". Habermas e o cardeal debateram razão e fé, capitalismo globalizado, moral nas sociedades pluralistas e mediáticas, interculturalidade, poder e direito comum.

Saibamos sempre que a Cultura se situa no contexto da história e que se limpem os pés e se usem mascaras que protejam a sanidade das ideias antes da tolerância de cada um a si mesmo.

E com este filósofo, casa cheia afinal na Fundação Gulbenkian!

 

Teresa Bracinha Vieira

 

Obs: Texto muito similar foi publicado neste Blogue há cerca de 8 anos. Pouco depois, o atual, foi publicado noutra sede.

AS TESES DE CATÓLICAS ALEMÃS

 

1. Já toda a gente percebeu ou deveria ter percebido que a Igreja precisa urgentemente de reformas profundas, e elas não podem continuar a ser impostas a partir de cima. Exige-se a participação de todos, exercendo a sinodalidade, como quer o Papa Francisco, isto é, caminhando juntos, nas paróquias, nas dioceses, na Igreja universal — aliás, o próximo Sínodo dos Bispos, em 2022, terá por temática precisamente a sinodalidade.


Neste contexto, a Igreja alemã, com o seu “Caminho Sinodal”, tem sido um belo exemplo.  Com quatro fóruns de discussão em funcionamento — sobre o poder na Igreja enquanto instituição hierárquica e o seu controlo, a forma de vida dos padres na sociedade actual e o celibato obrigatório, o amor e a moral sexual (já não é tabu falar em bênção para casais homossexuais), a mulher e os ministérios ordenados —, após discussão e aprovação no respectivo fórum, realizar-se-á no próximo Outono a Assembleia Sinodal formal, com 230 delegados (69 membros da Conferência Episcopal), para novos debates e votação.


A Igreja alemã tem consciência dos problemas que se colocam quanto ao futuro do cristianismo e da Igreja. Sabe que é necessário recuperar a confiança depois do escândalo dos abusos sexuais. Conhece as críticas às estruturas de poder, não ignora a questão do celibato e da moral sexual, as exigências das mulheres. Em 2019, 272.771 católicos alemães abandonaram a Igreja. Não ignora que há 500 anos Lutero afixou as famosas 95 teses e que não era sua intenção dividir a Igreja, mas reformá-la como se impunha. O  seu apelo não encontrou resposta adequada...


2. Foi neste contexto que, no passado primeiro Domingo da Quaresma, surgiram afixadas, nas catedrais e igrejas da Alemanha, sete teses, afirmando os princípios, o que deve ser, e contra o clericalismo, o patriarcalismo, a corrupção na Igreja. Quem as afixou? A iniciativa pertence a um movimento de mulheres católicas, denominado “Maria 2.0”, favoráveis a mudanças fundas na Igreja Católica. Dizem assim, textualmente:


“Tese 1. Na nossa Igreja, todas as pessoas têm acesso a todos os ministérios.

Porque os direitos humanos e a Lei Fundamental garantem a todos direitos iguais — só a Igreja Católica o ignora. Ser varão estabelece hoje direitos especiais na Igreja.


Tese 2. Na nossa Igreja, todos participam na sua missão; o poder é partilhado.
Porque o clericalismo é hoje um dos problemas fundamentais da Igreja Católica e favorece o abuso de poder com todas as suas facetas humanamente indignas.


Tese 3. Na nossa Igreja, os actos de violência sexual são investigados exaustivamente e os responsáveis são chamados a contas, as causas combatem-se sistematicamente.
Porque já há demasiado tempo que a Igreja Católica é um cenário de violência sexual. As autoridades eclesiásticas continuam a manter em segredo informações sobre estes crimes violentos e fogem às suas responsabilidades.


Tese 4. A nossa Igreja mostra uma atitude de apreço e reconhecimento de uma sexualidade autodeterminada mais atenta e do casal.
Porque a moral sexual ensinada é alheia à vida e discriminatória. Não se orienta pela imagem cristã da pessoa e já não é tomada a sério pela maioria dos fiéis.


Tese 5. Na nossa Igreja, o modo de vida celibatário não é um pressuposto para o exercício de um ministério ordenado.
Porque a obrigação do celibato impede pessoas de seguir a sua vocação. Quem não é capaz de cumprir este dever vive frequentemente atrás de aparências e vê-se lançado em crises existenciais.


Tese 6. A nossa Igreja funciona segundo princípios cristãos. É a administradora dos bens que lhe são confiados; não lhe pertencem.
Porque a pompa, transacções financeiras duvidosas e o enriquecimento pessoal de decisores eclesiásticos abalaram e diminuíram profundamente a confiança na Igreja.


Tese 7. A nossa missão é a mensagem de Jesus Cristo. Agimos em consequência e enfrentamos os desafios sociais.
Porque a direcção da Igreja perdeu a sua credibilidade. Não consegue fazer-se ouvir de modo convincente e trabalhar por um mundo justo no sentido do Evangelho.”


A resposta por parte dos Bispos foi a adequada: entenderam as exigências, querem avançar, mas sem criar rupturas. Por exemplo, o bispo de Mainz, P. Kohlgraf disse: “Não vou retirar o cartaz”. Destacou a sua simpatia pelas teses, mas que não se pode caminhar demasiado rápido. O bispo B. Meier, de Augsburgo, declarou aceitar as teses, prometendo abertura para o diálogo.


O porta-voz da Conferência Episcopal, Matthias Kopp, manifestou compreensão. “Sabemos que são necessárias mudanças”, “mas não podemos mudar a Igreja da noite para o dia, devemos fazê-lo mediante um diálogo aberto, marcado pela confiança”. No entanto, como se impõe, em questões de relevância para a Igreja universal, a Igreja na Alemanha “não adoptará um caminho especial sem Roma”.


3. Mudo de continente, evocando uma fotografia: uma irmã da Congregação das Religiosas de São Francisco Xavier, Ann Nu Thawng, ajoelhada, em lágrimas, diante de um pelotão policial em perseguição de manifestantes pacíficos em Myanmar, depois do golpe militar que já fez muitas vítimas mortais. Impressiona a sua coragem e força: a polícia parou e deu a volta. Ela salvou a vida a mais de cem manifestantes. “Ninguém a aplaudirá porque é freira. Mas é outro modo de lutar contra a violência machista”, comentou o teólogo José I. González Faus.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 MAR 2021

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Aldo Rossi à luz da história interpreta a cidade
. (Parte II)


Artefactos Urbanos

Rossi sonha desenhar a nova cidade através do conhecimento de regras que possam prevalecer. Rossi procura pelos artefactos urbanos – pela sua intemporalidade, singularidade, individualidade, particularidade e regularidade. É sobre os artefactos urbanos que constrói o seu método de análise da cidade. Rossi entende por artefactos todos os elementos construídos pelo Homem e que contém, em si os traços do tempo. É através deles que se transmitem símbolos, ideias e se interpreta a história – um povo está satisfeito com um artefacto sempre que se consegue rever na sua forma. Artefactos são os elementos da cidade que conseguem manter os valores originais – são elementos que trazem à cidade estrutura, singularidade, lugar, memória.


A memória que permanece nas cidades depende do tempo, da cultura e da circunstância. É capaz de se atualizar constantemente e de receber diferentes interpretações. É referência para o Homem que o faz situar num momento específico, na realidade do presente. A sua forma e aspirações correspondem a um padrão reconhecido por toda uma comunidade.


O artefacto é criado para servir uma função de uma maneira dinâmica – a sua estrutura é imutável. A definição de um artefacto urbano só a partir de uma função específica não faz sentido para Rossi, porque a função muda com o tempo e com as necessidades de uma comunidade e de um lugar.


Sendo assim, o artefacto é um momento típico ou tipo da cidade. O tipo desenvolve-se de acordo com as necessidades e aspirações de uma comunidade. Formaliza um modelo e uma maneira de viver constante, variando de sociedade para sociedade. Rossi interpreta a cidade através do valor tipológico do passado.


Morfologia e Tipologia

Para Rossi Morfologia e Tipologia apresentam-se como conceitos complementares. Por um lado, morfologia associa-se à forma da cidade, é espaço não construído, é estrutura que evidencia os elementos construídos. Tipologia associa-se ao espaço construído, à forma do seu uso.


Em ‘L’architettura della città’ Rossi descreve e analisa a cidade através de regras limitadas morfológicas e tipológicas. Permite voltar a fazer entender a cidade como lugar de complexidade e de memória urbana. Aldo Rossi pretende a recuperação da tradição, a insistência na permanência das formas, a recriação das convenções (como reinterpretação do passado à luz do presente). A cidade constitui-se por valores construtivos (que servem de regra ou modelo e que conformam a cidade) e memória (monumento, que serve de símbolo).


Rossi parte de uma vontade antivanguardista de reconstruir a ligação entre a arquitetura e a coletividade. Rossi insiste na tipologia como estrutura, fundadora da imagem da realidade arquitetónica e emocional. Rossi recorre ao mecanismo da analogia.


A analogia que permite associar à cidade a memória e a história, o individual e o coletivo, a objetividade e a subjetividade, o Homem e o lugar. O Homem procura por uma cidade ordenada e consistente intimamente referenciada a um tempo. A expressão da analogia referencia-se a elementos formais preexistentes e que pertencem a uma determinada realidade. Rossi vê os programas modernos como veículos inadequados para a arquitetura e por isso procura por uma arquitetura analógica, extraída do vernáculo e da memória. Rossi volta aos programas tipológicos propostos na cidade do séc. XIX.


Rossi ao explorar a imagem da cidade através do tipo, modelo ou regra, dá um novo sentido à arquitetura. Os tipos transformam a cidade através de ideais intemporais geométricos. Para Rossi os elementos construídos de uma cidade podem, assim tomar a forma de um cubo, cone, cilindro, prismas octogonais e retangulares. Cada forma está associada a uma determinada função. Rossi trabalha a partir de formas facilmente reconhecíveis e identificáveis para uma determinada comunidade – a habitação, a escola, o hospital, a prisão, o edifício religioso e civil. Por exemplo Aldo Rossi em Constructing the City Project, em 1978, define o cubo como espaço de encontro público; a torre octogonal como o centro cívico ou município; o cilindro como a escola, o teatro e a biblioteca; o cone como o monumento que permite a referenciar a cidade ao seu lugar; o paralelepípedo suspenso sobre pilares como habitação coletiva; as formas vernáculas italianas como habitação unifamiliar.  Rossi descobre, assim na tipologia a possibilidade de invenção de formas que evoluem no tempo.


O historiador interpreta os factos reais do passado à luz da sua existência e do seu presente. A forma da realidade descrita pelo historiador passa pela sua perspetiva existencial e pela sua interpretação. Aldo Rossi à luz da história interpreta a cidade. Rossi entende o valor da história como memória coletiva. É a memória que permite a permanência de estruturas do passado e a formação novos elementos na cidade. Rossi ao determinar a arquitetura da cidade define elementos estruturalmente permanentes, os artefactos urbanos ou os tipos, que absorvem as diversas interpretações ao longo do tempo. A tipologia, ao ser uma constante da cidade, forma arquitetura ao utilizar mecanismos que ultrapassam o mero funcionalismo moderno. Ora, Rossi trabalha a partir do processo da analogia retomando temas do vernáculo, valores e necessidades intemporais que busca no passado. Rossi dá, assim a possibilidade ao Homem de interpretar continuamente o seu tempo e o seu lugar através de permanências que estruturam a cidade.

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

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   De 22 a 28 de março de 2021

 

“A Mocidade de Herculano” é a dissertação de doutoramento de Vitorino Nemésio (1934). Mas é muito mais do que isso: é o romance de uma figura cultural única e marcante – e aí encontramos não só a paixão poética, mas também a mestria romanesca, que prenuncia o genial “Mau Tempo no Canal”.

 

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Na década emblemática de 1930, devemos chamar à colação Vitorino Nemésio de um modo talvez inesperado, mas depressa compreensível. Refiro-me à dissertação de doutoramento “A Mocidade de Herculano até à volta do Exílio”, defendida em 1934, que constitui muito mais do que um documento académico, já que é uma obra-prima da ensaística portuguesa. E se falo desta referência é porque não é despicienda a escolha do tema e o seu tratamento. Pode dizer-se que é o romancista e o poeta que aqui se anunciam, o que nem sempre foi bem entendido no claustro académico. Bem assinala David Mourão-Ferreira “o rigor da minudência erudita e a certeira intuição de quem sabe sondar, a um século de distância, toda a complexidade de um grande destino que se vai construindo”. Herculano surge como uma grande personagem, como um defensor da liberdade, num caminho de dúvidas e incertezas, mas um verdadeiro símbolo de um pensamento que estava em perigo quando o investigador o escolheu. Sente-se no jovem Nemésio uma especial identificação, subtil é certo, mas evidente – sobretudo por contraponto a um tempo em que o panorama político se apresentava como adverso relativamente à defesa e preservação dos valores queridos pelo historiador. Quando lemos “A Mocidade de Herculano” sentimos que o rigor historiográfico permite a construção de um quadro narrativo de uma grande riqueza, em que a singularidade se junta à necessidade de compreensão do contexto social e político – que será de grande utilidade para a riqueza da obra romanesca do autor. “Tenho pensado e vivido tanto com Herculano, que agora sou assim uma espécie de seu neto póstumo. Neto, não!, que o meu avô mais velho nasceu em 1841 (…) e Herculano é de 1810. E, mesmo para o meu bisavô, talvez fosse velho de mais. Como seria meu bisavô? Sei ou julgo saber como foi Herculano: não sei de meu bisavô senão por vagas memórias”. E o escritor lembra, ao menos, que em 1832, quando Herculano desembarcou na Terceira, o historiador e seu bisavô respiraram o mesmo ar, qualquer que fosse a distância a que tivessem estado. Estamos perante um verdadeiro romance, mas é o “abalo do poeta” que está na raiz do biógrafo. Perante a massa enorme de elementos sobre a emigração portuguesa existente no Museu Britânico, Nemésio restringe-se ao exílio de Herculano, “não sem investigar manu diurna et nocturna (como diziam nossos mestres), em três anos de full time, todo o âmbito da operosidade e da espiritualidade do escolhido. Interessava-me o homem inteiro (…) sempre e em tudo indistintamente filósofo, poeta – homo sum, nihil humanum a me alienum…”. A leitura dos dois volumes é apaixonante, porque neles deparamos com o feliz encontro de uma irrepreensível análise histórica e literária, que enriquece um percurso acidentado de carácter pessoal, com uma magnífica ilustração do contexto cultural europeu e nacional. Sentimos a presença desde a comum mediania à emergência de uma perceção elevada das mais relevantes personagens do tempo. “Emigrei da idade de vinte anos em consequência da infeliz tentativa da revolução do 4º Regimento de Infantaria, tentativa conduzida com tanto valor pelos meus honrados amigos o capitão Albino Francisco de Figueiredo e tenente-coronel Bravo…”.  E assim Herculano foi cúmplice de um “agente incógnito” e teve de fugir para a fragata “Melpotmène” e depois para bordo de um paquete inglês que o levou ao litoral da Mancha. E por muito que Inocêncio (o dicionarista) se afadigasse em referir as origens miguelistas de Herculano, a verdade é que encontramos o percurso natural de um português num tempo de contradições, cuja coerência determinada é feita de um percurso sempre sério e refletido…

 

AINDA O SIGNO DA LIBERDADE

Se a liberdade é o pano de fundo na prova académica de Nemésio no tempo em que o horizonte se enchia de nuvens totalitárias, na década seguinte Mau Tempo no Canal é a obra-prima, escrita nos anos de início da Guerra, a partir de 1939, na qual encontramos também o elogio da liberdade, na personalidade de Margarida Clark Dulmo, num tom original a superação dos limites do psicologismo “presencista”, bem como da lógica social neorrealista. É algo de próprio e de original, que podemos aproximar do rigor da “Mocidade de Herculano” de uma extraordinária dimensão poética. Trata-se de uma narrativa que concilia o genuino sabor local e uma reflexão universalista, relaciona a singularidade e o destino, o mistério e o presságio, o sonho e a tragédia. David Mourão-Ferreira classificará, com justiça, a obra romanesca como «a mais complexa, mais variada, mais densa e mais subtil em toda a nossa história literária». Margarida e João Garcia protagonizam, de início, um namoro contrariado pelas relações tensas entre as famílias de ambos, no contexto da sociedade açoriana plena de ressentimentos, medos, angústias, contradições, uma família de raízes aristocráticas, mas em situação difícil, e a ambição de um novo-riquismo desejoso de legitimação. E a grande metáfora é a da melancolia das ilhas e do mar oceano, da distância, mas também da liberdade e da esperança, da incerteza e da dúvida sentidas, em especial, entre o Faial e o Pico, entre o anfiteatro da cidade da Horta e o majestoso Pico, referência mítica do tempo que permanece inexorável, belo e ameaçador. Fica lembrada a carta de Antero a Oliveira Martins: “Aqui nos Açores, há um provérbio que reza: ‘S. Miguel, burgueses ricos; Terceira, fidalgos pobres; Faial, contrabandistas espertos’. Com efeito, a Terceira é uma terra essencialmente portuguesa e peninsular: fidalguia, pobreza, toiros, insouciance sóbria e filosófica, entusiasmo, bizarria e parlapatice: numa palavra os defeitos e as qualidades correspondentes do idealismo peninsular, que V. tão bem conhece e não menos bem descreveu já”… Margarida é a figura marcante do romance, forte e sensível, inteligente e arguta, livre e determinada, uma personalidade que não nos pode deixar indiferentes, porque compreende como ninguém a terrível teia em que está envolvida, entre sonhos e augúrios. Como é insondável o destino. Mas, no final, sente-se cega…"cega como a serpente do anel que nenhum ventre de peixe levaria a mesa humana e que àquela hora jazia, como a cucumária dos abismos, no mais secreto do mar"… E entre a força destas duas obras maiores da cultura portuguesa, lembramos o que Nemésio considera ser a sua existência. “Toda a vida estudei de tudo e o mais que podia para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois ou racionando, como a formiga, do verão propício ao Inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois tive de dançar no Inverno e cantei sempre”.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

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